Antes de terem sido feitos estudos sérios e profundos sobre as origens do fado – nomeadamente, pelo grande especialista Rui Vieira Nery, sobretudo nos anos que precederam a candidatura da canção nacional a Património Imaterial da Humanidade – estava mais ou menos disseminada a ideia – bonita, mas falsa – de que o fado nascera na época dos Descobrimentos.
Era, de facto, romântico imaginar que a «saudade», essa palavra intraduzível que tantas vezes dá corpo aos versos do fado – vinha dos tempos remotos em que os marinheiros deixavam a pátria em naus e caravelas, sem certeza alguma de um dia regressarem, e choravam as mágoas e a separação dos que amavam num cântico que enganava a tristeza e sublinhava a nostalgia.
Há, aliás, um «Fado Português», com poema de José Régio, que Amália cantava e que, como o próprio Vieira Nery explicou num didáctico programa de rádio, prolonga este mito: «O fado nasceu um dia […] na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro que, estando triste, cantava.»
No entanto, por muito bela que a imagem seja, a verdade é outra muito diferente, e os estudos vieram demonstrar que o fado tem as suas raízes numa modinha brasileira (o lundum, muito provavelmente devedor de canções africanas trazidas pelos escravos nos navios tumbeiros) que a Corte de D. João VI terá aprendido no exílio e trazido na memória e no ouvido quando regressou a Portugal – o que prova que a viagem do fado se fez, afinal, de lá para cá, e não do Velho para o Novo Mundo.
E, assim mesmo, nascida brasileira, nenhuma outra canção espelha de forma tão perfeita a alma lusa como o fado: sobretudo no seu tom menor, ela é lamentosa igual a nós, chorosos de um futuro de fausto que nunca chegámos a ter, saudosos de um passado de riquezas esbanjadas, queixosos da vida e da falta de amor.
E isto é tão verdadeiro que um amigo que até dizia que não gostava de fado contou uma história realmente curiosa.
Por alturas da crise financeira, sem emprego, vendo-se obrigado a emigrar, foi parar ao Brasil, onde – já se sabe – a música é tão boa e há tantos intérpretes notáveis que não há simplesmente tempo nem disposição para ouvir mais nada.
Muito menos fado.
O clima quente, a nudez dos corpos pelas praias e no calçadão, a alegria carioca dos botecos, a gente bonita sempre com um pé no samba, a informalidade dos contactos, a festa permanente, tudo o terá feito esquecer a pátria cinzentona, pobre e chuvosa.
Até que um dia, passando a pedalar numa rua do centro, de uma janela – quiçá de algum português ali exilado há muito – brotou intempestivamente a voz de Amália Rodrigues cantando dores e martírios nas palavras de Pedro Homem de Mello…
E, zás, a bicicleta teve de se deter ali mesmo para ele se deixar à escuta do seu país e, ai!, o coração bateu-lhe subitamente acelerado, apertado no peito como um novelo, e então, sim, instalou-se aquela coisa chamada saudade que até os portugueses que não gostam de fado sabem como é.
Aconteceu justamente no Brasil, onde o fado nasceu, mas não é que podia ter sido em qualquer lado?

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.

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