Mais uma vez, eu e a Meijinhos fizemos uma viagem de comboio. Foi Benfica-Oriente e isso mais do que bastou para nos irritarmos, o que em português de jornal significa que mais do que bastou para uma crónica. Já várias vezes disse que, para a escrita, a Meijinhos é como o pão ressesso com que eu alimentava patos em Vizela: pode não ser grande coisa, mas mata sempre a fome. Tudo o que faz, tudo o que vive, tudo o que é ou tudo o que invento que seja acaba derramado nas páginas desta casa. Por um lado, defendo que tenha uma comissão para isto; por outro, é evidente que não quero pagar-lhe.
Lado a lado, fartas de nos aturarmos, íamos em silêncio. À nossa frente, sentaram-se quatro. Revirámos logo os olhos por termos de olhar para gente. Só ver já era chato, quanto mais ouvir. E foi o que nos calhou quando começaram a falar.
Vamos dar-lhes nomes, para isto não ficar confuso: a Loira, a Morena, a Ruiva e a Outra. Começou a Loira, que foi a última a casar. Casaram as quatro com homens, que há gostos para tudo. Enfim, no meio da desgraça, a Loira foi quem teve mais sorte. Dizia que o marido já tinha vindo ensinado. Ela devia ter a minha idade, vamos assumir que o marido andaria pela mesma faixa. E ela gabava-o muito por não ter tido de lhe ensinar que um pano seco enxagua a água de um prato lavado. De repente, parecia um marido de sonho: até a própria roupa o sacana sabia pôr na máquina. Se assim não fosse, não contasse com a Loira para ser criada a vida toda. De início, ainda podia ser tutora, explicar-lhe que a roupa não se lava sozinha, que a máquina não vai buscar as calças sujas e que o ferro não engoma a sós, mas depois ele teria de aprender. Enfim, tudo correu bem, a sogra ensinou o rapaz a não ser um energúmeno como o pai.
Nisto, entrou a Morena. Coitada. O marido vinha muito cansado do trabalho, também não era justo exigir-lhe que ainda fizesse qualquer coisinha em casa. Por isso, por amor, chegada ela do trabalho, também cansada, fazia-lhe o jantar enquanto ele relaxava na televisão ou na banheira. Ele gostava de banhos demorados, ela satisfazia-se com um duche dos rápidos, para o efeito. E se, para ela, era normal limpar a casa (já o faria mesmo que morasse sozinha), também não ia deixar de o fazer. E quem faz uma máquina faz duas. E quem passa a ferro dois vestidos também passa dez camisas. E quem passa um paninho no lavatório também aspira os pêlos que a barba deixa. E quem dá um jeito às gavetas que usa também dá às que não usa. E por aí fora. Dali, soube-se que oito horas de trabalho cansam um homem, mas não uma mulher.
A Ruiva já teve melhor sorte, embora não tanta como a Loira. O marido fazia de tudo e ajudava-a muito, só não passava a ferro nem limpava as casas de banho. Ninguém gosta de ir buscar cabelos ao ralo, e ele não era excepção. Por isso, era ela quem tratava do assunto. E passar a ferro, admitamo-lo, é chato chatinho chatíssimo. Como ele não gostava, não fazia. Eu e a Meijinhos não percebemos se ela gostava, mas percebemos que fazia. A paz lá se mantinha em casa, porque o rapaz lá conseguia fazer qualquer coisa, o que sempre é mais do que fazer coisa nenhuma.
E então chegámos ao marido da Outra. Não é que ele não fizesse ou que se recusasse. Simplesmente demorava, de propósito, muito tempo numa divisão enquanto ela limpava o resto da casa toda (era um T3). Uma vez, porque teve de ir lá dizer-lhe qualquer coisa, viu-o, durante as “limpezas”, sentado na poltrona a jogar no GameBoy – ele que, como se vê, não evoluíra de rapaz. Ela ainda se ria disto – boys will be boys –, dizia que num homem era coisa normal, que eles são assim malandros, e nem se chocava com a prova de desamor e desrespeito. Assumia que o seu papel era fazer e o dele só fingir, e provavelmente trocavam de papéis na cama.
Nenhuma das três últimas – e o choque é este – pensou que estava mal casada. À Loira damos um desconto, uma vez que, achando que um XY não ser totalmente inútil já é um grande mérito, talvez só pensasse com neurónio e meio. Poderíamos até julgar que mereciam homens melhores, mas mereciam-nos mesmo? Talvez homens melhores também não quisessem engatar quem acha que tem a missão de pegar num espanador.
A Meijinhos estava doida com isto. Bufava, revirava os olhos. Também ela teve, ao longo da vida, de explicar a muita gente que o marido, tendo braços e mãos, também consegue mudar fraldas. Ou cozer arroz. Ou lavar as meias. Ou passar uma vassoura. E, de cada vez que o explicou, levou com o espanto de quem ou o achava bizarro ou o supra-sumo. Já ela não só nunca era o supra-sumo como de vez em quando até era apenas mais ou menos por não fazer tudo por ele.
Eu encolhia os ombros, queria lá saber. Eu só armo problemas com desconhecidos quando se começa a falar de futebol. Não me digam, caraças, que o Vizela não foi roubado no último jogo nem nos 57 anteriores ou bem para cima disso. Somos sempre roubados, até quando ganhamos 7-0, e quem acha que não é um gatuno. Mas ela, que com futebol já não se chateia tanto, tem mais talento para, volta e meia, dar duas chapadas a alguém que viu na rua.
Para evitar problemas, meti um colete de forças na Meijinhos, que estava quase a espancar aquela gente. Ela refilou, mas viu que tinha de ser. De braços imóveis, ainda dizia: “Oh pá, que atrasadas. A sério. Que atrasadas.” De início, fazia-o baixinho, mas depois tornou-se óbvio que íamos para a guerra verbal. Ora, ela tinha os braços atados, eu estava com ela: se fosse para andar à coça, quem levava nas trombas era eu. Por isso, amordacei-a a ver se saía viva do comboio. Ela fez um ar de resignação porque entendeu que, com aquilo, eu mostrava que era amiga dela e safava a vida às duas.
As quatro saíram em Roma-Areeiro e nós continuámos. Antes de saírem, a Loira ainda disse: “Vou fazer um assadinho, que ele gosta muito. E, coitado, diz que cozinhar é a única coisa que não faz. Suja-se sempre com o molho de tomate, mas não gosta de usar avental porque diz que fica a parecer uma mulher.”
Realmente. Coitadinho.
*A cronista escreve com o antigo Acordo Ortográfico

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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