Na Rua do Forno do Tijolo, nos Anjos, há uma porta fechada com um coração desenhado por cima de um nome. Elisabete. É a porta da Fábrica do Gelado. E o nome (mas com h, na verdade) é da empregada mais querida que marcou a vizinhança e tornou este estabelecimento em muito mais do que um sítio onde se podia comer um bom gelado.
Elisabeth Bandeira é a mulher de que fala o grafiti. A Fábrica do Gelado não era dela, mas era ela quem todos os dias fazia e servia os gelados. E toda a gente gostava dela: simpática, boa ouvinte e carismática. E a Elisabeth conhecia toda a gente que por ali costumava passar e voltar: desde o varredor da rua às celebridades que escolheram Lisboa, concretamente o bairro de Arroios, para morar. Eram portugueses e estrangeiros, às dezenas.
A ideia da geladaria tinha partido de duas arquitetas que decidiram transformar um espaço que antes vendia pão quente, na Fábrica do Gelado. Foram elogiadas e havia quem dissesse que este era um dos melhores gelados nesse campeonato emocional que é o de saber qual é o top da cidade. Passados oito anos as máquinas pararam e a loja cujo lema era “a felicidade num copo ou num cone” fechou as portas.
Fechou há cerca de seis meses, para o inverno, mas não reabriu com a primavera, e só agora saiu o comunicado oficial que assumiu o fecho, e juntou, na caixa de comentários, os vizinhos que têm saudades dos gelados… e da Elisabeth.
Andreia Salavessa, uma das sócias da Fábrica, conta que a decisão de a fechar não foi tomada de um dia para o outro, nem de ânimo leve. “Ou dava o salto e investia mais ali ou seguia com a minha vida. Se não fechasse estaria a assumir que aquela ia ser a minha vida e não fui capaz”, conta. Andreia é arquiteta e professora de artes plásticas numa escola básica, também nos Anjos. “Os meus alunos costumavam ir lá comer gelados e ainda hoje me perguntam porque é que fechei a fábrica.”

A última vez que pôs as máquinas a trabalhar foi para fazer gelado para levar aos seus alunos, no último carnaval. No dia da criança, na semana passada, chegou à escola e ouviu “E hoje, professora, não há gelado?”
Sobre o futuro daquele espaço, Andreia não sabe de nada. Disseram-lhe que iam fazer obras, mas ainda não viu nada a acontecer. Pensa que o mais provável é voltar a ser posto à venda.
“Só me falta uma selfie com o Presidente”
Já lá vão cinco anos desde que Elisabeth chegou à geladaria – vinha ocupar o lugar de uma amiga que ia para a República Checa. Acabou por se tornar numa das figuras mais populares desta rua de Arroios e até a Presidente da Junta de Freguesia lá ia para a encontrar. “Só me fica a faltar fazer uma selfie com o Presidente Marcelo na gelataria”, brinca agora.
Elisabeth deixou a Guiné-Bissau em 2005 para vir estudar para Portugal. Formou-se em Sociologia, passou por um escritório de advogados, por um laboratório de investigação académica, um call center, um supermercado, antes de ir parar a uma gelataria de bairro.

“Eu sabia de tudo o que se passava com os meus clientes”, diz, justificando as saudades do outro lado. “As pessoas contavam-me quase tudo! Eu sabia quando se iam divorciar, quando passavam pior e seguia-as de forma natural. Foram sobretudo estas pessoas que quando souberam que a gelataria estava à venda ficaram mais tristes por terem medo de não poderem ter ali, digamos, o seu ‘consultório improvisado’. Há quem diga que eu deveria ter estudado psicologia.”, ri-se.
Elisabeth, em português, francês e inglês
Os clientes sabiam o nome dela, e tinham ali uma parceira. Ela sabia-lhes o nome e falava com eles, também em francês ou em inglês, quando assim tinha de ser. Havia sempre a continuidade de uma conversa antiga, não perdia o fio à meada, fosse a conversa sobre o que fosse.
Eram muitas Elisabeths numa só que se espelhava nas pessoas que atendia diariamente, como se lhes lesse a mente e se colocasse no lugar delas para lhes oferecer o melhor – a empatia, ou algo maior.
“A Elisabeth foi muito importante quando nos mudamos para Portugal porque nos ajudou a aprender melhor a língua portuguesa”, diz um cliente estrangeiro que frequentava geladaria.

A passagem do testemunho
Quando se começou a falar da possibilidade de o espaço ser vendido, todos se preocuparam “Elisabeth já tinha medo de perder o que dizia ser o seu trabalho de sonho. “Mas a preocupação não é só minha. “Todos se preocuparam com a possibilidade de eu lhes faltar um dia. Houve até clientes que cogitaram a possibilidade de comprar a gelataria só para que eu não perdesse este trabalho e viesse a não estar mais aqui para eles”.
Já na altura, e por causa da preocupação da então proprietária, que nutria um carinho grande pela funcionária, a dona ensinou a Elisabeth a fazer os gelados para que, assim, se tornasse essencial para o próximo proprietário, caso este mantivesse o ramo. Ela aprendeu a fazer os gelados mais tradicionais enquanto foi arriscando por sabores novos, como o gelado de manga de faca e de outros frutos típicos que vêm da Guiné-Bissau.
Agora Elisabeth recebe fotos e vídeos que os pais e mães mandam dos filhos a comer outros gelados com legendas como: “Eles têm saudades tuas e dos teus gelados” ou “Volta, Elisabeth!”. Conta que há clientes que lhe dizem que agora só comem gelado de supermercado porque não conseguem ir a outra geladaria.

Elisabeth também tem saudades. “Trabalhava cinco horas por dia e eram as melhores horas do meu dia. Sobretudo por causa dos miúdos. São coisas simples como a gratidão deles que me faziam ganhar o dia. Os adultos mentem mais do que as crianças. Elas dizem se gostam ou não do gelado no momento que levam a primeira colherada à boca. Têm menos filtros.”
“Aquilo para mim nem era um trabalho. Eram as horas do dia em que eu me encontrava com os meus amigos enquanto lhes servia gelados.”
Elisabeth mora em Odivelas, mas quis manter o ginásio em Arroios, como desculpa para ir encontrar os que já eram mais amigos do que clientes. Agora ocupa-se com o trabalho de freelancer como gestora de redes sociais, que já tinha antes da geladaria fechar. É um trabalho incerto – mas tem recebido a ajuda de muitos ex-clientes que a contrataram para ajudr. E garante que ainda não é capaz de ir, por exemplo, para outra geladaria – apesar de ter sido chamada para uma na Graça.
Ainda tem de fazer “o luto da Fábrica do Gelado”.
Elisabeth é grata por cada entrega de “felicidade num copo ou num cone”. A somar seguidores nas redes sociais e na vida, e sobretudo sabendo que deixou sua marca nas pessoas que por ela passaram. Fica o sonho de, um dia, abrir ali a sua própria fábrica de gelados.
*Ana Narciso tem 22 anos, vem de Rio Maior, mas vive em Lisboa desde os 18. Foi pela paixão de contar histórias que escolheu licenciar-se em Jornalismo. Durante três anos, escreveu para o jornal da faculdade e passou muitas horas na rádio. É estagiária na Mensagem de Lisboa – este texto foi editado por Catarina Reis.
Muito bom, lembrei de mim mesmo…
Não conheço a gelataria nem a Elisabeth, mas adorei a história que li e acreditem se lhes derem oportunidade muitas mais Elisabeths vão aparecer. A todos que tiveram a oportunidade de conviver com ela e também hás patroas que lhe deram o emprego e ensinaram como fazer ou se gelados um bem haja e para a Elisabeth toda a sorte do mundo.
Elizabeth e única, eu e uma amiga fomos la e ficamos a conversar horas, ela nos contou o seu sonho de ir a Nova York e fazer gelados la. Eu desejo que realize seus sonhos Elizabeth você merece!! Seu gelado nos alegrou imensamente naquele dia. Foi um prazer conhecer-te.