Chamava-se José Traquete e cruzou o caminho desta crónica de forma enviesada durante uma história sobre a lenta agonia das coletividades na Bica, a encerrarem as portas uma a uma, fruto das altas rendas, altíssimas – um Everest impossível de ser escalado, o dedo invisível da mão do mercado a dar o seu empurrãozinho e a tradição na Misericórdia, Lapa, Graça, Alfama, Mouraria, Ajuda e tantas outras a caírem, como numa fila de dominós.

Mas estava eu a dizer: eis que no meio dessa indecorosa orgia especulativa, José surgiu como um sopro de pureza, naïf, o derradeiro suspiro de uma vida de bairro lisboeta. José, o canalizador – um encanador, para os três brasileiros que me leem – e nasce aí uma linda metáfora, José, um canalizador, um canalizador tão vital às bicas e vice-versa. José e a Bica, sangue do meu sangue, água da minha água, feitos um para o outro.
José surgiu de rompante na história, mas não um José de carne e osso, palpável, real, e sim um José metafísico, diáfano, etéreo, pois quando José deu o ar de sua graça nessa história, infelizmente, já não estava mais entre nós: José Traquete, o Zé, o Tracas, o Boi para os amigos mais íntimos – um Boi sem ofensas cornais, ressalvam os mesmos – mas enfim, apenas José para mim, que não tive a sorte de gozar da sua intimidade e nunca terei, pois o José morreu.
E morreu um dia após uma das coletividades da Bica, o Marítimo, encerrar as atividades. Logo o Marítimo, o clube responsável pela marcha da Bica, a marcha que para José era o sentido de uma vida.
E eis ela aí novamente, a metáfora, a dar o ar de sua graça, o José a fechar os olhos ao mesmo tempo em que as portas do Marítimo fechavam.
José era um gajo simples, comum. Original Lisboa style, pois cada bairro castiço dessa linda cidade conhece ou já conheceu um José, uma boa alma, prestativa, sempre disposto a ajudar, um anjo. Mas um daqueles anjos tortos da canção do Chico, que por umas questões paralelas, às vezes acordava com a asa esquerda e virava um chato de um querubim, imparável, sem saber muito bem para onde ir, mas sempre a ir, a ir até o fim.
E no fim, o canalizador da Bica fez muito mais pela Bica do que manter os canos dos vizinhos em ordem. É o que atesta Águeda Polónio, a presidente do Vai Tu, as memórias de anos de convivência com o José partilhadas com os leitores dessa crónica, para que a Bica e Lisboa não se esqueçam do vizinho, do filho querido.
José era, por exemplo, o padrinho oficial dos nascidos na Bica. Os filhos dos amigos a receberem das calejadas mãos um cobertor para a cama de grades, comprado numa loja para crianças na rua de São Paulo, uma loja que já não existe, expulsa também pelas rendas e pela falta de nascidos no bairro.
Mas isso é outro assunto, o assunto agora são as mantas de pano entregues por José, segundo ele, um talismã, para garantir a sorte na nova jornada.
Sorte que a Bica teve em ter José a comandar o braseiro nos arraiais da travessa do Cabral. O José, perito em dominar a água agora a domar o fogo. O José perfumado a sardinha da unha do pé ao último fio de cabelo, uma flor na boca, a girar na linha do elevador com uma turista nos braços, a lua por testemunha, a cena de fazer inveja a Fellini.
Arraiais organizados pelo Vai Tu, onde José foi diretor e também expulso – pois quando o chato do querubim se apresentava, era melhor sair de perto. Um dia, uma questão mal resolvida com um vizinho levou-o a partir a casa de banho da antiga sede da coletividade, não poupou nem a sanita nem o bidé, um um irado Michelangelo da Bica, a martelar a obra que havia erigido com a sua arte.
Noutra vez, pôs um ponto final numa rusga ao fugir em disparada para a rua com a máquina das imperiais nos braços, sedentas bocas e mãos desesperadas a tentarem em vão impedir o possesso canalizador.
Até hoje, a máquina das imperiais na sede do Vai Tu guarda na pele de metal a cicatriz da história.
Nas inúmeras vezes que José foi suspenso do Vai Tu pelas peripécias do anjo torto, a punição, independentemente se de um ou seis meses, automaticamente era levantada no último dia de maio, pois o arraial e a marcha da Bica não podiam prescindir da dedicação do seu filho.
A metáfora, sempre ela, que já se desenhava no nome deste clube, fez do canalizador do bairro o aguadeiro da marcha da Bica. O canalizador a matar a sede dos vizinhos e dos marchantes, a água também a rolar pela face de José, as veias a saltarem do pescoço no ritmo da marcha, a voz embargada, a gritar a pleno pulmões, “A Bica é linda! A bica é linda!”.
É, mesmo.
Linda como a matrafona em que José se transformava em todos os carnavais, a rolar pelo chão com os miúdos do bairro a brincar. Linda como a rapariga gira a subir a Bica, canalizando o olhar do canalizador, o bitate surgido do nada, “ainda dizem que as rosas não andam”, a rapariga a virar o pescoço, agitando o rabo-de-cavalo dourado, “e ainda dizem que os calhaus não falam…”
É, José, não se pode vencer sempre. Não, mesmo.
Há uns anos, o anjo torto já desabituado a voar caiu de uma altura, de um segundo, terceiro andar, e os sisudos doutores de bata branca condenaram o vigoroso canalizador que um dia correra pela Bica com uma máquina de imperial nos braços a nunca mais voltar a andar.
Mas a medicina dos homens nada ou pouco sabe da anatomia dos querubins e o José que passou a vida a desafiar a consciência também havia de desafiar a ciência.
As pernas poderiam estar em ruínas, os músculos débeis, as vértebras em cacos, um corpo nascido livre preso à monotonia da fisioterapia, mas os doutores de bata branca esqueceram-se do principal.
Esqueceram-se das asas.
A matéria sobre o fim das coletividades na Bica era um vespeiro em potencial, partidários do CDS – que deus o tenha – de braços dados com os do PS, socialistas em rusgas com comunistas, gente do Executivo da Junta a alfinetar a presidente da Junta, um autarca lisboeta que havia cedido à coletividade um imóvel camarário que nunca pertencera à Câmara.
E por aí vai.
Uma bomba de banda desenhada, o TNT pintado em branco numa esfera de ferro negra, o rastilho aceso, a faísca a serpentear em direção à pólvora, tshhhhhhhhhhhh… mas antes do fim, antes do boom!, surge o bom e velho José, sempre prestativo. José o canalizador, a canalizar a água para apagar o fogo, afastar o perigo.
O anjo torto que por diversas vezes ludibriara o destino e agora cumpria uma rotina pacata para os antigos padrões, as tardes de conversas na sede do Marítimo, noites com o Benfica no pequeno ecrã da televisão de poucas polegadas, até sentir a dor por saber do encerramento da coletividade misturar-se a outra dor, lancinante, no estômago.
Uma dor, um chamado, a hora do anjo torto, do querubim caído, bater as asas e voltar.
A morte do canalizador da Bica foi um divisor de águas na cacofonia que reinava na matéria. O desaparecimento de José provocou um silêncio tão eloquente e contagioso que emudeceu a todos, deixando um vazio entre os moradores que só poderia ser parcialmente preenchido pela sensação de pertença a algo maior, o transcendental sentimental que gruda na pele e unta os vizinhos de um bairro tradicional.
Para a reportagem, entrevistas foram canceladas, declarações inflamadas revistas, decisões cruciais tomadas, vozes que se queixavam e se acusavam mutuamente silenciadas, os partidários de diferenças cores unidos nas cores das bandeiras do Vai Tu e do Marítimo, estendidas sobre o corpo de um bom filho que partia.
Menos um filho num bairro onde a rotina é a da partida dos bons filhos, seja pelas rendas na hora da morte, seja pela hora da morte, mesmo.
E a história que começava de uma maneira, virava do avesso, na derradeira peripécia de José.
A morte do canalizador da Bica como última metáfora desta crónica, a metáfora da morte da Bica, ensinou-me, porém, que por baixo das camadas da gentrificação, do comércio gourmetizado que dizima as lojas tradicionais, da especulação que faz a casa dos vizinhos um negócio, que apesar dos diversos interesses que costuram a atividade política, em cada bairro típico de Lisboa ainda pulsa um coração rústico, tradicional, um coração simples.
Simples como o coração de José, o canalizador da Bica.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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