Num consultório médico, a solução para um problema nem sempre é uma questão de ciência. “Muitas vezes as pessoas vêm à consulta com uma queixa de dor física, mas se eu for mais a fundo, acabo por perceber que há todo um contexto para aquela dor.” Cristiano Figueiredo é médico de família na Unidade de Saúde Familiar da Baixa e reconhece que nem sempre encontra na ciência médica ou num fármaco a cura para o problema do doente.

“Pode ser um senhor idoso que vive sozinho sem família e que perdeu todos os seus vizinhos. Ou é alguém que perdeu o emprego e se sente perdido. Receitar um antidepressivo não vai ajudar totalmente. Pode ser necessário, mas só isso não vai resultar. Temos de ser curiosos e perceber o que se passa realmente na vida da pessoa. E quando percebemos o contexto, abre-se todo um leque de novas possibilidades.”

É a isso que se propõe o projeto de prescrição social que os médicos deste centro de saúde estão a aplicar aos seus doentes desde 2018.

Cristiano Figueiredo acredita que as diferentes atividades que a comunidade oferece são uma resposta à solidão e isolamento. Foto: Rita Ansone.

São hoje mais de mil beneficiários deste modelo de prescrição social. E o que é isto: em vez de prescrever medicamentos ou métodos clínicos, prescreve ações socias tais como workshops, convívio ou até exercício físico.

Um modelo já aplicado noutros países e trazido por Cristiano Figueiredo para Portugal. Um verdadeiro trabalho de equipa entre o centro de saúde, os serviços da comunidade e o setor social, para uma resposta a vários problemas sociais e emocionais, como o isolamento, a depressão ou a ansiedade.

Que o diga Maria Patrício, de 74 anos. “Mais vale uma aula de ginástica do que tomar um comprimido”, diz ela, hoje frequentadora assídua da Universidade Sénior, na Rua da Prata. “Sou uma pessoa muito ansiosa e costumo dormir mal, mas com as aulas de ginástica já me sinto muito melhor e o meu sono melhorou” – sorri com a lembrança.

Hoje, Maria é uma mulher com mais agilidade, mais bem-disposta e já é capaz de dar uma volta entre a Avenida Almirantes Reis e a Baixa com o filho Pedro. Ele que, aos 45 anos, a acompanha na ginástica e não só: frequenta aulas de história e psicologia para ocupar um tempo que, antes, passava muito devagar e sem qualquer estímulo.

Com uma doença cerebral fruto de uma queda aos nove meses e que o fez perder a visão, Pedro não consegue ter uma vida autónoma. Mas desde que entrou na Universidade Sénior a sua vida “deixou de ser monótona” e agora tem sempre um motivo para sair de casa. “Ando mais bem-disposto.” E não foram precisos medicamentos: ele e a mãe só precisaram de um conselho diferente do médico da USF da Baixa.

Maria e Pedro Patrício frequentam as aulas da Universidade Sénior e já sentem melhorias na sua qualidade de vida. Foto: Rita Ansone.

Olhar o doente como um todo… e com a ajuda de todos

Tudo começa como habitual: com uma consulta médica. Mas em vez de o médico perguntar apenas o que dói ou preocupa o doente, e de esticar o estetoscópio, o que faz é uma análise integrada ao contexto social do paciente.

Depois, o utente é encaminhado para um assistente social. Em Portugal, este papel cabe ao assistente social, mas noutros países onde a prescrição social é aplicada o termo mais adequado é link worker – uma espécie de tutor que pode ser alguém da Câmara Municipal ou da Junta de Freguesia, por exemplo.

Parece simples e lógico, mas para que funcione e tenha um verdadeiro impacto nos utentes é preciso que haja uma estrutura bem articulada entre o centro de saúde, o assistente social e as respostas que a comunidade oferece.

“Tem de existir um circuito fechado de ação entre os cuidados de saúde primários, assistente social e os recursos da comunidade e vice-versa”, explica Andreia Coelho, assistente social, que está no projeto desde o início.

Estes setores sempre trabalharam para a mesma população e procuravam as mesmas soluções, mas estavam a trabalhar de forma isolada.

À esquerda, Cristiano Figueiredo, médico que trouxe a abordagem da Prescrição Social para Portugal, à direita, Daniel Morse, que está a tentar fazer o mesmo nos Estados Unidos da América. Foto: Rita Ansone.

“Havia necessidade de estes sectores se encontrarem, porque normalmente não trabalham em conjunto, apesar de servirem a mesma população e de estarem sediados no mesmo bairro”, diz Cristiano Figueiredo. Ele, que trouxe o conceito de Prescrição Social para Portugal após ter tido uma experiência profissional no Reino Unido, país que é pioneiro desta abordagem e que integrou a Prescrição Social no Serviço Nacional de Saúde em 2019.

O primeiro passo foi, então, unir esta cidade separada. E, em meados de 2018, o médico começou a promover várias reuniões entre o seu centro de saúde, assistentes sociais e várias associações e instituições da Baixa. Relata que a adesão foi muito grande e cedo se percebeu que havia várias respostas sociais que o centro de saúde não podia oferecer, mas que estavam ali ao lado, na vizinhança.

Como são exemplo as aulas de ginástica e da universidade sénior, que Maria e Pedro frequentam, mas também voluntariado, workshops de culinária ou aulas de alfabetização. Tudo novas receitas para os mesmos utentes.

Daniel Morse, em contacto com o Reino Unido, está a aplicar a Prescrição Social em várias clínicas dos Estados Unidos da América, Foto: Rita Ansone.

Porque se um médico perguntar “o que o fazia sentir feliz em criança” e “se o utente responder ‘música’, talvez agora ter aulas de música possa ser uma solução para se sentir menos sozinho”, diz Daniel Morse, diretor do Social Prescribing USA, que tem trabalhado com os profissionais do Reino Unido para implementar este projeto nos EUA, e que estava de visita a Lisboa.

No entanto, é importante que quando o doente chega ao assistente social, venha “clinicamente estável do ponto de vista da saúde mental”, refere Andreia Coelho. As atividades prescritas têm o propósito de melhorar o estado de saúde e se a medicação for diminuída ou retirada, “é um ganho a todos os níveis, quer para o utente e centro de saúde, quer para o serviço nacional de saúde”, que está a poupar recursos.

Mas o trabalho não deve acabar n prescrição. A assistente social acompanha também o utente na participação das atividades, na medida em que são monitorizadas as presenças e faltas. “Por exemplo, na Universidade Sénior, enviam-nos um quadro com as presenças e ausências e no caso de faltas tentamos perceber o que se passa e arranjar outras soluções”, diz a assistente social, sublinhando o papel da articulação entre os setores para que o processo não se perca.

As reuniões cada vez mais frequentes para articular os três setores e afinar estratégias, a criação de um sistema informático para a referenciação da Prescrição Social e uma listagem das soluções existentes na comunidade, levaram à consolidação de um projeto que começou por ser piloto na USF da Baixa. Hoje, já se estendeu a mais cinco centros de saúde: as USF Almirante, Sétima Colina, Penha de França, Mónicas e Ribeira Nova.

O desafio de cuidar num lugar de várias culturas

A localização da USF da Baixa no Martim Moniz e o facto de servir as freguesias de Santa Maria Maior, Arroios, Penha de França, São Vicente e Misericórdia faz que a população que serve seja bastante diversa e, por consequência, com necessidades também diferentes que exigem respostas personalizadas.

“Servimos 94 nacionalidades diferentes e diria que 30% dos utentes são migrantes e a maioria deles são do Sudeste Asiático. Começamos a reparar que estas pessoas sofrem de doenças crónicas, como diabetes ou hipertensão, que estão diretamente relacionadas com a alimentação”, diz o médico de família Cristiano Figueiredo.

Feito o diagnóstico desta população, a equipa da USF da Baixa percebeu que o corpo médico não era o mais indicado para ajudar estes migrantes. “Nós queríamos recomendar uma alimentação saudável baseada na dieta portuguesa, mas sabemos que não é a mais adequada para estas pessoas e também não conhecemos a dieta sul asiática.”

Solução? Encaminhar estes utentes para workshops de alimentação saudável de acordo com a gastronomia do seu país, na Cozinha Popular da Mouraria – um projeto de partilha das cozinhas do mundo. “Com este conhecimento, estes migrantes podem cozinhar receitas saudáveis com base na sua cultura”, acrescenta o médico.

A Cozinha Popular da Mouraria e o NIALP são duas associações que, com a USF da Baixa, ajudam na integração dos migrantes. Foto: Rita Ansone.

Outra característica destes migrantes é o facto de muitos serem mulheres grávidas ou jovens mães. Vindas de um país longínquo e de uma cultura e língua bastante diferente, muitas delas vêm sozinhas ou passam os dias desacompanhadas, porque o marido trabalha fora de casa. Sentimentos como solidão e depressão começam a tornar-se frequentes entre estas mulheres.

E também aqui os médicos e os assistentes sociais procuraram respostas que pudessem ir ao encontro das especificidades culturais. Em parceria com o NIALP (Associação Intercultural de Lisboa), estas mães frequentam um Clube de Gravidez que tem como objetivo dotá-las das ferramentas necessárias para cuidar dos filhos, bem como pô-las em contacto com outras mães da mesma cultura. É um espaço de partilha comum para que a solidão de estar grávida num país diferente não se faça sentir tanto nas suas vidas.

Mas tratar quem vem de fora também pode passar por prescrever a língua portuguesa.

Fanta Sonco imigrou da Guiné-Bissau para tratar de um problema vascular. Em consultas médicas, percebeu-se que Fanta não sabia ler nem escrever e que, para além dos problemas burocráticos associados a quem chega a Portugal, isto estava a dificultar ainda mais a sua integração e autonomia em Lisboa. Então, o médico receitou a esta guineense de 39 anos que integrasse um programa de mentores do CNAIM (Centro Nacional de Apoio a Integração de Migrantes) e que frequentasse aulas de alfabetização na Escola Marquesa de Alorna.

Fanto veio da Guiné-Bissau e não sabia ler nem escrever. Foto: Rita Ansone

Andreia Coelho considera Fanta um “caso de sucesso” da Prescrição Social. Antes de ir às aulas, tinha um emprego muito precário e trabalhava apenas duas horas. Agora, conseguiu um trabalho e salários melhores.

Para além disso, são visíveis as melhorias no seu bem-estar.

“Quando a conheci, era uma pessoa muito cabisbaixa e agora já sorri mais”, diz a assistente social Andreia Coelho. Também Cristiano Figueiredo nota “melhores níveis de bem-estar, menos idas ao Centro de Saúde e uma Fanta mais autónoma e integrada na sociedade”.

Para Fanta, é um “orgulho poder assinar o nome, enviar mensagens e conseguir ler os documentos”. Conjugando dois empregos com as aulas à noite, fala hoje muito melhor português e tem uma vida muito mais fácil num país que lhe era tão mais estranho até há pouco tempo.

A receita para o combate à solidão

Um dos grupos que mais beneficia deste projeto são as pessoas com mais de 55 anos. Por norma, estão a terminar a vida ativa, foram despedidas ou vivem sozinhas. Estes fatores levam a que se sintam sem um propósito, perdidos e sozinhos.

“Algumas destas pessoas são muito idosas e vivem em prédios em que só existe Airbnb, sentindo-se muito solitárias”, diz Cristiano Figueiredo.

Por isso é que, para estas pessoas, as aulas na Universidade Sénior – que podem ser de história, crochet, pintura, ginástica, informática ou de línguas – são uma forma de se sentirem mais ativas e até prevenir outras doenças. “Temos alguns casos em que os utentes evidenciam alguns sinais de esquecimento. Não é demência nem é grave e, por isso, assistir a estas aulas pode ser uma excelente forma de prevenção.”

Prevenção ou ocupação do tempo são alguns dos objetivos da Universidade Sénior e Pedro Patrício já nota os resultados destas aulas já que, como dizia no início desta história, a vida tornou-se muito mais interessante desde que se fez aluno desta instituição.

Na USF da Baixa, a Prescrição Social existe desde 2018 e já abrangeu cerca de mil utentes. Foto: Rita Ansone

Uma das outras instituições parceiras da Prescrição Social é a Pedalar Sem Idade. Com raízes na Dinamarca, este projeto cumpre dois objetivos: por um lado, idosos e pessoas com mobilidade reduzida têm a oportunidade de andar de bicicleta e passear pela cidade; por outro, estes passeios são proporcionados por voluntários que podem também eles ser pessoas que se sentem sozinhas.

Ambos os participantes veem a sua vida melhorada: “Os primeiros têm a oportunidade de andar de bicicleta, fazendo exercício físico ao mesmo tempo que conhecem Lisboa de outra forma. E os voluntários encontram nestes passeios uma forma de conhecer pessoas diferentes, sentindo menos a solidão”, explica o médico Cristiano.

O Pedalar Sem Idade chegou em 2018 e angariou passageiros em Lisboa. Foto: Inês Leote.

O meio para reduzir a afluência às urgências?

Utentes, profissionais de saúde e assistentes sociais reconhecem que esta nova forma de prescrição é um projeto inovador que une vários setores e tem tido um impacto bastante positivo na comunidade que servem. Aliás, “agora é difícil imaginar a USF da Baixa sem a Prescrição Social”, confessa Cristiano Figueiredo.

Esta abordagem está a ser avaliada pela Escola Nacional de Saúde Pública que cedo se aliou a este projeto. Sónia Dias, presidente da instituição, explica que está a ser feita uma monitorização no sentido de se perceber quais os fatores que facilitam a implementação da Prescrição Social.

“Estamos a analisar três níveis: as questões da qualidade de vida, do bem-estar, da saúde física e mental e também da satisfação de quem é referenciado; as questões da articulação entre os setores e as questões do impacto desta nova prática na sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde”, diz Sónia Dias.

Sónia Dias, presidente da Escola Nacional de Saúde Pública, faz uma avaliação positiva do impacto da Prescrição Social. Foto: DR.

Este último parâmetro está a ser estudado já que muitos dos utentes referenciados são também “utilizadores em excesso das unidades de saúde e das respostas sociais”. Desta forma, a também investigadora acredita que, maximizando os recursos disponíveis na comunidade que se adequam melhor às necessidades das pessoas, diminui-se a utilização dos cuidados de saúde, contribuindo para a sustentabilidade do sistema.

“Há estudos no Reino Unido que demonstram que uma boa iniciativa de Prescrição Social pode reduzir, por exemplo, as utilizações das urgências médicas”, diz Sónia Dias.

A prescrição social lá fora:

Apesar de ser difícil medir o impacto e o sucesso da Prescrição Social, já que a avaliação é qualitativa e muitas vezes os resultados são partilhados pelos próprios utentes, há já alguns estudos que mostram a sua eficácia no Reino Unido – país onde esta abordagem está amplamente consolidada nos Centros de Saúde.
Num programa de Prescrição Social, em Shropshire, avaliado entre 2017 e 2019, concluiu-se que os utentes referenciados para a Prescrição Social diminuíram em 40% as suas consultas com o médico de família, em comparação com quem não beneficiou desta abordagem. Este estudo mostrou também que foram relatadas melhorias significativas em termos de bem-estar, autonomia do utente e solidão.
Em 2017, a Universidade de Westminster publicou um estudo no qual identificou uma redução de 28% de consultas com o médico de família e uma redução de 24% nas idas às urgências de quem recebeu a Prescrição Social.
Fruto de uma parceria entre voluntários e associações comunitárias, o Serviço de Prescrição Social de Rotherham fez com que 8 em 10 pessoas referenciadas para prescrição usassem menos o Serviço Nacional de Saúde: houve menos internamentos hospitalares, idas às urgências e visitas ao médico de família.
E um estudo de um projeto de prescrição social em Bristol concluiu que foram notadas melhorias nos níveis de ansiedade e na perceção sobre a saúde e a qualidade de vida dos beneficiários da prescrição social.

Em Portugal e no caso da USF da Baixa ainda não há estes estudos, mas está a ser feita uma tese de doutoramento, coordenada por Sónia Dias, para avaliar o impacto deste projeto, cujos resultados só estarão disponíveis em 2024.

No decorrer da investigação, já foram concretizadas algumas entrevistas a utentes, que revelam uma avaliação muito positiva – embora ainda não haja dados quantitativos concretos, como a diminuição de consultas ou prescrições de medicamentos, já que “a Prescrição Social ainda não tem tempo suficiente que permita já ter uma avaliação de impacto”, refere a diretora da Escola Nacional de Saúde Pública. Mas há uma perceção de que tal está a acontecer.

“Conseguimos dizer que quem começou a frequentar a Universidade Sénior sente-se melhor e mais ativo. O mesmo é válido para os migrantes: “sentem-se menos sozinhos e mais integrados”, resume Cristiano Figueiredo. “Após o processo de aceitação, que por vezes pode ser estranho ver prescrita uma atividade e não um medicamento, o feedback é muito positivo.”

Mas há mais aspetos positivos que resultam deste projeto: é que as instituições parceiras estão a criar sinergias entre si para dar respostas a outros problemas. “Assistimos à duplicação de respostas, na medida em que os parceiros começam também a trabalhar em rede, o que lhes permite ter uma maior articulação e conhecimento das várias áreas em que prestam serviços. Isto foi também uma grande mais-valia indireta desta iniciativa”, diz Sónia Dias.

Ao juntar soluções e vontades comuns, a Prescrição Social “permite trabalharmos a equidade e a redução das desigualdades em saúde, porque nós trabalhamos claramente com quem mais precisa.”


Daniela Oliveira nasceu no Porto, há 22 anos, mas a vontade de viver em Lisboa falou mais alto e há um ano mudou-se para a capital. Descobrir Lisboa e contar as suas histórias sempre foi um sonho. Estuda Ciências da Comunicação na Católica e está a fazer um estágio na Mensagem de Lisboa. Este artigo foi editado por Catarina Reis.


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