Mulheres cientistas? Um disparate, diria o médico cientista Cajal. Ele que, no início do século XX falava de um papel único da mulher: “A mãe almeja viver somente na memória dos seus filhos, enquanto o pai anseia, além disso, sobreviver nos fastos da história”.

Disse-o num outro tempo, quando estudar não era coisa para meninas. Num tempo em que os livros não eram mais que mundos obscuros, reservados à esfera masculina, e a mera ideia de abrir liceus ou faculdades a quem usasse vestido era motivo de afronta.

Foi assim até ao dia em que algumas mulheres decidiram desafiar o status quo e fazer da sua vida uma luta pelo conhecimento e pela ciência.

Carolina Beatriz Ângelo, Mathilde Bensaúde e Branca Edmée Marques revolucionaram o país que conhecemos hoje – uma revolução que leva o nome de Lisboa com ela.

Falar destas mulheres cientistas é também falar do futebol da cidade, de como um voto na antiga freguesia de São Jorge de Arroios abriu uma revolução feminista no país, serve para explicar a história de uma rotunda nos Olivais e como Lisboa não é só o ponto de partida, mas aquele onde se escolhe voltar.

“Ó vó Carolina, dê-me aqui uma ajuda.” Quando Maria João se sente assoberbada com a vida ou o trabalho, só há um lugar onde os seus dilemas encontram solução: é naquela secretária, no escritório, onde uma moldura guarda a imagem desbotada e a preto e branco da sua bisavó, a mulher por quem chama.

A “vó Carolina” é Carolina Beatriz Ângelo. Ela que foi a primeira cirurgiã a trabalhar no Hospital São José, uma das republicanas fervorosas que coseu as bandeiras que desfilaram no dia da Revolução e a primeira mulher a exercer o direito do voto em Portugal.

Carolina Beatriz Ângelo

Um nome que evoca um passado marcante no país, um outro tempo em que Carolina usava binóculos nas corridas de cavalos e na ópera, o tempo em que arrecadou um diploma do curso de Medicina – ainda hoje meticulosamente guardado.

É num consultório do hospital Pulido Valente que a psicóloga Maria João Fagundes viaja até esse outro tempo, que nunca conheceu realmente, mas que talvez consiga imaginar ao olhar para a fotografia a preto e branco de uma velha casa na Guarda. Foi aí que nasceu Carolina Beatriz Ângelo, em 1878, nesse tempo em que estudar não seria para uma mulher.

Primeiro, as mulheres conquistaram os liceus, ao ser promulgado em 1888 a criação do liceu feminino. Depois, as faculdades. Domitila Hermizina Miranda de Carvalho chega à Universidade de Coimbra em 1891 para estudar Matemática, contrariando aquilo que D. António da Costa, o primeiro titular da pasta da Instrução Pública em Portugal, dissera sobre a possibilidade de alargar o ensino superior às mulheres:

“Sinceramente suponho, em meu humilde parecer, que a emancipação política e científica não é um princípio natural da mulher. Outras carreiras lhe podem ser destinadas, outras fontes lhe devem ser abertas; esta não. Cumpre à mulher educar o homem, não lhe cumpre ser educada como ele”.

A afirmação das mulheres aconteceu de forma lenta, um desses caminhos cheios de percalços. Mas fez-se graças à perseverança daquelas que acreditaram que a igualdade era um direito. Aquelas de que falaremos triunfaram no mundo da ciência, deixando um lugar no coração daqueles que as conhecerem e na cidade onde viveram.

Cirurgiã… e sportinguista

A revolução de Carolina começou em casa. Era filha de Emília Clementina de Castro Barreto e de Viriato António Ângelo, ele um republicano convicto, ligado à atividade jornalística da Guarda e, portanto, de ideias bastante progressistas.

“Eu acho muito injusto quando falamos de grandes pessoas não falarmos das pessoas que as ajudaram”, diz Maria João. “Mas se o meu trisavô, que era um republicano, não tivesse deixado a minha bisavó vir para Lisboa…”.

Maria João Fagundes é bisneta de Carolina Beatriz Ângelo. Foto: Inês Leote

Se tal não tivesse acontecido, a história seria muito diferente: é que Carolina Beatriz estudou no Liceu da Guarda e veio para a capital, acompanhada da mãe, para estudar medicina na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. E assim desafiou as barreiras do seu tempo.

Não foi a primeira licenciada em Medicina, a pioneira foi Elisa Augusta da Conceição de Andrade. Mas foi Carolina Beatriz a primeira a exercer cirurgia, no Hospital São José, abrindo também um consultório na rua São Nicolau.

A cirurgia, um mundo que parecia ainda mais obscuro para uma mulher. “Fisicamente, é uma atividade, uma prática médica que exige muito esforço, os instrumentos exigiam alguma capacidade física”, recorda a bisneta.

E Carolina destacou-se neste mundo difícil, não só por se ter aventurado na cirurgia, mas também pela publicação da sua dissertação revolucionária, Prolapsos Genitais.

Em 1902, quando terminou o curso, casou com o primo, Januário Barreto, também ele médico e ativista republicano. Januário é recordado pela bisneta com carinho: foi ele um dos ‘casapianos’ que trouxe o futebol para Portugal (o Pavilhão de Desportos do Casa Pia tem o nome dele). E Maria João é, tal como o bisavô, uma sportinguista ferrenha. O nascimento da psicóloga marca, aliás, o início da sua história de amor com o clube, quando a mãe recebeu na maternidade um telegrama de celebração: “Parabéns por mais uma leoa!”.

Licenciados em Medicina. A única mulher, Carolina Beatriz Ângelo, ao lado do marido (à direita), Januário Barreto. Foto: Inês Leote

Os bibes que, afinal, eram bandeiras da revolução

Há uma história que Maria João ouviu vezes sem conta da boca da avó Maria Emília, filha de Carolina e de Januário. É que a vida dos dois não se fez só de medicina e futebol. Fez-se também de luta política, republicana. E, dessa luta, há um episódio caricato que sobreviveu à passagem do tempo: foi em segredo que Carolina e a amiga também revolucionária Adelaide Cabete coseram as bandeiras portuguesas que seriam expostas no dia 5 de outubro de 1910.

Nessa altura, Maria Emília era uma menina pequena, que viria a descobrir esse segredo – e contá-lo-ia, de forma caricata, à sua neta Maria João.

A proclamação da República em 1910. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Elas bordaram lá em casa, em profundo segredo, tanto foi em segredo que um dia a minha avó entrou na sala e viu a mãe a bordar e perguntou: ‘o que é que estão a fazer?’. E a minha bisavó responde: ‘Estamos a fazer uns bibes para os meninos do asilo’ e a minha avó indigna-se ao ver o vermelho e verde dos bibes: ‘oh mãe, coitadinhos dos meninos‘”.

Os “bibes para os meninos do asilo” anunciaram a República. Essa República que marcaria a vida de Maria Emília, do filho Jorge Fagundes, advogado de presos políticos da ditadura, e de Maria João. “Os valores republicanos, a solidariedade, a fraternidade…”, elenca a psicóloga. “Esse sentimento do coletivo que os meus bisavós, avós e que o meu pai também tinham. Foram esses os valores da bisavó Carolina que eu transmiti ao meu filho, que é um republicano e um feminista!”.

O voto em São Jorge de Arroios que quis mudar o país

O seu trineto é um feminista. E o feito pelo qual Carolina é mais conhecida tudo tem que ver com o feminismo: foi ela que, no dia 28 de maio de 1911, correu os jornais portugueses, anunciando os ventos da mudança.

“A estas horas já deve ter transposto as fronteiras a sensacional notícia de ter exercido o voto nos colégios eleitorais de Portugal, pela primeira vez, uma mulher“.

A Vanguarda, 28 de maio de 1911.

Tudo isto depois de empreendida uma luta: dias antes das eleições para a Assembleia Constituinte, Carolina dirigira um requerimento ao presidente da comissão recenseadora do 2º Bairro de Lisboa no sentido de incluir o seu nome no novo recenseamento eleitoral.

Afinal, ela cumpria todos os requisitos impostos pela lei: era uma cidadã portuguesa com mais de 21 anos, sabia ler e escrever e era chefe de família (enviuvara recentemente, tendo a única filha, Maria Emília, a seu cargo).

Exmo Dr. Juiz,

D. Carolina Beatriz Ângelo, abaixo assinada, viúva, médica, residente na rua António Pedro, S.D., 1º andar, desta cidade de Lisboa, freguesia de S. Jorge de Arroios (2º bairro), pelo presente, nos termos e para os efeitos do art. 28º do decreto com força de lei de 14 de março de 1911, para v. exª reclama contra a sua exclusão de recenseamento eleitoral (…) A reclamante tem capacidade eleitoral; sabe ler e escrever, é chefe de família, é cidadão português, Código Civil Arts. 18º e 20º – pelo exposto e mais pelo douto suprimento, deve a reclamante ser inscrita no recenseamento eleitoral pela freguesia do seu domicílio – em homenagem à Lei, à Democracia, à Equidade e à Justiça. Nestes termos requer a v. exª e espera deferimento, seguidas as demais prescrições dos decretos citados.”

Carolina Beatriz Ângelo Ana de Castro Osório
A amiga Ana de Castro Osório com Carolina Beatriz Ângelo. Foto: DR

A Capital, 24 de abril de 1911, recurso de Carolina Beatriz Ângelo.

Mas o presidente negou o requerimento, remetendo-o para o ministro do Interior, António José de Almeida.

Revoltada, Carolina levou a luta para o Tribunal da Boa-Hora, calhando o processo ao juiz João Baptista de Castro, da 1ª Vara Cível. Este foi o homem que faria também história, concedendo a Carolina Beatriz Ângelo o direito ao voto.

No dia 28 de maio de 1911, Carolina saiu de casa em direção ao Clube Estefânia, na antiga freguesia de São Jorge de Arroios, e votou.

Um feito que seria depois travado: o voto só seria realmente concedido às mulheres (e com limitações) a partir de 1931 e só com o 25 de abril de 1974 se tornaria universal.

A memória esquecida de Carolina que um hospital lisboeta resgatou

Durante anos, o nome de Carolina Beatriz Ângelo foi esquecido pelo país. “Não se falava da minha bisavó nas aulas de História”, lamenta Maria João. Era em casa que as memórias eram preservadas, mas sem se prestar o “culto da personalidade”. “Falava-se da avó Carolina como se falava das outras avós, sempre com aquele respeito de ter sido uma mulher muito lutadora”.

E talvez o passado da bisavó tenha feito de Maria João médica psicóloga – isso e os livros da Agatha Christie, tão reveladores da natureza humana.

Lentamente, a memória de Carolina Beatriz Ângelo foi sendo resgatada. Para Maria João, foi com a construção do hospital em Loures, a primeira pedra lançada em 2010, que a própria História foi reescrita. Um hospital que, aliás, foi criado por uma equipa feminina.

A partir daí, Maria João começou a sentir a mudança.

A psicóloga lembra-se também de ir à Guarda para a inauguração da rua Carolina Beatriz Ângelo e de se ter perdido. Ao encontrar um polícia, perguntou-lhe se sabia onde ficava a rua. “E ele disse-me: ‘Então não sei? Claro que sei!’. E fez uma festa quando soube que eu era bisneta da Carolina Beatriz”.

Hoje, há várias ruas, em diferentes cidades, com o nome desta mulher. Na Grande Lisboa, há duas pracetas Carolina Beatriz Ângelo, uma na Amadora e outra em Odivelas. É talvez a prova de que Carolina Beatriz Ângelo não morreu aos 33 anos, nesse dia em que regressava de elétrico de uma reunião da Associação de Propaganda Feminista.

Ela vive ainda hoje.

O professor de física Filipe Duarte Santos lembra-se de ser pequeno e de estar doente durante o que lhe pareceu um longo período de tempo. Uma amiga da família foi a sua salvação: uma mulher que lhe ensinaria muito sobre plantas e batatas. Ela, que era uma fitopatologista, a única mulher entre os fundadores da Sociedade Portuguesa de Biologia e defensora das culturas nacionais no Ministério da Agricultura.

Mathilde Bensaúde

O nome dela era Mathilde Bensaúde.

“Ela ensinou-me a fazer um herbário”, recorda. “Íamos ao campo nos arredores de Lisboa para observar as plantas silvestres, ela sabia os nomes… e isso teve uma influência grande em mim”.

O menino que se fez físico por uma grande mulher

Filipe cresceu numa família de artistas: o pai era escultor, a mãe pintora. E o gosto pela arte não dissipou na geração seguinte – basta reparar nos quadros que forram as paredes da sua sala de estar.

Mathilde Bensaúde era prima muito afastada da avó de Filipe. Terá vindo de uma grande família judaica que chegara dos Açores a Lisboa – as fontes contradizem-se: há quem diga que nasceu em Lisboa, há quem diga que nasceu em Ponta Delgada, no dia 23 de janeiro de 1890.

Era filha de Alfredo Bensaúde, diretor e fundador do Instituto Superior Técnico, e de Jane Gabrielle Eleionore Oulman, autora de livros infantis e de manuais didáticos. O seu avô era José Bensaúde, que sempre se interessara pela educação da neta, incutindo-lhe, desde pequena, o interesse pela agricultura, ao levá-la para a sua plantação de tabaco.

O percurso dela levá-la-ia a vários cantos do mundo, mas seria Lisboa o destino final. E foi aí que se cruzou com um pequeno Filipe doente. Sem o saber, Mathilde faria dele físico, professor na Faculdade de Ciências de Lisboa, doutorado em Física Nuclear pela Universidade de Londres.

Filipe Duarte Santos aprendeu muito com Mathilde Bensaúde. Foto: Inês Leote

A biblioteca que guarda a memória de Mathilde

No piso de cima da casa de Filipe, ele construiu uma biblioteca, um verdadeiro oásis para leitores. É lá que guarda livros e livros com o apelido “Bensaúde”. “Foi uma geração notável, de facto”, diz ele.

Muito do império que construiu nesta biblioteca deve-se a tudo o que aprendeu com Mathilde. São livros de ciência, são borboletas embalsamadas, são memórias dessa mulher que, com a tenra idade de 13 anos, viajou para o sul da Alemanha para estudar.

Depois, foi na Suíça que concluiu os estudos secundários, numa escola feminina em Lausanne. Finalmente, a Universidade, também em Lausanne, onde estuda Física, Química e Biologia.

“Numa carta a um amigo transcrita por Aurélio Quintanilha, Mathilde descreve a sua educação como ‘bastante poliglota e um tanto descosida’, devido à preocupação dos pais em lhe proporcionarem uma ‘instrução interessante e atmosfera inteligente’.”

‘Meninas Prendadas’ e ‘Fêmeas Ambiciosas’: Portugal, Cajal e o papel da mulher na investigação biológica na primeira metade do século XX

Um interregno em Portugal leva-a a trabalhar com um cientista alemão até ao seu regresso à faculdade – desta vez em Paris, na Sorbonne.

O ambiente na capital francesa é estimulante, especialmente porque convive com figuras importantes do mundo da ciência. Mas, com o eclodir da Grande Guerra na Europa, o pai ordena que Mathilde regresse a Lisboa, deixando para trás essa Paris de que tanto gostava.

“Ia morrendo de desgosto…”, terá dito ela.

“Diante das minhas lágrimas incessantes, em fins de 1915, o meu pai deixou-me voltar a Paris. Mas que diferença eu lá achei! Os rapazes já lá não estavam, a Universidade encontrava-se cheia de rapariguinhas de condições modestas, assustadas, demasiado dóceis. Os professores não tardaram a tomar tons de escola primária… e tive a impressão de que estava de novo nessa terra de disciplina, mas sem espírito: Lausanne”.

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Mathilde Bensaúde com o jovem Filipe. Foto: Inês Leote

A mulher por quem tocavam os sinos

É no Laboratório de Botânica da École Normal Supérieure que acaba por reencontrar “essa vida, essa curiosidade perante a vida” que a encantavam na zoologia e na embriologia. Esse encanto resulta numa monografia sobre os basidiomicetos (um tipo de cogumelos).

Uma investigação que, à custa de ter sido realizada durante a Guerra, quando não havia comunicação científica com a Alemanha, expunha duas ideias já divulgadas pelo alemão botânico Hans Kniep. Porém, a terceira ideia, que consistia na explicação do mecanismo de sexualidade dos basidiomicetos, foi inédita.

Mathilde tinha apenas 27 anos e era já revolucionária.

Mathilde Bensaúde, em jovem. Foto: Inês Leote

Entretanto, foi na Faculdade do Winsconsin, em Madison, que se especializou em fitopatologia. Levaria essas aprendizagens para os Açores, onde montou um laboratório, estudando pragas e doenças de vários produtos agrícolas para exportação.

Aí, esteve sempre em contacto com a comunidade, o que a leva mesmo a escrever nas suas notas: “Os agricultores parecem lidar bem comigo e não se importam de eu ser uma mulher”.

Mathilde Bensaúde
Os ministros do Comércio e da Agricultura com Mathilde Bensaúde durante a visita inaugural da Exposição Demonstrativa da Cultura da Batata, na Associação Central de Agricultura. Foto: Debategraph

Uma experiência que se revelou diferente quando, anos mais tarde, a trabalhar no Ministério da Agricultura, a população do nordeste de Portugal tocava os sinos da igreja para anunciar a chegada de Mathilde: ela trazia sempre más notícias quanto à qualidade das batatas.

Ao longo da sua carreira, identificou um parasita dos citrinos portugueses, estudou doenças de caráter criptogâmica dos trigos cultivados em Portugal, implementou um conjunto de legislações que foram importantes para garantir medidas sanitárias para as batatas e outras colheitas. Com apenas 50 anos, Mathilde demitiu-se das suas funções no Ministério da Agricultura e regressou aos Estados Unidos, onde continuou o seu trabalho sobre a batata.

Em Lisboa, a ajuda dela seria fundamental para a criação do Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC), uma unidade de investigação do Instituto Superior de Agronomia (ISA).

E, claro, fundamental na formação de Filipe.

Uma placa no Wisconsin

As memórias do professor misturam-se com as memórias de Mathilde. E é pela casa dele que resistem muitas delas, como um conjunto de livros que ela lhe ofereceu. “São livros pequeninos, mas deliciosos!”, diz.

É como se tivesse acertado na lotaria que diz, ao abrir um deles: “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade dos homens, de Jean Jacques Rosseau! Este é o mais célebre! Sorte, uh?”.

Mathilde morreu em 1969 nesta cidade, dando o nome a uma rotunda nos Olivais. Fez tanto pela Biologia… e por Filipe. Como, aliás, recordam os netos, que nesta grande biblioteca deixaram um desenho pueril de um professor de Física, que calha de ser o avô deles.

O desenho dos netos de Filipe Duarte Santos. Foto: Inês Leote

Mas o legado de Mathilde não fica por aqui. Filipe ainda se lembra bem daquela altura em que tirou um ano sabático e rumou até à Faculdade do Wisconsin. Um dia, ao vaguear pelos corredores, pôs-se a reparar nas placas que assinalavam os nomes das salas.

De repente, parou, ao deparar com o nome de uma mulher que conhecera há anos, e que lhe mudara a vida: Mathilde Bensaúde.

Quando a filósofa Ana Luísa Janeira era pequena, o pai ofereceu-lhe no Natal um livro que mudaria a sua vida para sempre. O título era A Pedra Mágica e a Princesinha doente, de Adolfo Simões Muller. Essa era a história, contada para crianças, de como Marie Curie descobrira a radioatividade.

Quando terminou o livro, Ana Luísa virou-se para o pai e disse-lhe: “Quando crescer, vou doutorar-me em Paris, como a Marie Curie”.

Cumpriu a promessa. E, quando se doutorou em Paris, fez questão de se vestir de preto, tal como Curie se vestira nas suas provas, por estar de luto pela morte do pai. Talvez lhe desse sorte, pensou.

Não é, pois, de espantar que, anos mais tarde, já a trabalhar como professora de Filosofia das Ciências na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, na altura na rua da Escola Politécnica, se tenha interessado por uma antiga professora do seu departamento: é que Branca Edmée Marques já trabalhara com Marie Curie.

Branca Edmée Marques

O interesse levou-a a entrevistá-la. Nessa altura, Branca Edmée Marques estava já aposentada, embora por vezes passasse pela Faculdade de Ciências. Tinha 83 anos, vivia numa casa em Campolide. “Entrevistei-a em casa dela e talvez a minha memória se tenha alterado ao longo do tempo sobre a figura dela”, recorda Ana Luísa.

A lisboeta que sonhava com Paris

Branca Edmée Marques nasceu a 14 de abril de 1899 em Lisboa, na freguesia dos Anjos, filha de Berta Rosa Marques e de Alexandre Théodor Roux, um senhor com diploma da École Beaux-Arts Paris e que morreu quando a filha tinha oito anos. Branca andou no Colégio Luso-Brasileiro no ensino primário e depois seguiu para o Liceu Maria Pia e para o Liceu Pedro Nunes.

Ir para a faculdade, algo ainda raro entre as mulheres, parece que sempre foi um passo evidente para ela: estudou Físico-Química e, antes de terminar a licenciatura, foi logo convidada para ser assistente na Faculdade de Ciências de Lisboa.

Branca Edmée Marques foi a primeira catedrática em Química. Fonte: Ephemera – Biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira

Algo inédito, especialmente sendo ela uma mulher. Foi Aquiles Machado, diretor do laboratório de Química, quem a convidou, não sem antes lhe fazer uma advertência:

“E de si, minha senhora, espero que consiga manter a disciplina nas suas aulas”.

É talvez curioso pensar neste homem que, no início do século XX, se atreve a escolher uma mulher para desempenhar este cargo, mas Ana Luísa tem uma teoria sobre ele: “As mulheres da família Silveira Machado eram figuras fortes e eu penso que o professor Aquiles foi naturalmente levado a perceber desde cedo as capacidades de uma mulher”.

Percebeu-as, dando o primeiro passo para que Branca iniciasse aquela que seria uma longa carreira académica.

Concluída a licenciatura com 17,4 valores, a nova assistente da Faculdade de Ciências é pedida em casamento por António da Silva Sousa Torres, um conceituado naturalista do Museu Geológico e Mineralógico da Faculdade de Ciências.

Mas ela só aceita mediante uma condição: que ele a deixe ir para Paris estudar.

“Olha, António, eu aceito-te para marido, e com muito gosto porque sei quem és, sei muito bem, enfim, que és uma pessoa muito distinta, muito correta. Sei isso tudo. E sei que és inteligente, sei que és um homem de valor, mas também não te digo que sim sem te ouvir uma resposta. É que o meu curso… eu quero ir para Paris. E ele achou muito bem, até, que eu fosse para Paris, porque assim aprendia aquilo que cá nunca aprenderia“.

Da longa conversa com Branca Edmée Marques, Ana Luísa Janeira recorda sobretudo a luta dela por um ideal. Foto: Inês Leote

António cedeu, mas cedeu com uma condição: a de que Branca fosse acompanhada pela mãe. E esta mãe de Branca é uma figura misteriosa para Ana Luísa Janeira. Afinal, o que saberia essa mulher, do século XIX, sobre doutoramentos, Química e Paris?

“Uma mãe que foi capaz de ir para Paris, ficar o dia todo sozinha, vocês imaginam o que seria uma pessoa com dificuldades de comunicação, retirada do seu contexto português, e tudo para que a filha se doutorasse?”, remata.

No laboratório de Marie Curie

Com a filha a receber uma bolsa da JEN (Junta de Educação Nacional), Berta Rosa Marques viajou para Paris, onde o destino da filha era um só: o Institut du Radium, aquele que era conhecido por ser o laboratório da prestigiada cientista Marie Curie.

Durante o dia, talvez Berta Rosa permanecesse no Hotel Vitorie, onde ficaram hospedadas. Ou passeasse por uma Paris que fervilhava nos anos 1930.

Já Branca, é no laboratório que passava grande parte do tempo, onde estabelecia relações com outras bolseiras, de outras nacionalidades. Nos seus cadernos, analisados na tese de mestrado de Maria Margarida Heliodoro, Branca Edmée Marques escreve que o Institut du Radium “incita à metódica perseverança, os procedimentos são demorados e exigem delicadeza e cuidado nas operações”.

Branca Edmée Marques laboratório Madame Curie
Branca Edmée Marques no Institut du Radium. Foto: Amonet

E, desde logo, começam a ser-lhe atribuídos papéis importantes: é-lhe concedido o “título honorífico de ‘verificadora’ das análises feitas em Arcueil”, executando o controlo da extração e dosagem dos elementos radioativos de um pequeno laboratório.

Terá também sido levantada a hipótese de Branca acompanhar Marie Curie até a uma fábrica para se inteirar das adaptações dos processos laboratoriais à escala industrial, “para que seja uma pessoa inteiramente útil à sua universidade e ao seu país, quando regressar definitivamente e retomar o seu posto” – ter-lhe-á explicado Marie Curie.

E ter-lhe-á proposto um outro trabalho sobre a química do actínio:

“Conheço muito bem a soma de trabalho que essa investigação envolve e agrada-me plenamente o critério com que tem orientado as diversas operações que executa com método e escrúpulo. Gosto de tê-la entre as minhas colaboradoras e até quero confiar, aos seus cuidados, uma outra investigação que consistirá em aplicar, a um sal de actínio, uma parte do método que tem ido apropriando (“mis au point”) para o cloreto de bário radífero”.

A investigadora portuguesa faz grande sucesso em Paris, mas acaba por regressar a Portugal em 1935, retomando as suas funções como assistente na Faculdade de Ciências. Não se vai embora de mãos a abanar: a verdade é que pediram-lhe que ficasse. Branca terá negado essa hipótese, respondendo que “desejava regressar a Lisboa, para junto do marido”.

A teimosia por um ideal

Da longa entrevista com Branca Edmée Marques, Ana Luísa retém sobretudo os traços de personalidade que marcaram a vida dela. “A professora Branca transmitia como valor de uma vida e de uma carreira o esforço, o trabalho, a luta por um ideal vocacional, profissional, e isso estava presente em toda a conversa”.

Como se tivesse planeado metodicamente a vida a que aspirava. E que acabaria por conquistar. Foi por esforço, foi por mérito, mas “também foi por teimosia”, diz Ana Luísa. Basta pensar que, antes de se candidatar para a bolsa para ir para Paris, Branca terá afirmado, com grande convicção:

“Eu vou candidatar-me de qualquer das formas. Eles podem dizer-me ‘não’ trinta vezes que eu farei o mesmo trinta vezes”.

Ana Luísa lembra-se bem de, durante a entrevista, Branca ter insistido numa questão: no “porquê” de ter batalhado tanto pela ciência. “Ela valorizava imenso o facto de colocar na atividade científica esta pergunta permanente e fundamental, e isso teve muita força para que ela tentasse encontrar as respostas.”

Ana Luísa Janeira entrevistou Branca Edmée Marques. Foto: Inês Leote

Foi com base na investigação em Paris que Branca Edmée Marques apresentaria a sua tese de doutoramento sobre o fracionamento de sais de rádio e bário. Por volta da mesma altura, fundava o Laboratório de Radioquímica, o primeiro laboratório de investigação química da Faculdade de Ciências.

Ao longo da vida, continuou a publicar e a ensinar radioquímica, ficando para sempre conhecida pela sua perseverança, como lembram os seus alunos. Filipe Duarte Santos foi um deles.

“Era uma pessoa que teria os seus 60 anos, era exigente, e muito rigorosa”, recorda ele. Nessa altura, entre os alunos pairaria essa “aura”, essa “mística” de a professora Branca ter trabalhado com Marie Curie.

Mas Ana Luísa não crê que esta mulher cientista tivesse bem consciência do peso, do poder que tinha. “Todas as tentativas que eu fiz de aprofundar se ela tinha consciência de que ela era um caso representativo de uma geração, de um país, de uma luta, não resultaram. Acho que ela não sentia isso. Agora o que senti foi uma grande solidez do ponto de vista de estrutura mental para encarar a vida que ela tinha desejado”.

Essa vida, que ela planeara e sonhara, talvez desde que entrara na Faculdade de Ciências, e que conseguira cumprir.

E deixou vestígios do seu legado, não só ao nomear uma rua na zona do Campo Grande, mas de formas ainda mais insólitas, como relembra Filipe. “Quando a professora Branca veio de Paris, trouxe amostras de rádio para fazer trabalho científico na Faculdade de Ciências, amostras radioativas…”, conta.

Anos mais tarde, quando Filipe já ensinava na Faculdade, descobriu que, sobre a sua cabeça, estava uma fonte de rádio, trazida por Branca Edmée Marques, e que ficara lá esquecida. A herança de uma mulher lisboeta que conquistara Paris e a própria Marie Curie.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

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