A vida por vezes é simples. Nós somos as gaivotas que lá estão a flutuar calmamente nas águas do porto, perto umas das outras, mas cada uma com o bico apontado para direções diferentes, a divagar.
À volta do pequeno porto estão algumas traineiras coloridas e atracadas com uma harmonia tal que mais parece que estão mesmo a pousar para um pintor anónimo e com uma higiene descuidada (quando ele morrer, talvez tenha uma rua com o seu nome).
As gaivotas somos nós, estúpidas, com vozes irritantes, com pensamentos egoístas e à deriva num porto qualquer.
Há silêncio naquele dia de fevereiro, as poucas nuvens que estão no céu não se movem há horas, como se fossem extras, encomendadas pelo pintor vagabundo para compor o ramalhete. Brancas e luminosas como só naquele dia.
De repente, pousa uma gaivota após um voo picado, colide com o espelho de água do porto, ela traz algo no bico. Podia ter pousado para lá do pontão ou mesmo numa árvore qualquer ali perto, mas não, foi ali mesmo, agitando as águas e importunando as demais gaivotas que emparveciam há horas nos seus pensamentos.
Deu-se uma comoção, as cinco gaivotas que estavam ali ao lado levantaram as asas e foram ver o que a outra trazia no bico, foram aos repelões e a empurrarem-se contundentemente. A outra ia-se desviando como podia, subia o peito e batia as asas, mas decidiu não levantar voo completamente.
Ali mesmo ao lado, apenas a poucos metros de distância, outro grupo de gaivotas nadou tranquilamente na direção do alvoroço para ver o que se passava. Duas ou três gaivotas que estavam do lado oposto começaram a gritar espaçadamente, depois passaram a gritar incessantemente e acabaram todas num frenesim, gritando todas ao mesmo tempo. Todas chapinhavam, berravam e esbracejavam naquele momento, o barulho rompia a calma do dia, naquele fevereiro soalheiro e sossegado.
O céu já não tinha nuvens brancas como o algodão, tinha nuvens cinzentas quase a dar para o negro e mexiam-se com grande velocidade, espera, não eram nuvens, eram mais gaivotas que vinham de outros lados e desciam a pique no sentido do distúrbio nas águas do porto.
Estavam agora centenas de gaivotas à batatada umas com as outras. A água estava cheia de espuma como se estivesse a ser batida em castelo, algumas gaivotas afogaram-se e ali ficaram a boiar enquanto levavam puxões de tainhas esfomeadas, muitas gaivotas evacuaram ali mesmo com os nervos, outras vomitaram.
Chocavam com as cabeças umas nas outras a tentarem fugir para parte incerta, umas poucas conseguiram afastar-se, mas continuavam aos gritos de cabeça perdida, chegaram mais tainhas para comer o vomitado, o pintor fartou-se, arrumou a trouxa e foi-se embora (não se incomodou com aquele alvoroço, deve ter chegado a hora de se embebedar, eles são todos bêbados ou drogados, os artistas, não é?).
Só então surge mesmo no epicentro do tumulto, mesmo no meio da guerra, a gaivota, que mesmo a ser agarrada pelas patas e pelas penas, conseguiu esticar cada vértebra do seu pescoço como uma girafa, inclinou o peito para a frente, batia as asas como um cisne e emergia como uma fénix do meio das cinzas. Carregava o tal artefacto no bico que esticado e fora do alcance das demais aves, apontava para o céu.
Era uma moeda, mas desenganem-se, não era uma daquelas brilhantes e novas de dois euros, nem uma daquelas de comemoração de edições especiais tipo Expo 98 ou quando Macau voltou para a China. Era uma moeda de cinco cêntimos, das escurinhas, acho que até tinha umas manchas de verde cansado e oxidado, devia estar alojada nalgum rego entre pedras da calçada desde o tempo em que se podia arrendar um T1 em Lisboa por menos de 4 dígitos. A gaivota fez o último e derradeiro esforço para sacudir as asas e escapar, mas não conseguiu… num ato de desespero abriu o bico e engoliu a bendita moeda.
A comoção abrandou, muitas gaivotas debandaram gradualmente e outras tantas tranquilizaram como se não se tivesse passado nada. Em pouco tempo aquele bonito dia de fevereiro voltou a ter silêncio, um porto com água calma espelhada, nuvens de encomenda, gaivotas parvas à deriva e um pintor, que, entretanto, voltara (afinal tinha ido buscar o verde de que se tinha esquecido para juntar ao vermelho e fazer o castanho. Ah, mas não se preocupem, ele era mesmo bêbado afinal!)
Tudo estava lindo!
Eis que chega um condutor de um Tuk Tuk com uma tatuagem de uns lábios vermelhos no pescoço e um bigode pouco farfalhudo. Estacionou mesmo à beira do porto, deu os dois últimos bafos da sua caneta fumegante e atirou a beata para dentro de água…
* João Santos Pereira vive entre o Mediterrâneo e a sua querida Lisboa. Fingiu estudar em vários sítios, de onde até um Mestrado em Gestão Desportiva surgiu, mas sempre aprendeu mais com as pessoas do que com o ensino estabelecido. Viaja pelo mundo, a pé sempre que pode, o mesmo aplica na cidade das sete colinas. Gosta de beber vinho tinto e de jogar à bola, acompanhado por gentes de falas várias, sempre que possível. Dedica posteriormente o seu tempo a escrever as aventuras que daí advêm.
Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa pedir-lhe-ia que me trouxesse o meu amor de volta… é tão real está escrita do texto que quase nos faz sonhar!!!! PARABÉNS