Ricardo Ribeiro tem as mãos na massa: conhece-lhe bem o cheiro e a textura. Molda-a na banca da cozinha para depois levá-la para a máquina de esticar. Há um dia apenas aprendeu a fazer massa de raiz. Agora é capaz de recitar todos os passos para se conseguir um belo tagliatelle.

A vida dá muitas voltas até que, um dia, se acorda na rua. É essa a história de Ricardo, 57 anos, trinta dos quais passou ensombrado pela droga, que o levou à situação de sem-abrigo. Está a fazer metadona há dez anos. Quando recorda o passado, e os caminhos que o levaram ao beco do qual começa a ver uma saída, resume-o em poucas palavras: “São as vírgulas da vida”.

Ricardo Ribeiro é um dos alunos do projeto da CRESCER que ensina pessoas em situação de sem-abrigo a cozinhar. Foto: Inês Leote

Desta vez, escreveu-se um ponto final com a abertura de um novo parágrafo. Há meio ano que Ricardo está a ser acompanhado pela CRESCER, uma associação de intervenção comunitária que o encaminhou para o curso de cozinha na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa.

Este é um curso que prepara pessoas que estão ou estiveram em situação de sem-abrigo para trabalhar num restaurante: o É um Restaurante, perto da Avenida da Liberdade. A única condição para iniciarem o curso é que estejam alojadas e já não na rua.

Entretanto, há um novo espaço desde o dia 20 de junho no bairro Padre Cruz, em Carnide, e que vem dar continuidade ao projeto: o É uma Mesa, um restaurante italiano que foi montado de raiz num espaço vazio do Centro Cultural de Carnide com a ajuda do programa americano The Fixers.

Um restaurante com uma dupla função: “a de integrar pessoas em situação de vulnerabilidade”, mas também de “atrair pessoas de fora para este bairro”, especifica Américo Nave, diretor executivo da CRESCER.

Um dia de formação na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa

Ricardo faz parte da quinta turma deste projeto que, daqui a pouco tempo, passará da escola para um dos restaurantes, ou então para a cozinha do edifício Ageas na Expo, a mais recente parceria da CRESCER.

É com grande entusiasmo que Ricardo prepara o tagliatelle para acompanhar as salsichas e a couve lombarda, uma das receitas do chef Manuel Barreto, que neste dia também ensinou a turma a fazer uma jardineira à moda alentejana, onde estão as suas raízes.

No passado, Ricardo nunca pensara que a cozinha fosse uma opção, mas agora tudo mudou. “À medida que vamos aprendendo algumas coisas, vamos achando piada”, conta. Tem medo que a sua idade seja um entrave para o futuro, mas, apesar disso, tem esperança.

Tal como Ricardo Ribeiro, Camilo José Pina nunca pensara que a cozinha fosse uma hipótese. Estava a trabalhar em Espanha em montagem de estruturas metálicas quando partiu o joelho e ficou sem emprego.

Regressou a Portugal, onde vivera já vários anos, e ficou algum tempo na situação de sem-abrigo. “Foram uns meses bastante maus, eu estava sem saber como fazer e como tratar das coisas, ainda me faltavam uns anos para a reforma, mas não encontrava nada”, conta.

A CRESCER encontrou Camilo na rua e encaminhou-o para este curso. “Eu achava que não tinha jeito nenhum para a cozinha, mas comecei a experimentar e é uma questão de paciência”, diz.

Camilo José Pina não esperava enquadrar-se no curso de cozinha. Foto: Inês Leote

Muitos dos alunos serão como Ricardo e Camilo: em situação de sem-abrigo, procuravam emprego e decidiram experimentar. “Às vezes as pessoas que aqui chegam ainda estão a lidar com momentos de transição e por isso não têm um interesse tão grande”, explica Gonçalo Carvalheiro, um dos formadores e professor da Escola de Hotelaria e Turismo. “Mas temos tido casos de sucesso”.

“Eu não soube o que era ser uma criança feliz e agora estou a ser feliz numa formação onde me enquadro, onde me respeitam e isso é de valor”.

Sandro Oliveira, formando do projeto da CRESCER na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa

Havia quem já sonhasse com a cozinha. É o caso de Sandro Oliveira, o membro mais novo do grupo. Para Sandro, as brincadeiras de criança nunca foram com bonecas ou carros. “Eram com cozinha”, recorda.

Sandro tem apenas 28 anos, quatro dos quais foram passados na situação de sem-abrigo. “A minha família não me aceitava como trans”, explica. Agora, o seu sonho de criança ganha contornos de realidade na cozinha desta escola.

A vida de Sandro está a mudar: retomou o contacto com a mãe, que se separou do pai depois de anos de um casamento violento, e está a encontrar neste curso perspetivas para o futuro. “Eu não soube o que era ser uma criança feliz e agora estou a ser feliz numa formação onde me enquadro, onde me respeitam e isso é de valor”.

Esse talvez seja dos aspetos mais importantes para os formadores deste curso: “Tem sido uma das maiores recompensas: que eles se apercebam que são pessoas extremamente válidas”, diz Gonçalo Carvalheiro.

Um sentimento que é transversal a todos os participantes: o de que o seu trabalho na cozinha tem valor e lhes dá um propósito.

Dulcineia Correia, uma mulher de 45 anos, sempre gostara de cozinha e encontrou neste curso um porto seguro. “Estou a adorar a experiência com o chef. Todos os dias, saio de casa com alegria”. Já trabalhara na área da restauração e sempre gostara de cozinhar, mas os altos e baixos da vida levaram-na a recorrer à ajuda da CRESCER.

Entretanto, pelo caminho, conheceu o seu hoje companheiro num centro de acolhimento. Estão juntos há 17 anos e é para ele que Dulcineia hoje guarda a refeição cozinhada na escola. Aqui sente-se realizada mas guarda um desejo: o de um dia voltar à sua terra, Cabo Verde, que viu pela última vez aos sete anos, quando veio para Lisboa.

“Eu punha era as pessoas sem-abrigo a cozinhar para nós”

Em 2016, a Câmara Municipal de Lisboa sugeriu à CRESCER a criação de um restaurante onde os sem-abrigo pudessem receber refeições de forma a combater-se a realidade das carrinhas de rua. Mas Américo Nave recusou a proposta, respondendo logo: “Eu punha era as pessoas sem-abrigo a cozinhar para nós”.

Américo Nave teve a ideia para este projeto em 2016. Foto: Inês Leote

O diretor da CRESCER disse-o sem pensar, mas, três anos mais tarde, abria o espaço É um Restaurante, na Avenida da Liberdade, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e do The Hotel, a mentoria do chef Nuno Bergonse e a parceria do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP).

Nem durante a pandemia o projeto parou: os alunos chegaram mesmo a cozinhar refeições para distribuir pelas ruas.

Este foi um projeto que foi pensado para que as pessoas em situação de sem-abrigo pudessem organizar-se de forma a serem integradas no mercado de trabalho.

E por isso, antes de se começar a primeira fase de formação na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, há ainda uma primeira etapa de apoio psicológico proporcionado pela CRESCER. “A semana com a nossa psicóloga é importante para que ganhem competências sociais”, explica Joana Seabra, educadora social da CRESCER. “Muitas destas pessoas já não trabalham há anos e não estão habituadas a cumprir rotinas ou a responder a um chefe”.

Este é um acompanhamento que continua em todas as fases: durante a formação, no estágio no restaurante e até mesmo quando as pessoas já estão integradas no mercado de trabalho. “É muito importante o trabalho destes técnicos para ajudarem a superar as frustrações normais da vida”, diz Américo Nave.

A transformação dos alunos ao longo do projeto é visível para todos: “Há uma evolução a nível profissional mas também pessoal”, diz Joana Seabra. “Há vidas que ficam mais organizadas com esta oportunidade”.

O objetivo final é a integração no mercado de trabalho, claro, mas a ideia não é que fiquem imediatamente a trabalhar nos restaurantes do projeto. “Queremos que eles entrem no mercado de trabalho, saiam da área social”, acrescenta o diretor.

No futuro, com carreiras já consolidadas, planeia-se que alguns dos formandos possam voltar para, desta vez, serem formadores daqueles que, tal como eles, passaram por períodos mais conturbados.

A experiência no É um Restaurante

No É um Restaurante, já à experiência, Susete Cristina conta a sua história. Em criança, fazia distribuição de comida na rua para sem-abrigo. Nessa altura, “ainda nem sabia bem o que era a droga”, recorda. A inocência desses tempos esfumou-se, mas Susete gostava de recuperá-la. Tem 42 anos e já conhece a CRESCER há muito.

Nos últimos tempos, tem tido sempre trabalho e uma boa evolução no que diz respeito aos consumos: já está a tomar uma dose muito baixa de metadona. Uma transformação que se deve sobretudo à ajuda prestada pela associação Ares do Pinhal: “Eles foram a minha salvação”, diz.

Susete Cristina está a começar a trabalhar no É Um Restaurante. Foto: Inês Leote

Por precisar de tratar os dentes, inscreveu-se neste curso, sem grandes expectativas. “Não esperava nunca conseguir fazer o que faço aqui, não esperava decorar o que se põe em cada prato”, conta. Mesmo assim, não se vê a seguir a cozinha. O que gostava realmente de fazer era regressar às equipas de rua.

Os chefs David Jesus e Beatriz Peres. Foto: Inês Leote

São sonhos que vão sendo descobertos com este projeto. E os formadores assistem ao crescimento de cada um dos alunos.

“No início, estão muito nervosos, há bastante pressão e stress, mas é assim que saem preparados para o mercado de trabalho”, diz o chef David Jesus.

É um caminho difícil para muitos: o de perceberem que ainda há tempo para voltarem a trabalhar, mesmo que já sejam mais velhos.

“Essa parte é muito interessante: de entenderem que quando têm 50, 55 anos, ainda têm anos de trabalho pela frente”.

É o caso de Rita Mont, 54 anos, hoje com uma grande lucidez em relação ao seu passado. “Estou abstinente há seis anos”, conta. Rita trabalhou durante muitos anos na limpeza, teve dois filhos mas, por causa de alguns consumos, teve de pedir ajuda à Santa Casa da Misericórdia.

Entre avanços e recuos, conseguiu finalmente libertar-se. “Sou outra pessoa completamente, mais ativa, mais compreensiva, mais objetiva, não sei, acho que mudou tudo”, reflete agora.

Nos últimos anos, tem frequentado vários cursos: acabou o 9º ano como cuidadora de crianças e jovens, estagiou mas não conseguiu ficar com o emprego e por isso enveredou pelo projeto da CRESCER. Interessa-lhe mais a parte de servir às mesas e é por aí que quer seguir.

O projeto da CRESCER mudou a vida de Rita Mont, 54 anos. Foto: Inês Leote

Desde a fundação desta associação em 2001 que Américo Nave sempre ouviu as pessoas numa “ânsia de quererem trabalhar”. E a ânsia de muitos está a ser respondida com este projeto. Os membros que estão a fazer a formação vão chegar brevemente ao É um Restaurante, outros irão para o É uma Mesa ou para a Ageas. Ainda não está definido que alunos vão para onde, mas a decisão é tomada em conjunto com os formandos.

“Sou outra pessoa completamente, mais ativa, mais compreensiva, mais objetiva, não sei, acho que mudou tudo”.

Rita Mont, formanda do projeto da CRESCER no É um Restaurante

Já foram alguns aqueles que revelaram uma paixão especial pela cozinha italiana. “Pizzaria ou italiano é uma comida que chega mais facilmente a todos e é fácil de agradar”, como diz a chef Beatriz Peres, do É uma Mesa. Sandro e Dulcineia adoraram aprender a fazer um risotto e Ricardo, afinal, já é o mestre do tagliatelle.

São muitas as histórias de sucesso que já saíram do É um Restaurante, e a vida continua para lá dessas portas, com novos desafios. Para muitos, mesmo que a cozinha não seja profissão para a vida inteira, foi com os ingredientes de um só prato que descobriram ser possível dar um novo rumo às suas vidas.

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *