Uma Cassandra. É assim que a filósofa e escritora brasileira Márcia Tiburi se define, por entre imensas telas que lentamente pinta e borda durante manhãs e tarde, numa exposição em Lisboa que se constrói em tempo real e aos olhos dos visitantes.

Isto porque foi esta gaúcha de 52 anos, ainda em 2015, antes do golpe político que tirou a presidente Dilma Rousseff do poder e abriu caminho para o caos, que resgatou a palavra que se tornaria recorrente no Brasil nos anos seguintes.

“Quando terminei o meu livro Como conversar com um fascista, o meu editor perguntou se não achava o termo forte”, conta.

Três anos depois, a filósofa era vítima do próprio vaticínio. Perseguida por um dos braços mais radicais do bolsonarismo, o Movimento do Brasil Livre (MBL), Márcia Tiburi viu a sua vida inviabilizada no país e, aconselhada por amigos, decidiu exilar-se em 2019, primeiro nos Estados Unidos, depois em França, onde vive atualmente.

“Cheguei a sofrer mais de mil e quinhentas ameaças de morte”, calcula, agulha em punho, entre os nós de uma de suas “traduções”.

Márcia Tiburi costura um dos seus “livros visuais”, em exposição construída em tempo real, aos olhos dos visitantes. Foto: Rita Ansone

Em Paris, Márcia Tiburi tem intercalado as atividades como professora convidada em Sorbonne com as da “anagramatologia”, o neologismo criado para definir a sua face de artista, a escrever em algodão as versões plásticas dos textos escritos,

Uma obra que ganhou uma exposição francesa com trinta peças e agora em Lisboa conhece a sua adaptação em português e que pode ser lida até 15 de janeiro, no Espaço Talante, na Livraria Ler Devagar.

Filosofia pelas ruas de Lisboa

“Estou agora a reescrever um conto”, explica Márcia Tiburi, enquanto costura um longo corte de tecido que, em breve, fará companhia às obras expostas nas paredes, a maior delas com quase três metros de altura por seis metros de largura. Sob os pés, meu corpo inteiro, a “versão” em português do livro escrito em 2018. A imensa tela já havia recebido uma “tradução” em francês (Sous mes pieds, mon corps), em 2021.

A imensa tela Sob os pés, meu corpo inteiro, um das “traduções” dos livros de Márcia Tiburi, expostos em Lisboa. Foto: Rita Ansone

O diálogo entre as artes plásticas e a literatura segue em Lisboa com os livros Um fascista no divã (2021) e o último deles, Complexo de Vira-Latas (2021), uma análise “da humilhação brasileira”.

As “traduções” iniciaram-se em dezembro, num work in progress aos olhos dos visitantes da exposição, que podem interagir com a artista. “Quase sempre, pensam que se falarem comigo estão a atrapalhar. Não forço a barra. Mas quando eles interagem, estou disposta a trocar umas palavras”, conta. 

Entre trabalhos, a brasileira permite-se longas caminhadas pela Lisboa que já conhecia como turista, mas que agora enxerga com outros olhos, perdendo-se entre o percurso de Campolide, onde está hospedada, até Alcântara, onde passa o dia entre agulhas, tintas e canetas.

“Uma das atividades que mais gosto é de fotografar as janelas de Lisboa, que são maravilhosas”, revela Márcia. No dia da entrevista foi obrigada a desculpar-se por um pequeno atraso provocado justamente pela contemplação das janelas portuguesas.

“No caminho, passei por uma rua com um nome curiosíssimo de Triste e Feia. No momento em que fotografava a placa da rua, ao lado da janela de uma casa, surgiu dela uma mulher e, imagine, uma mulher triste e feia”, conta Márcia.

A obra em texto acompanhada de sua versão em tinta sobre tecido, na exposição de Márcia Tiburi em Lisboa. Foto: Rita Ansone

Ela soube a razão da curiosa toponímia pela boca da própria moradora. “Falou-me da história da moradora triste e feia que deu nome à rua, mas o mais impressionante é que aquela mulher igualmente feia tinha também uma história trise, de solidão, sem parentes e amigos. Fiquei ali, a ouvi-la e a vê-la, na janela, ao lado da placa em pedra com o nome Triste e Feia, como se fosse a lápide daquela mulher.”

Capturada pelo mal

Essa capacidade de usar as linhas da vida real para pintar o quadro da realidade, muitas vezes antecipando essa realidade, foi para Márcia Tiburi, assim como para a mítica Cassandra, ao mesmo tempo dom e punição, após ser perseguida pelos apoiantes do agora ex-presidente e, posteriormente, “capturada pelo mal”.

“Mantinha uma atuação intensa na vida pública no Brasil, como professora de filosofia, escritora e comentadora de televisão. Era muito demandada para dar a minha opinião e tinha prazer em fazê-lo, mas teve um preço”, relembra Márcia, que passou a ter as aulas, debates e apresentações de livro, invadidas e sabotadas por radicais. “Utilizavam uma moderna estratégia de caça às bruxas, com perseguição nas ruas e difamação nas redes sociais. Minha vida virou um verdadeiro inferno, mas resistia. Até que um dos lançamentos terminou em agressão, tive a minha casa invadida e fui obrigada a andar com seguranças e em carro blindado.”

Márcia Tiburi costura mais “uma página” dos livros, os últimos a abordar o fascismo que tomou conta do Brasil nos últimos anos. Foto: Rita Ansone

A odisseia de Márcia Tiburi como exilada começou nos Estados Unidos. Foi acolhida em 2018 pelo programa de proteção a artistas em risco no City of Asylum, em Pittsburgh, na Pensilvânia. Era coordenado por Henry Reese, que recentemente entrou no noticiário ao ser agredido no mesmo atentado que quase vitimou o escritor Salman Rushdie – era o moderador da sessão.

Um ano depois, durante uma visita em Paris, o destino de Márcia Tiburi voltou a ser soprado pelos ventos do acaso e acabou por ser convidada para professora visitante na Sorbonne.

Márcia explica que demorou um tempo “para cair a ficha” de que agora era uma exilada. “Não me via nessa posição, até que passei a pesquisar sobre o assunto e percebi que me encaixava na situação, enxotada do meu país, desterrada, impedida de voltar”, resume.

A face mais dorida do exílio tem sido a distância dos amigos e da família. “Nunca mais vi a minha irmã. Desde que saí, meu pai morreu pelo caminho e tive que ver o enterro dele pelo telemóvel. Neste ano, cheguei a comprar a passagem para ir passar o Natal, mas fui aconselhada a não ir, pois havia o acirramento pós-eleição.”

Lula e o último ato do teatro grotesco no Brasil

Com Lula da Silva de volta ao poder, Márcia reacende a expetativa do fim do exílio, embora o seu passado sugira cautela. “O fascismo não morre de morte natural, precisa ser constantemente combatido e vigiado. Às vezes, anda adormecido, mas é como a malária, quando se pensa que foi extinta, retorna”, explica.

Márcia Tiburi acredita que o retorno de Lula da Silva ao poder seja um travão “laboratório do fascismo” que o país se transformou. Foto: Rita Ansone.

Para Márcia, o retorno de Lula é uma quebra no “laboratório do fascismo” que o Brasil havia se convertido nos últimos anos. “Foi assim nos anos 1990, quando o país era um protótipo do neoliberalismo e repetiu-se agora. Lula tem a missão de mostrar ao mundo o inverso, de um país como laboratório de recuperação do fascismo”, diz.

Para isso, a filósofa e escritora insiste: é preciso deixar os velhos pensamentos do patriarcado para trás. “Foi assim no Nazismo na Alemanha há um século e tem sido assim agora nessa nova vaga, a evolução natural do machismo em sua pior versão, o último estágio do patriarcado que culmina com esse teatro do grotesco”, explica.

A filosofia em tinta e tecido da escritora brasileira Márcia Tiburi. Foto: Rita Ansone

Ainda exilada, obrigada à uma rotina “nómada e errante”, a vida da filósofa tem gravitado na órbita das suas atividades profissionais. “Desde então, o centro da minha vida tem sido o meu trabalho”, resume, sobre os textos que segue a escrever com impressionante regularidade e, agora, os “textos visuais” escrito e pintado em tecido.

Uma literatura em cores e palavras fortes, registo de um tempo presente, até que a versão Cassandra de Márcia Tiburi volte a tecer os sinais do que virá pela frente.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

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