O ricto angustiado de um grandessíssimo atleta acicatado pela decadência… Um dedo metido no colarinho que sufocava um selecionador patético… Em balanço, que raio de imagens dolorosas, a de um astro e a de um profissional vulgar, quando o torneio parecia ter sido feito para beneficiar Portugal, tão pouco habituado a tais favores!

O calendário do Mundial 2022 foi engendrado de forma esquisita. Desde a escolha das equipas na fase de grupos até aos subsequentes cruzamentos entre elas, tudo parecia predeterminado pela deusa Felicitas. E, sorte a nossa, estávamos destinados a disputar o duelo final.

Felicitas, a mais que milenar deusa romana da felicidade programou o embate intergaláctico entre Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro e Lionel Andrés Messi Cuccittini – divas. O resto cumpriria a função das molduras, isto é, iluminar as obras-primas.

Lembram-se do croata com mascarilha? Pois, ele foi ao Qatar para que o pé esquerdo de Messi lhe desse tonturas. Gvardiol, o tal croata, existiu para fazer de amélia, a flor gentil que atrai o passarinho beija-flor e nos permite assistir à dança maravilhosa dele.

Lembram-se do… do…? Ai, de repente varreu-se-me o nome de alguém, exceto o do próprio, que no último mês tenha sido riblado por Cristiano Ronaldo

Mas vocês já perceberam a ideia: uma deusa romana decidiu mudar o tradicional conceito do Campeonato Mundial de Futebol: em vez de equipa, este ano era para premiar o protagonista.

Felicitas, a além da felicidade é a deusa da fortuna e da sorte, portanto com mais pergaminhos do que a FIFA para organizar o mais apaixonante jogo planetário. Então, este ano, ela tentou revolucionar o Mundial de forma a celebrar outra espécie de campeão: acabou a equipa, viva o protagonista!

Até agora, ao longo de 21 edições, já oito países tinham levantado a Taça, alguns repetindo. No ano de 2022, o 22º campeonato do futebol mundial foi destinado por Felicitas a subir de patamar do troféu. No Qatar, o campeão seria um futebolista. Aliás, o futebolista.

Oscares e Mundiais

Os dois maiores festivais internacionais são quase gémeos: primeiro Mundial dos estádios, Uruguai, 1930; primeira cerimónia dos Oscares dos estúdios, Hollywood, 1929.

Mas se os filmes já o entenderam há muito, o futebol só agora decidiu subjugar-se a esta lei moderna e eficaz: quanto mais público há para atingir, mais pessoalizado deve ser o premiado. Uma cara, um nome e uma maneira de fascinar podem ter a força que um exército de figurantes ou um grupo de onze não consegue.

Nas cerimónias de entrega de Oscares nunca se abriu o envelope e, com o devido suspense no meio, se proclamou : “E o Oscar vai para… o elenco do filme X!” Anuncia-se, isso sim, um pessoalíssimo herói.

A deusa Felicitas considerou, pois, que 2022, agora ou nunca, era o momento para o tira-teimas que mais tem emocionado a Humanidade há década e meia: Messi ou Cristiano Ronaldo?

Que drama, que emoção, que mistério!

O futebol viveu o seu primeiro século como entidade coletiva, justificando o nome que a Inglaterra, país inventor, lhe deu: Football Association. No século XX, os clubes e as seleções galvanizavam, dizia-se oficialmente, as multidões. Ah, as cinco sucessivas Taças dos Campeões Europeus do Real Madrid! Ah, a equipa da Hungria de 1954!… Meu Deus, o Brasil!

Na verdade, já então a multidão alimentava a sua admiração pela equipa madrilena graças ao óleo santo com que Di Stefano lubrificava o coletivo. E quando se falava da tal equipa magiar, do que o povo se recordava era do ribombar dos chutos de Puskas. E se ninguém dizia “Meu Deus, Pelé!”, era porque soava a redundância, mas não era blasfémia.

Já então o amante de futebol tomava a parte (o jogador) pelo todo (a equipa) mas, baralhando a sinédoque, julgava o contrário. Foi assim durante muitas décadas porque é difícil explicar figuras de estilo gramaticais nas bancadas de um estádio aos gritos.

O fenómeno é universal. Os nossos liberais, se não fossem tão presumidos, deviam falar mais de bola do que de bitcoins – os estádios são a grande área onde o povo mais aplaude a iniciativa privada.

Entretanto, os contabilistas, primeiro em cenáculo de seita, agora comentando nas tevês, vão continuando a explicar com hieróglifos o que viam (WM, 4-3-3, 4-2-4…), cada vez mais aumentando as variantes táticas (4-3-2-1…) quase tanto quanto se vão complicando os géneros LGBT.

Mas o ópio preferido do povo foi sempre o astro.

Ronaldinho, garoteando, Zidane, amansando a bola, qualquer bola, mesmo as chegadas a ele violentas, Eusébio, na Luz, fazendo cair um silêncio quando ele ia marcar o livre a 36 metros, George Best, ainda absolutamente anónimo, nesse mesmo estádio da Luz, eu vi, a pôr os meus vizinhos a chorar e rasgar o cartão de sócio… Eu vi, e nunca mais me esqueci de que as camisolas devem render-se aos deuses, mesmo quando adversários.

Mané Garrincha, a ludibriar um João… Ele chamava de João cada e todos os defesas por que passava, e ele ultrapassava todos Joões. Para quê uma identificação diferente, se a função deles era ver passar o cometa?

Esses, pois, de recordação perpétua. Nesse firmamento, no Olimpo de que vos estou a falar, surgiu, mas não ao mesmo tempo, um par extra-extra, super, os dois inomináveis, mas como todos os jeovás, invocados sempre: esses nem se discute. Além de divinos, unanimidade. Embora, se divinos é inquestionável, com unanimidade controversa…

Mas com Pelé e Maradona, deles falo, chegou-se o mais próximo que houve de um consenso. Os dois, além das artes mágicas, com a autoridade moral de terem ganho mundiais. Quer dizer, terem ilustrado o seu talento individual com medalhas coletivas.

Um duelo que só foi mito

Pelé e Maradona tinham caracteres diferentes. O brasileiro era elegante e o argentino, histriónico. Ambos génios da bola, Maradona gerou paixões, Pelé, oração. O estilo deste, para comparação com jogador mais recente, seria o de Zidane.

O que me permite esta ironia, tão futebol: o gentil Zidane acabou a carreira numa final de Mundial (2006), dando uma cabeçada, pública, honrada e assumida, a um adversário italiano que o insultou de forma escondida. O futebol é tão o mundo! Evidentemente contraditório, com gente boa e biltres.

Nesse mundo, Maradona viveu como um garoto soberbo em bairro problemático. Levou a Argentina às costas, ganhando o Mundial de 86. Aí, contra a Inglaterra, fez o golo mais famoso do mundo e marcou a fraude mais divina, com a mão. Depois, foi para um clube mediano, o Nápoles, e fê-lo campeão.

Quem já era um herói nacional com provas dadas, tornou-se uma lenda em cidade estrangeira. Nápoles tem mais santuários dedicados a Maradona do que a São Januário, o patrono da cidade. No Mundial de 90, na meia-final Itália-Argentina, jogado em Nápoles, no momento do hino argentino, a cidade desagradecida assobiou a pátria do seu ídolo.

Galhardos como um tango de Gardel, os seus companheiros continuaram a cantar o hino. Mas Maradona não levou o insulto para casa (que era ali, em Nápoles). Gritou do princípio ao fim: “Hijos de puta! Hijos de puta!”, dirigidos às bancadas dos vizinhos.

O jogador ganhou à Itália, o conflito familiar sanou e Maradona voltou a ser filho da sua cidade.

Ao lado de Nápoles, ficam as ruínas de Pompeia, cidade destruída pela lava do vulcão Vesúvio, há quase 2000 anos. As cinzas conservaram as pessoas na sua atividade do dia-a-dia e o padeiro petrificou-se a amassar o pão. Ainda lá está, assim. À porta da sua loja, um cartaz dizia: “Hic habitat felicitas”. Para esconjurar os azares, dizia: “Aqui mora a felicidade”.

Em Pompeia o padeiro petrificou-se a amassar o pão. Foto:DR

Para o ilustrar, o cartaz, guardado por arqueólogos, mostrava um pénis: força e felicidade. Ficamos a saber o porquê do interesse da deusa Felicitas pelas quatro linhas: foi vizinha de Maradona. O que quer dizer, porque de deuses falamos, é. Por isso ela quer tirar a limpo, de tempos a tempos – quatro anos, por exemplo – quem é o maior do mundo.

Pelé e Maradona não coincidiram em duelos. O último Mundial do brasileiro foi em 1970, quando Maradona tinha 10 anos. Como saber quem foi o melhor de sempre? Com eles a dúvida fica para sempre, apesar da inabalável firmeza das respetivas legiões de fãs.

O contributo da Deusa

O passado tornou-se um dilema. Apesar das respostas convictas que invocam o seu deus sem admitir discussão, as listas de “a melhor seleção de sempre” continuam a acabar com velhas amizades de colegas de repartição e a estragar jantares de família.

Como comparar quem nunca se defrontou? Como nos fiar em estatísticas?

Ainda há pouco tempo, o maior marcador em jogos de seleções era um obscuro iraniano, só agora ultrapassado por Cristiano Ronaldo. Juntar um acaso e um mérito é criar uma falsidade: apesar da verdade dos números, estes não podem nem sequer sugerir que a qualidadee um e a e outro se confundem. Que crédito dar a inquéritos de opinião, tão enviesados são eles?

Nacionalismos e mil outras razões que não têm nada a ver com futebol inquinam as preferências.

Nem estreitando a discussão, para saber quem é o melhor em determinada posição no jogo da bola, torna uma escolha idónea. O russo Yashin, ainda hoje aparece em listas do “melhor guarda-redes” de sempre. Mas como o acreditar, tendo ele jogado na década de 1960? Então, não se defendia com a agilidade das pernas e nem se dava grande importância à exatidão do pontapé de baliza, técnicas essenciais que só foram aperfeiçoadas só em décadas recentes. Provavelmente Yashin, com o que podia saber aos 25 anos, não teria lugar em metade das equipas que vimos no Qatar.

No século XXI surgiu o mais longo período em que dois futebolistas se disputaram a liderança, reconhecidos quase unanimemente como os melhores do mundo. “Os”, artigo definido, que determinam substantivos de maneira precisa: o Messi e o Cristiano Ronaldo.

E isso durante um período longo, cerca de 15 anos, em que se confrontaram no mesmo campeonato maior (o espanhol), em muitas provas comuns e na mais prestigiada, a Champions. Percursos onde ambos tiveram mais do que todos os outros, Bolas e Botas de Ouro, os mais importantes prémios internacionais. E em seleções, um ganhou um Euro ou uma Copa América.

Acresce à emoção deste duelo, porque aprofunda a discussão, o facto de os dois superarem-se em géneros diferentes. O português, muito fruto de vontade e trabalho, é extraordinário na velocidade e na potência, ao que acrescentou uma fantástica capacidade de saltar para cabecear. O argentino, talento nato, combateu uma deficiência, o pé direito não lhe serve de quase nada.

Uma vez, Cristiano Ronaldo, a jogar contra Espanha, acabadinha de ser campeã mundial, fintou três adversários, sentou dois na relva e, num canto da pequena área, de ângulo impossível, fez a bola contornar o guardião Casillas e apontar para o ângulo mais longe da baliza. Foi talvez o melhor dos mais de 800 golos que ele marcou, com este acréscimo: foi anulado. Um colega guloso, Nani, estava fora de jogo, e cabeceou o que não precisava de ser cabeceado. O golaço, anulado, ganhou uma dimensão de tragédia. Só valoriza. Lembramo-nos de Aquiles por causa do tendão.

Uma vez, e outra e outra e outra, parei a transmissão de um jogo de Messi e rebobinei. Guloso como Nani, mas mal-intencionado – ganancioso, até – passei a jogada ao ralenti. Nunca consegui provar nada, mas ainda hoje ninguém me tira que há ali trapaça. A chuteira de Messi tem um produto que cola a bola, só pode. Messi assobia, ou há um fio invisível que ele aciona, ou é um bater eletrónico de pálpebra, um sei lá, que descola a bola. E volta a colar.

Felicitas, essa, sabe da tramoia, mas como todos os deuses ela gosta de nos manter na incerteza. Em todo o caso, ela deu-se conta de que o Mundial 2022 era a derradeira ocasião em que se podia dirimir a já referida dúvida: Messi ou CR7? Havia um patamar, o maior deles, onde um e outro ainda não tinham conseguido provas curriculares, de topo máximo. Nenhum tinha ganho um Mundial.

Daí a deusa ter manipulado o calendário. Sem o VAR controlar, tudo foi preparado para as equipas de Messi e de Cristiano Ronaldo terem um percurso facilitado até a final.

Cuidou-se que ambos não se encontrassem antes da final e ofereceram-se-lhes barreiras intercalares menores. Com uma exceção, nenhum favorito nas casas de apostas, nem Espanha, nem Alemanha, nem Inglaterra, nem, claro, os recíprocos beneficiados (Argentina e Portugal) ia encontrar-se com Messi ou o CR7, não fosse o arranjinho final estragar-se.

A exceção foi a França. A deusa Felicitas meteu-a no caminho de Portugal. Na meia-final a França iria jogar contra Cristiano Ronaldo. Se ela lá chegasse, claro.

E isso por uma razão simples. Felicitas é uma deusa, o que significa ser absoluto e perfeito, adequado para preparar aquele mega-acontecimento. A competição foi pela primeira vez organizada para proclamar o que mais interessa num Mundial: quem é o melhor futebolista do mundo e arredores (cerca de quatro anos de diâmetro). Neste caso, o premiado ficaria carimbado com essa honra pela eternidade fora. O MELHOR de sempre.

Felicitas sabia que CR7 chegava ao Qatar em desvantagem, já entrado na decadência e com algumas estatísticas ligeiramente inferiores a Messi (menos Bolas e Botas de Ouro). Se ao argentino bastava ganhar a final, já a Cristiano era necessário passar por uma prova suplementar. Daí a França, entretanto.

Ganhando à França, quer dizer, ao Mbappé, o galarote que mais longe já subira pelos calcanhares de Cristiano Ronaldo e Messi, o português entrava na final de igual para igual. E, como Felicitas queria, a final transformava-se no inquestionável e definitivo tira-teimas sobre a questão maior da Humanidade: quem?

Quem? A força da Natureza ou o génio da Arte Bela?

Acontece que Portugal nem chegou à França. Não passou dos quartos, e ali se deitou abaixo das canetas. Felicitas soube ser maior que a FIFA, mas esqueceu-se que no reino dos homens os medíocres são poderosos. Os que conseguiram ser o que são à custa de Cristiano Ronaldo, no momento maior, foram o que são, gente menor.

Jorge Mendes, que devia ter cuidado do momento supremo do Cristiano Ronaldo, demonstrou que fortuna, para ele, são massas, não a Fortuna que traz a felicidade a um rapazito e homem que tanto fez por a merecer. Já o angustiadito-do-dedo-no-pescoço ainda hoje não sabe o que lhe aconteceu no jogo com Marrocos. Aconteceu-lhe que, a dois passos dele, um jovem treinador, que pegou na sua equipa três meses antes, foi treinador.

Pronto, a final sonhada pela deusa Felicitas acabou por falta de uma comparência. Para um ateu como eu foi uma felicidade, uma fortuna, uma sorte. Senti-me no céu. Vi um jogo de homens, magnífico.

Um treinador abre o jogo com uma surpresa a extremo esquerdo, um velho em fim de carreira, e põe o adversário, campeão mundial em título, a não ver navios durante 45 minutos. O velho, um menino de olhos tristes, vida de fulgurâncias e outros tantos falhanços, metia golo e chorava, chorava mesmo. Para recomeçar o jogo, Di Maria foi da baliza ao meio-campo, a passo e com lágrimas a molhar a face.

Di Maria foi aposentado e, no banquinho, chorava com a vitória garantida. Chorou com o empate. Com a vitória, outra vez. E o empate. Até que eu lhe disse, porra acabou. Disse isso, porque fui um exaltado pró-argentino e a seguir pró-francês, bleu-blanc-rouge em flashes coloridos como o remate do Mbappé ou as farândolas e grinaldas da festa na aldeia de Monsieur Hulot, que eram a preto e branco, e fui franco-argentino como o Gardel…

Gritei com Di Maria porque o que eu não queria era ver os penâlties com os olhos embaciados. No fim, como se sabe, foi uma tanguédia.

Que belo é o futebol.

Os olhos do mundo inteiro postos nele e ele com tempo para nos recordar Carlos Gardel, que nasceu em Toulouse e inventou Buenos Aires. Para que precisamos de deuses, se criámos o futebol?

Sobre a questão inicial, respondo já. Minuto 36, Messi estava no seu meio-campo, virado para os seus e para a sua baliza. Recebeu a bola com o seu poste cego, a perna direita, e a bola ficou ali, altinha e inútil. Que fazer com aquilo, quando ele era pago para ir em sentido contrário, toda uma vida construída para atacar, ir em frente, frente que estava nas suas costas. Messi estava cercado por cinco franceses. E a bola paradinha, altinha, à espera de ordens.

Demorou, quê?…, a eternidade de um quinquagésimo de segundo. Messi, sempre virado ao contrário, ligou o tal sistema, de raspão colou a pontinha do seu metatarso do pé esquerdo (há outro?), e logo descolou a bola (“Como, meu Messi?”) e a bola correu todo o meio-campo do adversário, com metade dos franceses atrás dela, esbaforidos, abanando a cabeça (“eu sabia, merde, eu sabia…”, dizia cada) e três ajudantes argentinos encaminhando a encomenda até às redes adversárias.

Não me deixei enganar, afundei-me no sofá. Agora não rebobino, sou crente e mais nada: Lionel Messi é o maior futebolista de todos os tempos.


Ferreira Fernandes

Nasceu em 1948 em Luanda. Jornalista – um ponto é tudo.

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3 Comentários

  1. Tão bom. Apetece rebobinar o texto e começar a ler de novo.

  2. Concordo. Messi é o maior. Não vale a pena gritar merde, merde, merde. Ele é audácia, ele é inteligência. Esta, a que todos os outros que lembraste não sobrava (acho que te esqueceste do Coluna…), traduz a Bela Arte. Como Charles Chaplin. Para mim, o cineasta inteligente. E humano. Até que o telefone atenda…

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