
A receita é picante: junte no mesmo espaço dezenas fornos, chapas, grelhas, toneladas de condimentos, vegetais, massas, queijos, carnes, pescados, cebola, alho e sal, litros de óleo, e molhos variados, adicione um polémico ex-CEO da Uber, centenas de entregadores e suas motas, uma pitada de moradores assustados com a perspetiva de ruídos e fumo constantes e… voilá, a polémica está servida. O nome do prato? Dark Kitchen à Alvalade.
Há cerca de um mês, uma centena de moradores do bairro de Alvalade mobilizaram-se através de um abaixo-assinado para tentar junto da Câmara Municipal de Lisboa barrar a instalação de uma dark kitchen na Rua do Centro Cultural.
O que é uma dark kitchen? – cozinha escura, no original. Nada menos que um espaço de cozinha pronto a receber dezenas de restaurantes virtuais, sem público, apenas acessíveis através de pedidos de estafetas.

Cozinhados em forno brando pela autarquia que (ainda) não respondeu ao abaixo-assinado, os moradores insatisfeitos decidiram ir presencialmente a uma reunião da câmara. Expuseram a questão e ouviram da vereadora Joana Almeida, responsável pelo urbanismo e planeamento urbano da cidade, uma resposta insossa com a promessa de uma futura reunião.
Enquanto isso, a futura “cozinha fantasma” que assombra os vizinhos de Alvalade está quase pronta onde já podem ser vistos a serpentear pelo teto os exaustores para exalar o fumo de 22 cozinhas, de acordo com o projeto do empreendimento ao qual a associação de moradores teve acesso.
Polémico ex-CEO da Uber aterra em Lisboa com a sua dark kitchen
Do outro lado da polémica está um masterchef da economia volátil, o bilionário norte-americano Travis Kalanick, nada menos que o cofundador da Uber e da Uber Eats, que após ser demitido de forma polémica da empresa que ajudou a criar passou a investir nestas dark kitchens, com atuação global sob diversas chancelas, todas elas envolvidas em alguma polémica com os vizinhos.
Uma má-fama que pode acabar por colocar água na fervura dos negócios dos empreendedores portugueses que operam outras dark kitchens em diversas cidades do país, ou até mesmo em Lisboa, muitos a optarem por uma versão “à portuguesa do negócio”: menos agressiva e apostadas numa relação mais doce com a comunidade.
Dark Kitchen. A terminologia não ajuda, nem no original em inglês nem na tradução em português, afinal tanto dark kitchens como “cozinhas fantasmas” remetem para espaços lúgubres, onde empregados com longas barbas brancas e unhas negras trabalham acorrentados pelo tornozelo, privados da luz do sol.

A realidade porém tem uma face menos dramática, mais asséptica e profissional, embora não se deva nunca duvidar do excesso de “criatividade” e da falta de empatia do capitalismo em martirizar empregados em nome do lucro.
Um dos nomes que colaboram para manter a má fama das cozinhas fantasmas é precisamente o do norte-americano Travis Kalanick, que 46 anos e 4 mil milhões de dólares depois, foi co-fundador da Uber e Uber Eats e hoje se dedica ao ramo das dark kitchens, as dele espalhadas pelo mundo sob as marcas CloudKitchens e CookLane, entre outras.
Em Portugal, há uma Cloud Kitchens a operar sob esse nome em Setúbal. Mas em Lisboa, a chancela assume a pele da CityChefs, mas faz referência à CloudKitchens no texto de apresentação e indica como local de funcionamento em Portugal justamente o bairro de Alvalade, grafado com uma gralha, com um “s” no fim: “Alvalades”, portanto.
Porta-voz do grupo dos moradores de Alvalade, o arquiteto João Appleton foi quem falou na reunião da Câmara. Duas semanas depois, ainda aguardava pela marcação da prometida reunião. Tanto ele como a centena de outros signatários temem começar a viver os mesmos pesadelos relatados por outros vizinhos de Kalanick.
Recentes artigos dos jornais Financial Times e Insider trazem relatos de antigos funcionários das cozinhas fantasmas nos Estados Unidos, sobre a filosofia tóxica e misógina no ambiente de trabalho, assim como o pesadelo dos vizinhos obrigados a conviverem com ruídos, odores e agressões em vias públicas entre os entregadores.
Em São Paulo, onde operam sob o nome de Kitchen Central, as cozinhas de Travis Kalanick também se tornaram um pesadelo levando a subprefeitura da Lapa – algo como uma Junta de Freguesia da capital paulista – a abrir um processo para cassar a licença de funcionamento das cozinhas fantasmas no bairro.
Cozinhas, uma atividade sem caça-fantasmas
Em Alvalade “serão 22 cozinhas instaladas numa zona classificada pelo Plano Diretor Municipal como residencial e que não foram sujeitas a um licenciamento industrial, sem os estudos obrigatórios para não causarem o impacto ambiental na zona, especialmente os estudos de tráfego e estacionamento”, justifica o arquiteto João Appleton.
A Câmara de Lisboa respondeu à Mensagem, que “não existe regulamentação específica para as dark kitchens“. Acrescenta que são consideradas como estabelecimentos de restauração e bebidas, e “estão abrangidas pelo Regime Jurídico de Acesso e Exercício de Atividades de Comércio, Serviço e Restauração (RJACSR), estando sujeitas ao procedimento de mera comunicação prévia.”

A comunicação prévia, portanto, é a única obrigação dos futuros empreendedores, dispensados pela natureza do seu serviço dos licenciamentos sugeridos pelos signatários de Alvalade.
A CML diz ainda que o procedimento obedece ao Decreto-Lei 48/2011, que criou o Licenciamento Zero a esses tipos de serviço, o que impede a Câmara de “exercer um controlo prévio sobre a abertura dos estabelecimentos comerciais e industriais abrangidos”, diz o e-mail enviado à Mensagem.
Sem controlo prévio e também posterior sobre as cozinhas fantasmas.
Na mesma resposta, a CML assume ainda que a falta de uma legislação específica torna impossível aferir o número exato de dark kitchens a funcionarem em Lisboa. Mesmo assim, garante ter sido criado um Grupo de Trabalho de Urbanismo Comercial e Alojamento Local (GUCAL) para fiscalizar os abusos inerentes nessa matéria.
Convivência relativamente pacífica. Até agora
A Câmara de Lisboa pode não saber quantas cozinhas fantasmas atuam em Lisboa, mas o Google sabe. A Mensagem visitou duas que surgem na lista do navegador.
Encravada numa doca em Alcântara, banhada pelo Tejo e o sol do outono, a Weat parece tudo, menos uma dark kitchen. “Somos uma versão à portuguesa do negócio”, diz o proprietário, Bernardo Rodrigues, 49 anos, um economista que decidiu dar um tempero aos números e fez uma pós-graduação em ciências gastronómicas.

“Somos uma versão à portuguesa do negócio das dark kitchens.”
Bernardo Rodrigues, da Weat
A funcionar desde junho de 2020, em plena pandemia, portanto, a Weat abriga quatro cozinhas com 18 metros quadrados de área – 6 metros desses numa mezanine – onde se revezam 22 restaurantes. Na visita ao espaço, duas delas estavam em operação e o sistema de exaustão não deixava nenhum vestígio de cheiro de comida no ar.
“O sistema é metade dos custos de implementação do projeto”, revela Bernardo. A verdade é que, mesmo se o sistema de extração não cumprisse perfeitamente a função, era pouco provável que Bernardo tivesse problemas com vizinhos e por um motivo simples: a Weat não tem vizinhos.
Arejada pela brisa do rio e ladeada por escritórios e empresas, mais do que vizinhos domésticos, a Weat está cercada por clientes com potencial. “Muitos dos pedidos são de empregados da Farfetch e do jornal Público”, diz, a citar duas das empresas com quem divide o cais.
Quando Bernardo evoca uma versão “à portuguesa” de uma dark kitchen, vai além da brisa e do sol. Ao contrário do que reza a cartilha das cozinhas fantasmas, sem esplanadas ou salão, o espaço tem uma área com mesas para receber cerca de 42 clientes, onde constantemente são desenvolvidas atividades presenciais.



“Tentamos dinamizar o espaço com desafios ao estilo MasterChef ou na iniciativa Cooking for a Cause, onde reunimos chefs para produzir refeições para o Refood” , enumera. A interação com o público deve expandir os limites do lugar em breve, com a criação do que o empresário chama de “esplanada digital”.
“Será a primeira de Portugal, quem sabe, do mundo”, diz Bernardo, sobre a ideia de aproveitar a estrutura de mesas já montada para instalar QR codes para aceder às ementas e fazer os pedidos aos restaurantes instalados nas cozinhas da Weat. As negociações com a CML, segundo ele, já estão em andamento.
A ressalva de uma gestão à portuguesa também é uma forma de se diferenciar do modelo original, mais “à americana ou inglesa”, reforça Bernardo, sem se referir diretamente às cozinhas geridas por Travis Kalanick, que trabalham no sistema 24 por 7 e mesmo antes de abrir as portas já está a criar um certo mal-estar com a vizinhança.
“Embora é preciso lembrar de que isso de ser contra qualquer novidade também seja um perfil cultural um bocadinho português”, ressalva.

Instalada em Picoas, a dark kitchen Now também encontrou uma vizinhança propensa a poucos problemas. Ladeada por dois imóveis com as portas fechadas pertencentes à Câmara, a Now é vizinha de uma escolas de línguas, de costura e pequenos comércios que coabitam em paz com o empreendimento e ainda garantem uma clientela local. “Felizmente, reduzimos os riscos de impacto”, diz uma das sócias, Elisa Veiga.
O prédio residencial por cima das cinco cozinhas que se espalham no rés-do-chão não deu problemas, até porque terá havido uma única queixa, da vizinha do primeiro andar, que foi resolvida com a troca dos modelos do aparelho de exaustão do ar.
A Now é uma cozinha fantasma original, sem lugares para receber clientes, dedicada ao delivery e também é possível a entrega aos clientes no modelo takeway. Há na entrada uma pequena área reservada às entregas, com oferta de água para recarregar as baterias dos entregadores e de entradas USB, para as dos telemóveis.



A funcionar desde 15 de março, a Now tem 25 restaurantes a ocuparem as cinco cozinhas do espaço, a maioria deles “virtuais”. Mesmo assim, o número de entregas não é tão ostensivo, com cerca de uma centena por dia.
Assim como o concorrente da Weat, Elisa garante que a chegada de um player gigante capitaneado pelo ex-CEO da Uber Eats não vai interferir no seu negócio. “Há ainda espaço para expandir esse ramo em Lisboa”, avalia. A própria Now sonha grande, em abrir uma centena de cozinhas em Portugal e Espanha.
Sobre o facto de o novo empreendimento aterrar com uma má-fama internacional na bagagem e já a criar atritos com a vizinhança mesmo antes de abrir, Elisa não teme que as cozinhas fantasmas passem a serem vistas como um “problema” para a cidade.
“Pelo contrário, se nós trabalhamos certinho e outros eventualmente não, acaba por ser uma propaganda positiva para nós”, argumenta.
Cozinhas desmaterializadas, fantasmas que chegaram para ficar
O facto é que as dark kitchens são um elo a mais na cadeia de desmaterialização da cultura da restauração, até pouco tempo estruturada na ida de alguém a um espaço com uma lista de pratos numa ementa, a serem preparados numa cozinha instalada no mesmo prédio e entregues ao cliente por um empregado de mesa.

Acelerada pelos sucessivos confinamentos na pandemia e as cilindradas das motos dos estafetas, cada vez mais a refeição agora viaja em direção ao cliente para ser servida na mesa da sala, da cozinha ou do escritório, satisfazendo o desejo de quem acredita que se deslocar a um restaurante é uma “perda de tempo”.
Sem tempo a perder, o bilionário que ajudou a desintegrar o tradicional serviço de táxi e entregas, agora também desmaterializa os empregados de mesa, maîtres, cozinhas, restaurantes inteiros e toda uma cultura já secular.
Bernardo Rodrigues da Weat conta que uma das suas cozinhas fantasmas é utilizada por um restaurante de “carne e osso”, com três unidades físicas em Lisboa. A lógica é liberar a área da cozinha nos espaços onde o metro-quadrado é valioso, para aumentar o salão para receber um número maior de mesas.
“É uma tendência em praticamente todas as capitais da Europa. Nesses casos, o restaurante mantém uma pequena estrutura para receber a comida preparada nas dark kitchens, montar e aquecer os pratos”, explica. Ou seja: vai-se a um restaurante para ter à mesa um prato entregue por um motoboy. Curioso, no mínimo.

Assim como a Câmara de Lisboa não controla as dark kitchens, as cozinhas fantasmas lavam as mãos em relação ao controlo dos clientes que operam nas chapas e fornos. Cada restaurante é o responsável pela papelada oficial, como os contratos laborais com os funcionários e a certificação HACCP, da segurança alimentar.
A responsabilidade também é dos clientes das darks em relação aos entregadores que se enfileiram nas portas dos estabelecimentos, desde já, um dos piores pesadelos dos moradores de Alvalade.
“Está a ver as dezenas de motas e bicicletas em frente à MacDonald’s de Saldanha”, questiona João Appleton. “Aqui será dez vezes pior”, acredita.
Para além da entrevista com o porta-voz dos moradores, hesitantes sobre se uma matéria a respeito das dark kitchens ajudaria ou atrapalharia nas negociações com a Câmara, os signatários da petição de Alvalade preferiram a discrição e disseram apenas o estritamente necessário sobre o assunto, sem colocar muito mais luz sobre o tema.
Talvez sem se darem conta que do outro lado da mesa está um oponente especialista em se movimentar pelas sombras.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
O jornalista não conseguiu falar com os responsáveis desse projeto de instalação de uma “cozinha fantasma” em Alvalade? Faltou ouvir o contraditório das queixas do moradores. Cumprimentos.
Abram o que quizerem mas sem estacionamento para residentes não devem autorizar o que quer que seja Alvalade está demais sobrecarregado sem estacionamento para residentes e para o comércio que por cá anda uma vergonha a autorização deste tipo de actividade onde não existe estacionamento! Trazer este tipo de motoqueiros para Alvalade .. não vai ser nada bom
Eu não sou contra a evolução do sec XXI, hoje em dia muitos restaurantes optam por ter uma cozinha aberta para a sala que deixa transparecer o cuidado da confecção dos alimentos, quem inspecciona estas novas cozinhas? E já pensaram em zonas residenciais os motoristas a falarem uns com os outros pela madrugada?
Estamos no sec XXI é certo, mas os prédios são do sec passado, e não vão impedir que se ouça um grande aumento do ruido.
O jornalista falou com os responsáveis deste projecto para fazer o contraditório em relação às queixas dos moradores? Cumprimentos
Olá, Mario,desculpe-me pela demora na resposta. Sim, o contraditório foi exercido através de um email enviado há mais de uma semana para o único contato disponível e, infelizmente, dentre os citados da peça o empreendedor foi o único a não responder à Mensagem. Obrigado pela sua preocupação e fique tranquilo que aqui o bom jornalismo será sempre cumprido.
Olá, Miguel,desculpe-me pela demora na resposta. Sim, o contraditório foi exercido através de um email enviado há mais de uma semana para o único contato disponível e, infelizmente, dentre os citados da peça o empreendedor foi o único a não responder à Mensagem. Obrigado pela sua preocupação e fique tranquilo que aqui o bom jornalismo será sempre cumprido.
Muitíssimo interessante! Parabéns. Já aprendi alguma coisa hoje! Muito obrigada!
Este artigo tem demasiados anglicismos.
Como é possivel instalar uma operacao industrial em zonas residenciais ? Nos ultimos 30 anos viví em 6 paises ; 8 cidades em 2 continentes. Das 8 onde vivi Lisboa é a cidade que menos tem em consideração a qualidade de vida dos residentes. Onde eu vivo, hoje, no centro da Europa, seria impossivel isto acontecer ao lado de minha casa. A camara nao deixava e se deixasse , os moradores passavam-se. Diga-se em abono da verdade que em Portugal não existe sociedade civil. As pessoas não se fazem ouvir.