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Entre a aura de temor e polémica que costuma rondar as dark kitchens, há espaço no mercado para modelos de negócio mais criativos e menos agressivos das chamadas cozinhas partilhadas, capazes de interagir melhor com a vizinhança e até trazer um toque a mais de charme e sabor ao bairro onde estão. Uma espécie de dark kitchen “do bem”. É o caso da Kitchenette Pop Up Café, um espaço pequeno, mas com grandes pretensões.
Funciona em Campo de Ourique desde dezembro de 2021, num discretíssimo, porém charmoso ponto na Rua Correia Teles. São 20 metros quadrados de área no piso que dá para a rua, com um balcão e 18 lugares, divididos entre as mesas interiores e a esplanada, e mais 30 metros quadrados de cozinha no subsolo.

Criada pela estratega de marketing part-time e empreendedora a tempo inteiro Joana Duarte, a Kitchenette é, numa definição bem sintética, uma cozinha que tem um café, quando o normal seria o contrário.
Uma cozinha que recebe aspirantes a chefs sem muito espaço e estrutura em casa para começar o negócio, mas que tem no café de Joana um apoio nos moldes de uma incubadora. Não só por contar com uma aparelhagem profissional para, literalmente, pôr a mão na massa, mas também uma pitada adicional de estratégia em marketing.
“Foi pensado para quem não vai passar sete dias numa cozinha, mas duas vezes por semana, por exemplo, e não tem um espaço muito grande em casa nem um frigorífico capaz de armazenar grandes quantidades”, diz Joana, que aos 40 anos pôde finalmente realizar um sonho que a perseguia desde o fim da adolescência.
Um doce sonho.
Um sonho de açúcar, farinha e canela
Um sonho que começou a surgir em paralelo com a atividade na área de marketing. Joana entrava nos vinte anos a trabalhar numa agência no esquema nove às cinco, entre reuniões e brainstorms, mas ainda havia espaço na ocupada agenda e na cabeça dela para sonhar com açúcar, farinha, fermento e canela.

“Eu e uma amiga começámos a preparar bolos para vender para fora. Fazíamos cupcakes quando ninguém em Portugal falava neles. Cupcakes inspirados na tradicional pastelaria portuguesa, bolos de laranja, canela, com frutos no topo”, recorda.
A vida paralela da gestora de marketing na sociedade com a amiga seguiu por cerca de uma década até Joana decidir dar um passo adiante e caminhar com os próprios pés. “Sempre tive vontade de ter o meu próprio negócio e pensei que se não fosse agora, antes dos 40, já não seria”, conta.
Joana trocou o contrato a tempo inteiro na agência pela vida incerta de freelancer, enquanto procurava espaços para abrir o seu sonhado negócio. “Desde o início, pensava numa estrutura pequena, para montar uma cozinha e poucas mesas, para ir testando o funcionamento”, explica.
“Foi pensado para quem não vai passar sete dias numa cozinha, mas duas vezes por semana, por exemplo, e não tem um espaço muito grande em casa.”
Joana Duarte
Entre um trabalho e outro, Joana deambulava pelas ruas de Campo de Ourique, onde mora, em busca de um espaço ideal. “Quando via uma porta fechada num sítio promissor, mesmo que não tivesse um anúncio para arrendar, punha um bilhete por baixo com os meus contactos a dizer que estava interessada em arrendá-lo”, conta a rir.
Foi assim que em 2019 surgiu a primeira versão da Kitchenette, a Pop Up Cozinha, a poucas ruas da atual morada, numa loja com apenas oito metros quadrados. A ideia original era funcionar nos moldes de um café tradicional, mas assim como no famoso meme, diante da expetativa, impôs-se a realidade.
“Logo no primeiro ano, surgiu um imenso trabalho na área de marketing que me consumiu meses de dedicação. Só tinha tempo de ir lá duas, três vezes por semana. Então, pensei em transformá-lo num espaço para pessoas que, como eu, não podiam ficar sete dias numa cozinha, mas precisavam de uma para dois, três dias”, conta.
De portas abertas para Campo de Ourique
E Joana realmente não estava só. Em dois anos, revezaram-se pelos oito metros quadrados da Pop Up Cozinha cerca de 50 marcas. “Pessoas interessadas em encontrar um lugar para elas no mercado e que acabaram por encontrar. Hoje, a maioria delas funciona por conta própria, nas suas próprias cozinhas”, orgulha-se.

A versão inicial operava no esquema semelhante aos das chamadas dark kitchens, as cozinhas divididas entre marcas interessadas em testar o mercado, partilhando também os custos. No caso de Joana, diferente das agressivas “cozinhas fantasmas”, sem os excessivos odores, ruídos e tráfego das motas dos estafetas.
No melhor estilo “menos é mais”, os oito metros quadrados de área na cozinha de Joana, longe de serem um problema, acabaram por ser uma vantagem no relacionamento com a vizinhança. “Não havia como receber muitos projetos de uma só vez, mas apenas um par deles. Ficavam um mês, no mínimo e, no máximo, três”, explica.
A baixa rotatividade também permitia a Joana dedicar-se mais aos clientes, no caso específico dela, com a mais-valia de uma consultoria em marketing e comunicação. “Sempre oferecemos assessoria desde a escolha do nome e criação da marca à produção de conteúdo para o ambiente digital”, conta Joana.
“Sempre oferecemos assessoria desde a escolha do nome e criação da marca à produção de conteúdo para o ambiente digital.”
Joana Duarte
Numa perspetiva empresarial-darwinista, a Kitchenette aberta em finais de 2021 é uma evolução natural da primeira experiência de Joana, oferecendo as mesmas facilidades de suporte físico e em marketing e comunicação aos incubados, numa estrutura e dimensões ampliadas.
Para além do ambiente virtual, é possível ainda às marcas incubadas testarem-se cara a cara com os clientes. Uma marca especializada em oferecer bolos veganos pode, por exemplo, ter o produto testado no balcão do café, com as portas abertas aos vizinhos de Campo de Ourique.
A lógica funciona ainda com brigadeiros, pães de queijo e cookies em geral, mas também com hambúrgueres gourmet e sofisticadas gastronomias produzidas por home chefs vietnamitas.
Aposta nos eventos pop up
Para além do café de portas abertas, Joana organiza esporadicamente os eventos pop up que dão o apelido à Kitchenette, onde as marcas passam por uma espécie de prova de fogo, testando novos produtos para os vizinhos do bairro que, futuramente, poderão repetir a dose em sistema take way.

O apoio em marketing e comunicação continua a ser uma carta na manga de Joana, oferecido inicialmente como uma “degustação”, para em seguida ser servido como parte do plano de incubação, que ronda em média os 400 euros mensais e inclui, para além da consultoria e do uso do espaço, custos com água, luz e internet.
A cozinha, instalada no subsolo, numa área maior do que a do café, conta com uma estrutura completa de chapas e fornos, incluindo de pastelaria, um imenso frigorífico, espaços para a armazenagem de ingredientes e grãos secos e cacifos para os clientes guardarem as fardas de trabalho e objetos pessoais.
Para ilustrar a operação de forma prática, no dia em que a Mensagem visitou o local, havia uma cozinheira francesa que já não tinha espaço em casa e agora usa a cozinha para preparar marmitas a serem entregues para os vizinhos de Campo de Ourique congelarem e terem sempre à mão uma refeição quando desejarem.
“O espaço cresceu, o trabalho também, mas o objetivo é ainda o mesmo de sempre, ajudar a quem está a começar e quer dar-se a conhecer no mercado.”
Joana Duarte
O bichinho do marketing, entretanto, continua a correr no sangue de Joana, que também tem aproveitado o seu empreendimento para testar os clientes que continua a gerir na sua faceta de estratega part-time. Um deles, uma marca de temperos, por exemplo, vai dar-se a conhecer num evento pop up com hambúrgueres artesanais.
Prestes a completar o primeiro ano na nova casa, a Kitchenette já contabiliza duas dezenas de projetos incubados entre a sua cozinha e os pop ups. Joana não esconde aquele sorriso de satisfação de quem conseguiu realizar um sonho que imaginou durante 15 anos, mas que continua a exigir-lhe uma boa dose de dedicação e criatividade.
“O espaço cresceu, o trabalho também, mas o objetivo é ainda o mesmo de sempre, ajudar a quem está a começar e quer dar-se a conhecer no mercado. Fazemos a nossa parte, os nossos parceiros fazem a deles e assim, como se diz por aí, the rest is history”, finaliza.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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