Associação Amigas do Peito
Em Lisboa, a crise da habitação é vivida por vários grupos de forma diferente. Para os especialistas, é preciso voltar a regular o mercado. Como? “Impor um limite aos valores das rendas” - como já existem na Alemanha e em França, por exemplo. Foto: Rita Ansone

Partilhar casa deixou de ser coisa de estudantes. Os relatos de quem não consegue encontrar rendas compatíveis com os rendimentos de um início de carreira multiplicam-se e hoje são milhares os lisboetas, em idade adulta e com empregos estáveis, a dividir casa e a morar em quartos.

Nesta peça, mais abaixo, veja os testemunhos de alguns jornalistas da Mensagem que estão ou estiveram nesta situação. Pensámos em procurar testemunhos pela cidade, mas rapidamente entendemos que não precisávamos de ir longe. Encontrámo-los dentro da própria redação.

Na cidade, a crise da habitação é vivida por vários grupos de forma diferente. Num momento em que as receitas do turismo na cidade sobem face a valores pré pandemia, a oferta de quartos destinados ao mercado de arrendamento de estudantes em Lisboa regista este ano uma redução de 80%, segundo o Observatório do Alojamento Estudantil da Direção-Geral do Ensino Superior (DGES).

Para Simone Tulumello, investigador na área da Habitação no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, a “flexibilidade” dada aos senhorios pelo sistema atual, “fundamentalmente desregulado”, permite-lhes não só ganhar mais, como possibilita trocas consecutivas, “de arrendatário em arrendatário com uma fluidez total”.

Para além de fazer investigação na área da habitação em Lisboa, Tulumello conhece quem hoje partilhe casas “que, há uns anos, eram de estudantes”. “Normalmente, aos 40 anos, já terias a tua casa, mas estás a partilhar”.

A crise nos quartos para estudantes não é uma falha isolada da oferta habitacional. Quando “resolvemos problemas pontuais”, como o dos estudantes, “escapa-nos sempre algo”, diz Tulumello. “[Se] ajudas estudantes, crias problemas para outros”. É “o jogo do empurra o seguinte”.

Para os especialistas, é preciso voltar a regular o mercado. Como? “Impor um limite aos valores das rendas” – como já existem na Alemanha e em França, por exemplo.

E pôr termo aos “fluxos especulativos de investimento”, dando como exemplo os investimentos realizados por fundos imobiliários e pelos chamados vistos gold – as autorizações de residência concedidas a troco de investimento.

Limites ao Alojamento Local ajudam? Importante é priorizar a habitação

O Regulamento Municipal do Alojamento Local (RMAL) e os limites impostos à emissão de novas licenças em 11 freguesias da cidade ajudam? Esta semana, foi aprovado em reunião de câmara um prolongamento por seis meses da suspensão aplicada à emissão de novas licenças de AL nas 11 freguesias da cidade em que o número de AL supera os 2,5% do total de fogos existentes. Campolide foi acrescentada.

Um grupo de cidadãos está a trabalhar no sentido de promover a realização de um referendo local à habitação. O objetivo é “mudar o regulamento municipal do alojamento local para impedir que esta atividade possa existir em prédios com licença para uso habitacional”.

Simone Tulumello crê tratar-se de uma iniciativa “importante” e apoia-a. “O objetivo é fazer uma pequena reforma, que vai dar uma pequena ajuda na direção certa, mas estas coisas são sobretudo importantes para apontar o caminho. Se o referendo conseguir um grande sucesso que aponte nesta direção, além de uma medida útil, é também uma clara indicação política a quem governa a cidade e o país”, diz.

Mas isso não é suficiente, alerta Tulumello. “É muito evidente que se trata de uma panóplia de fluxos diferentes, de pessoas e capitais. A questão é regulamentar, priorizar a habitação”.

A cidade de Lisboa atravessa uma onda de investimento imobiliário e reabilitação, mas a população recua. “Estamos a reabilitar, mas não estamos a recuperar população. O censos de 2021 demonstrou que as freguesias com mais reabilitação também foram aquelas onde mais se perdeu população. Acelerou-se a perda de população que já estava em curso. Antes, por causa da falta de reabilitação, agora por causa do investimento”, explica o investigador.

Entre 2011 e 2021, Lisboa perdeu 1,4% da sua população – tem agora menos 7849 habitantes.

Entre 2014 e 2018, o Alojamento Local (AL) cresceu 100% ao ano em Lisboa e a concentração deste tipo de alojamento, ligado à explosão do turismo na cidade, verifica-se sobretudo nas freguesias do centro histórico.

A freguesia da Misericórdia perdeu 26% da sua população residente e Santa Maria Maior perdeu 22% dos habitantes. Nestes dez anos, a atividade de AL em Santa Maria Maior alcançou um peso de 52% face ao alojamento habitacional clássico.

Estão atualmente ativas mais de 20 mil licenças de AL dentro dos limites da cidade. 


A Mensagem quer promover a discussão em torno da crise da habitação em Lisboa. Quer dar conta das estratégias adotadas noutras paragens e quer falar com investigadores, especialistas e com quem mora na cidade e na sua periferia.

Neste texto, procurámos dar voz a quem sofre a crise na pele, a quem não sabe como pagar a renda no final do mês e às pessoas que se veem forçadas a falhar jantares de amigos para poder pagar as contas: os nossos jornalistas. Alguns estão em início de carreira, ainda em estágio. Outros já têm alguma estabilidade, e se tivessem iniciado as suas carreiras há mais tempo, nos anos 90, ou 2000, teriam uma casa. Hoje, os preços não permitem.


“Confesso que tenho ansiedade quando penso no futuro

por João Damião

João Damião

Comecei a faculdade bem, a ser entrevistado pela RTP. De microfone apontado, o jornalista inquiria o meu pai, que me acompanhava na inscrição, sobre os valores de quartos em Lisboa. Ele lá ia atirando para o ar as somas do que tínhamos visto na internet: quatrocentos, quinhentos…

O repórter quase levava as mãos à cabeça, sorriu e disse: «Lisboa sai caro…».

Jamais me esquecerei do dia 8 de setembro de 2018. Estava a arrumar a louça do jantar com a minha mãe, quando recebi a notícia que tinha entrado em Ciências da Comunicação na NOVA FCSH, a minha primeira opção.

De Santarém à capital, este é o início de uma odisseia. Com 18 anos, tive de enfrentar, sozinho, os desafios da cidade.

É claro que o mercado de arrendamento é um dos principais. E esta epopeia fez um filho único crescer e descobrir um poço de coisas que jamais pensou existir dentro dele. Porque convenhamos. Por mais civilizada e cosmopolita que seja, Lisboa tem um quê de selvajaria. Para um jovem sobreviver, o «desenrascanço» é um perpétuo estado de alma.

«Desenrascanço» que não tinha.

A minha família é escalabitana – assim se chamam os naturais de Santarém, para invocarem os seus antepassados dos tempos dos Césares. Normalmente, os ribatejanos não gostam de ser metidos no mesmo saco que alentejanos, embora tenhamos alguma coisa em comum. O «deixar andar» é uma delas.

Foi assim que primeiro encarámos a questão da habitação em Lisboa: «ver no que dá».

Afinal, as colocações no ensino superior são injustamente tardias para os alunos deslocados: os resultados saem escassos dias antes do ano letivo arrancar e uma boa média não garante entrada direta na universidade ou cidade que queremos.

No meu caso, tinha ponderado outras hipóteses, como Coimbra, caso não conseguisse entrar em Lisboa.

É suposto fazer o quê? Assinar um contrato de arrendamento em duas localidades diferentes? Esperar que os resultados sejam oficiais e planear uma mudança de vida em sete dias?

No meu caso, de privilegiado, foi possível esperar. Discutindo em família, decidimos que começaria o ano letivo em casa de uns primos, na Quinta do Gato Preto, em Almada. Nos anos 60, os meus tios-avós saíram da «terra» para o meu tio ocupar uma posição na Marinha, por isso, desde muito pequeno, passava férias na Costa da Caparica e a minha tia dizia sempre «quando vieres estudar, vens para aqui».

A opção era confortável. A minha tia avó insistia em fazer-me sopa e orientar-me para apanhar os transportes até Lisboa.

A questão é que sou filho único, sobrinho único do lado da mãe, neto mais novo do lado do pai. Ainda hoje, com 22 anos, as minhas tias tratam-me por «Joãozinho» nos almoços de família. Como acham que isto correu?

Primeira semana de aulas: não gostei da faculdade e muito menos de Lisboa.

Tinha de apanhar um autocarro na Quinta do Gato Preto até à estação de Corroios. Aí passava para o comboio, que demorava cerca de 20 minutos até Entrecampos. Era um percurso que podia levar perto de uma hora – medonho para um menino do interior que ia para a escola de carro.

Lembro-me de chorar no comboio a ouvir a Landslide da banda norte-americana FletwoodMac, ouvindo em repetição o verso “I’ve been afraid of changing cause I’ve built my life around you” (em tradução livre, “Tenho tido medo de mudar, porque construí a minha vida à tua volta”).

Não queria que a minha vida tomasse outro rumo. Fiz as malas, falei com a família e lá regressei a Santarém. Quando cheguei a casa, disse à minha mãe que queria desistir. Ela só respondeu “nem penses”. E não pensei mais.

Mas a Margem Sul não podia ser destino para mim. Não queria desperdiçar nenhum fim de semana sem voltar ao ninho, por isso opção mais confortável para conciliar as minhas duas geografias era mesmo arranjar um quarto em Lisboa.

O problema eram os valores. Na altura, um dos meus melhores amigos propôs ir para a Graça, dividir quarto, a pagar 250€, sem despesas incluídas – internet, luz, água, enfim.

Até encontrar uma boa opção, fiz aquilo que muitos dos meus vizinhos fazem: descer o Tejo todos os dias de comboio, no regional. A viagem não é longa e em 50 minutos chega-se ao Oriente ou a Santa Apolónia. Os preços também diminuíram desde que foi criado o passe da Área Metropolitana, em funcionamento a partir da Azambuja.

Num dos primeiros dias de aulas, uma professora perguntou-me se ia e vinha todos os dias, porque, dizia ela, “desde Santarém é fazível”.

Na licenciatura, tinha dois colegas já reformados, antigos engenheiros, que me contavam que as secretárias partiam todos os dias de Tomar para trabalhar em Lisboa – o que significa que viajavam de comboio umas quatro horas diárias…

Hoje, Santarém tem uma faceta de cidade dormitório, particularmente a zona onde vivo, Almoster, uma área rural, servida por um acesso à A1. Grande parte dos meus vizinhos são lisboetas e continua a trabalhar em Lisboa.

Um dia, numa boleia, uma delas contou-me que gastava 400€ mensais de combustíveis (isto no tempo em que não estavam em altas). Era preferível ir de carro porque só demorava 40 minutos e “é melhor do que pagar mais de mil euros de renda”, acrescentou.

Depois, há a questão da qualidade de vida. No Ribatejo, encontram vivendas com piscina e jardim que são uma raridade em Lisboa. Talvez comuns na Margem Sul, mas a preços já exorbitantes. 

E ninguém fala destas pessoas que sucumbem ao mercado em Lisboa e escolhem Santarém… muito menos dos problemas que enfrentam.

A sobrelotação dos regionais é um deles. Muitas vezes não há lugares sentados. Um dia fiz o exercício de contar quantas pessoas vinham na minha carruagem, perdi-me nos 60. Ora, o comboio pode chegar a ter mais de cinco carruagens. São milhares todos os dias aqueles que apanham comboio em Tomar ou Santarém para trabalhar em Lisboa.

Mas o cansaço de «ir e vir» não durou muito para mim. Consegui arranjar um quarto na zona de São Sebastião, perto da minha faculdade, em poucas semanas. Pela FCSH, estão espalhados inúmeros anúncios e há até cartazes afixados.

Ainda assim, sujeitei-me: para pagar menos tenho de partilhar quarto, cozinha (o que mais me aflige por estar muitas vezes ocupada) e casa de banho.

Confesso que sofro de ansiedade quando penso no futuro. Quero continuar em Lisboa, a fazer aquilo que amo, jornalismo, mas não quero continuar a viver num quarto, muito menos partilhado.

Por muito boa que essa experiência tenha sido. Já partilhei quartos com colegas da minha faculdade, de áreas diferentes, que me ensinaram muito e que se tornaram grandes amigos.

Sobretudo fizeram-me crescer, ensinaram-me a fazer cedências e a ter uma atitude de «desenrascanço» perante a ausência de papel higiénico em casa ou de um frigorífico praticamente vazio. Lembro-me de uma colega de casa que nem sabia fazer um refogado… e do quanto nos rimos.

Enfim, na minha história, nem tudo é negativo, ainda que sinta que esse tempo já passou. Agora os projetos são outros.

O sonho, esse, continua o mesmo: viver em Lisboa, mas sempre com um pézito no Ribatejo.

“Um quarto num T2+1 com bunker na Junqueira, TV e net não incluídos

por Inês Leote

“Aqui era a sala, agora é mais um quarto” – foi o primeiro apontamento do senhorio na visita guiada ao T2 da Junqueira, de onde escrevo hoje. Era num T2+1 que provavelmente iria morar nos próximos tempos.

Tinha ainda dois anos da licenciatura para fazer, não se adivinhava uma pandemia, e estava no meu último mês de trabalho de verão – agosto. Numa folga, vim do Algarve com a minha mãe de Expresso, para condensar a visita ao máximo e regressar à casa onde com certeza não iria morar nos próximos tempos.

Este apartamento em Belém foi a segunda casa que visitámos juntas. A primeira foi na Amadora, onde vivera seis meses com “dois adultos” –  era assim que lhes chamava com os meus 18 anos. Trabalhavam durante o dia e trocávamos apenas um “boa noite” entre o frigorífico e as bocas do fogão e jantávamos sozinhos nos quartos. O meu valia 310€.

Acordava com uma margem de tempo pensada para as aulas – estavam a 1h45 de distância, num bom dia para a frequência do 729. A certa altura, fartei-me do trajeto e decidi caminhar todos os dias desde a Igreja de Benfica.

Não minto, pensava como seria viver ali. Via mais crianças na rua, via mercadinhos, árvores, bancos, cafés, uma vida de bairro. 

Não sabia o que era a “periferia de Lisboa”, nem sabia que vivia nela, mas sentia-me prejudicada. A assustadora rotunda das Portas de Benfica separava duas Lisboas e eu não a atravessava a pé sozinha.

Disso passei para o privilégio de viver dois meses sozinha no T2 de um familiar nas Laranjeiras, até chegar novamente o verão e regressar ao Algarve para trabalhar. Foi nesse verão que eu e a minha mãe visitámos o quarto onde agora escrevo.

O prédio “dos anos 50”, com uma escadaria estreita – pelo menos para a minha envergadura, eu que a subi cheia de malas de início de vida. Como arquiteto que era, o senhorio tinha um “Pronto, é das antigas mas vai-se renovando” na ponta da língua, não fossem as nossas expectativas exigir demasiado.

Dois passos desde a porta de entrada e estava na cozinha. Eu e a minha mãe atrás dele, em fila, por um corredor mais estreito que a escadaria, a espreitar e a ouvir com atenção:

  1. “Ali era a sala, agora é mais um quarto. Este tem varanda. Agora vem a minha filha para aqui” [confirmado o T2+1];
  2. “Não temos máquina de lavar, mas há uma lavandaria barata uns números acima”; 
  3. “De quando em vez têm de limpar a rede da pia que está por baixo do tampo, sob o lavatório [segui a ligação que ele sinalizava com o indicador levantado – terminava na marquise, num buraco na parede tapado com papel], se começar a escorrer pelo chão, cai na roupa da vizinha”. 

Assentimos. Meia volta sobre os pés e seguimos para a casa de banho. 

  1. “Esta banheira nunca foi mudada, é muito boa, é daquelas em que se escondem nos filmes de guerra [afinal, seria um T2+1 com bunker].

Rumámos ao quarto, “com licença”, apertados os três. “Tem luz natural o dia todo. A  mobília mete-a onde quiser, quando a minha filha tirar a dela”. Vazio valia 220€. Mais 30€ fixos de despesas: água, eletricidade e gás. 

Hoje vale 250€, mais os ditos 30€. Não havia, nem há máquina de lavar. Não havia, nem há televisão. E não havia, nem há internet. Sim, como nos anos 50. 

  1. Não passava, nem passa recibo. Sim, como no século XXI. “É um compromisso de honra”. E já dura dois anos.

É uma “pechincha”, sim, se tiver tempo e coragem para voltar aos jogos de comparação com outros T2+1, sem bunker, disponíveis nos sites e grupos de arrendamento.

Para os senhorios desses apartamentos, a honra fica à porta – para entrar pedem prova de contrato de trabalho e, no mínimo, três recibos de vencimento; fiador, três rendas e, se for necessário escolher o melhor candidato, uma entrevista.

Os meus seis meses na Amadora fizeram-me querer a vida de bairro. Depois, os meus dois anos em Belém fazem-me querer a vida numa casa completa. Os meus três anos em sites de arrendamento fazem-me aceitar casas sem sala, televisão ou internet, nem que seja por mais uns meses.

Não deixo de sentir que estou no prato mais leve da balança. Afinal, ainda há muitas mães a passar a rotunda das Portas de Benfica a pé e muitos estudantes à procura do primeiro quarto na cidade, onde espero que não tenham de fazer sala e cozinha.

O mistério da banheira no meio do quarto e a casa onde só estive quatro noites

por Catarina Reis

Começou tudo num telefonema que me dava uma vaga de trabalho em Lisboa. Eu, que já me adivinhava órfã do Porto, porque as redações dos jornais continuam a marcar mais presença na capital, oficializei-me jornalista numa viagem do Douro até ao Tejo.

Aqui, comecei com duas semanas de estadia apalavrada num sótão de Belém. Uma pechincha com vista para a bela margem sul, devo confessar. Estava longe de imaginar que, em quatro anos, mudaria seis vezes – e que numa delas só duraria quatro noites.

Tinha o tempo contado para sair daquele sótão. Duas semanas e nada mais. Um a um, os apartamentos daquele prédio, que até então albergavam estudantes, seriam entregues ao Alojamento Local. Diz que rende mais para quem faz do aluguer vida.

Tinha o tempo contado neste sótão em Belém. Foto: DR

Dedilhei números no telemóvel sem me cansar, à procura de senhorios com propostas económicas. Nessa altura – isto foi há cinco anos e até parece simpático visto agora – os preços variavam entre os 200 e 400 euros por quarto.

O que nunca pensei – chamem-lhe inocência da idade, falta de experiência ou uma provinciana sem dotes para ser lisboeta – é que a preocupação, daí em diante, deveria ser mais do que financeira.

O primeiro contacto que fiz recusou dar a morada do quarto que estava a alugar. Um homem do qual só guardo na memória a voz rouca, propôs um primeiro encontro, uma espécie de rastreio (como me fez crer), mas “bem afastado” da morada do aluguer. Não cedi à proposta e investi naquele telefonema: descobri que se tratava de um anexo dentro da casa dele, onde morava com a companheira e onde sugeria que partilhássemos a sala, de vez em quando, para ver televisão juntos. A cada nova proposta do senhorio, um novo alarme soava.

Agora, sim, sabia que dinheiro podia ser a primeira pergunta, mas não a única.

Se encontrava um bom quarto, não podia utilizar a cozinha. Pus-me logo a analisar qual seria a minha disposição para comer de pernas cruzadas, na cama, saladas embaladas, sopas ou croquetes frios.

Eram tantos os quartos, no mercado, sem acesso à cozinha. Foto: DR

E mesmo que a miscelânea de sexos num mesmo apartamento não me fizesse comichão, fez a muitos senhorios para quem “só rapazes” era uma condição de entrada.

Mas e os quartos por mobilar? Aos 200 euros, acrescem as despesas, uma cama e – não fosse dar-me ao luxo – um armário que tinha de ser eu a comprar?

Depois, encontrei propostas em que a cama era, afinal, feita de paletes (com um colchão por cima, é certo). “Moda”, fizeram-me crer. E até um quarto numa cave, sem qualquer janela, e com uma banheira plantada mesmo no meio. Uma banheira, só uma simples banheira. Qualquer que fosse o conceito de open space ali arquitetado, não me convenceu.

Não raras vezes, neste enredo, quem nos salva é o “amigo, do amigo, do amigo, do amigo, que tem um amigo que conhece alguém que aluga um quarto”.

Foi assim que fui parar a um quarto no Saldanha, por 350 euros. Já não era uma pechincha, mas partilhei casa com uma senhoria que se tornou amiga, num apartamento de sonho – daqueles com salas que podiam ser lindas bibliotecas nacionais – e num quarto onde a limpeza nunca me preocupou, porque a Elissangela ia lá limpar dia sim, dia não.

Hoje, penso se agradeci o suficiente por a minha senhoria não só me ter dado abrigo durante aqueles meses, como me ter doado candeeiros, mantas, edredons, almofadas e utensílios de cozinha até mais não, quando me mudei.

A primeira vez que abandonei aquela casa só durei quatro noites fora. Não tive vergonha, liguei e pedi para voltar.

Fiei-me na história “do amigo, do amigo, do amigo”, porque a primeira correu bem. Estavam a oferecer-me um T2 – todo para mim -, em Alfama, com uma vista que nem em sonhos ambicionava. Por 200 euros.

Era um apartamento velhinho, com decoração antiga, uma casa de banho que desconfiei não ser limpa há anos e um fogão que nem me atrevi a manusear. Era uma valente pechincha. No primeiro dia, eu investiria na limpeza, sem problema.

Linda por fora, mas um problema no miolo – foi assim a minha experiência em Alfama. Foto: DR

Ali, viviam, até à data, duas irmãs, idosas e viúvas, sempre vestidas de preto, e que se mudariam para Carcavelos, para a velha casa de uma delas. “Estás à vontade para fazer o que quiseres”, repetiam, com um tom de simpatia que reconheci da terra de onde venho, Valongo.

Validaram-me a vontade de pôr o quarto ao meu jeito, modernizá-lo com as muitas coisas que a minha antiga senhoria me tinha deixado trazer, até mudar a capa das almofadas da sala. E organizar a minha despensa como bem entendesse.

“Tens a casa só para ti e avisamos-te sempre que cá quisermos vir.”

Mas, no dia seguinte, tinha o feijão frade e as latas de atum num armário perto da casa de banho. A cruz de madeira de cinco palmos que tirei de cima da minha cama voltou misteriosamente para lá e as fronhas das almofadas que tinha mudado despareceram.

E nem foi por isto que só durei quatro noites naquela casa.

Na segunda noite, ouço bater na porta do meu quarto. A do meu quarto, não a de casa, onde supostamente só deveria estar eu. Eram elas. Dez e meia da noite e queriam que eu fosse ver fotografias num álbum de família. Sou diplomática nestas situações, procuro a empatia, mas não durou cinco minutos até que pedisse licença e voltasse para o quarto. O dia seguinte era de piquete na redação e eu tinha de me levantar cedo.

Sete da manhã e ouço bater à porta do quarto outra vez.

Já estava vestida, pronta a sair. “Bom dia. Hoje vamos consigo até ao trabalho, fazer-lhe companhia até lá.” E as propostas, quase em jeito de imposição, não pararam de surgir: era ir à paróquia conhecer o padre ou visitar a casa de Carcavelos a meio da tarde, em dia de trabalho.

Em casa, as coisas continuavam a desaparecer e a transitar de lugar. Afinal, “a cruz fica tão bonita ali”.

Confesso que não soube gerir a carência das duas senhoras, que talvez só quisessem companhia, até uma neta, e liguei à minha antiga senhoria. Voltei, mas com a promessa de não ficar eternamente.

E este foi o ponto de viragem nesta minha saga lisboeta na procura por um teto.

Alugar um quarto, em vez de uma casa, nunca foi discussão. O dinheiro para arrendar ou até comprar, para quem estava só nessa altura a abrir o mealheiro, seria impensável. Arrendar, nunca sozinha, e os meus amigos estavam a quilómetros e quilómetros de distância. O mercado, já se sabe, está feito para vida a dois – a três, a quatro, por aí em diante. Para bons amigos ou para casais.

E se eu tinha tratado do assunto cedo – apaixonei-me aos 16 e, aos 27 anos, estou de casamento marcado – ele viveu no Porto durante todo esse período.

Mas, regressada ao Saldanha e com a cabeça ainda a latejar da anterior aventura, tinha chegado a altura de termos esta conversa a dois – mais cedo na vida do que tínhamos idealizado.

Tirámos uns dias para visitar casas em Lisboa. Íamos arrendar um T1 ou, quem sabe, um bom T0 – lembro-me de ver que os preços eram geralmente mais baratos para os primeiros do que os segundos, transformados num open space de luxo em casas que eram a dos porteiros dos prédios. Ativámos os alertas em todas as aplicações de arrendamento de casas e não creio que tenhamos feito uma única refeição, nesses dias, sem que os nossos olhos percorressem incessantemente toda a geografia imobiliária de Lisboa nos telemóveis.

Os preços estavam loucos, mas eu tinha negociado com a minha senhoria que lhe libertaria o quarto até maio desse ano.

Tudo o que encontrávamos estava por mobilar, por isso, preparamo-nos para um investimento maior. Acabamos num T1 numa cave de um prédio de Benfica – com uma janela no teto do quarto virada para a rua e uma maior na copa da cozinha, virada para o pátio interior do prédio. Uma sala 5×3 metros e sem luz. Uma casa de banho também sem luz. Um corredor, sem luz. E nunca chegamos a abrir a janela do quarto, não fossem os transeuntes espreitar. Vivemos ali, durante um ano, por 700 euros.

700 euros por um T1, que não era mais do que uma cave remodelada. Foto: DR

E sem recibo. “Se quiserem recibo, tenho de subir o valor”, ouvimos, neste e noutros apartamentos que visitamos.

Achávamos que conseguiríamos dar conta de um valor tão alto. E conseguimos. Mas, a certa altura, pensámos se viver em Lisboa não seria um luxo do qual estaríamos dispostos a abdicar.

Afinal, tinham chegado os passes metropolitanos a 40 euros. Cidades como Amadora, Vila Franca de Xira, Sintra, Barreiro, Almada podiam ser a nossa casa, com menor esforço financeiro.

Por lá, as casas deveriam estar mais baratas. E nós nem nos importávamos com a distância – de onde vimos, habituámo-nos a não ter nada por perto, a esperar uma hora pelo próximo autocarro e a fazer tanto a pé.

Foi quando descobrimos Alhandra.

Ainda hoje troço do facto de ser uma terra cujo nome nunca tinha ouvido falar antes de me ter posto a percorrer, em pessoa, as pequenas agências imobiliárias da linha da Azambuja. Nesta pequena terra de Vila Franca de Xira, do lado antigo e virado para o rio, a maioria da paisagem é devoluta. Faz querer que este pedaço de terra foi esquecido durante anos, não fossem as obras que agora se vão vendo e os casais jovens a chegar. Talvez também vindos de quartos a 350 euros, com banheiras lá dentro e sem uma janela para ver o tempo que faz lá fora.

Foi aqui que nos instalámos, num T2 a pouco mais de 30 minutos de comboio de Lisboa e que – adivinhamos – na capital poderia custar-nos uma renda acima dos mil euros. Vivemos com o rio aos pés da cama e um passadiço até Vila Franca de Xira que é, hoje, o nosso maior luxo. Aqui, descobri um herói antigo e escrevi sobre ele, na Mensagem. Mas também que o meu vizinho é uma estrela de cinema.

Dois anos depois de aqui chegada, esta terra começa a ter rendas e preços de terrenos que são também eles um luxo – há uma casa que ando a namorar há vários meses e descobri que entrou para o mercado por meio milhão de euros. Sobretudo depois de anunciada uma obra para o alargamento deste passadiço até Lisboa, nos próximos anos.

Hoje, comprar uma casa sem que sejam necessárias grandes reformas, aqui ou em Lisboa, obriga-nos a uma taxa de esforço que, enquanto casal, depois de anos de rendas altas, ainda não conseguimos atingir. E questionámo-nos se algum dia conseguiremos.

Como se não bastasse, o Banco de Portugal lembra-me que o tempo que me resta para avançar na vida escoa a uma velocidade que não é a da minha maratona. Vejo-o a passar pela ampulheta da juventude. É que, desde abril deste ano, quem tem entre 30 a 35 anos só pode pedir financiamento para a compra de casa a um prazo máximo de 37 anos. Para aqueles com idade acima de 35, o limite é também ele 35.

Não, não deixo de notar que reclamo debaixo de um teto e com condições com que muitas das pessoas com quem me cruzo em reportagem não têm. Mas permitam-me falar por esta geração à procura do futuro. Nem sei se estamos a prolongar a juventude, ao fazer de grande parte de nós jovens sem capacidade para sequer alugar uma casa, a viver com os pais por tempo indeterminado. Ou se estamos mesmo a tornar permanente esta fase da vida.

“Aos 24 anos, fui obrigada a viver como uma universitária”


por Ana da Cunha

Cheguei à  Mensagem há cerca de um ano e nessa altura Lisboa já não era novidade para mim: em 2019, decidi mudar radicalmente de área de estudo, passando de uma licenciatura em Teatro, no Porto, para um mestrado em Jornalismo, em Lisboa.

Mesmo aos 23 anos, recomeçar nem sempre é fácil.

Quando já seria expectável encontrar um emprego e alguma estabilidade, eu estava, uma vez mais, à procura de uma vocação.

Mas Lisboa significou um recomeço. E nesse recomeço tive a sorte de ser acolhida por uma prima num apartamento em Campolide. Porém, com a pandemia, vi-me obrigada a regressar ao Porto, e só em 2021 é que o recomeço realmente entrou em marcha na Mensagem.

O problema: entretanto o quarto em casa da minha prima fora ocupado. Até então, nunca me aventurara pelas surpresas do mercado imobiliário, muito menos em Lisboa.

Licenciei-me no Porto e morei sempre em casa dos meus pais, o que me poupou uma série de complicações: partilhar casa com outros universitários, tricas entre quem quer grandes festas e quem aprecia o sossego de um sábado à noite.

Em 2021, fui forçada a viver tudo isso, não com 18 anos, mas sim com 24.

Para mim, a única opção era, claro, alugar um quarto. Os preços na internet eram já hilariantes, se bem que nos últimos tempos se tenham tornado ainda mais. Felizmente, graças ao “palavra passa palavra”, arranjei um quarto em Santa Engrácia, pelo surpreendente valor de 280 euros mais despesas, uma ninharia comparado com o que hoje se encontra nas plataformas de aluguer.

Gosto de onde vivo, estou bastante perto da Baixa e da redação da Mensagem e tenho o metro de Santa Apolónia a uma curta distância de oito minutos.

Mas nem sempre é fácil dividir casa com mais três pessoas.

Há a questão da limpeza, do barulho, da ocupação da sala de estar (da qual confesso me ter apoderado nos primeiros tempos por manifesta falta de comparência dos outros três hóspedes). Horários e hábitos diferentes.

Com 25 anos, a caminho dos 26, sinto-me deixada para trás: não tenho outra hipótese se não alugar um quarto, uma casa, sozinha, está fora de questão. E sair deste é uma decisão difícil.

Sei que sou privilegiada em muitos aspetos: vivo num quarto decente com uma renda acessível, mas por vezes temo vir a nunca conseguir alugar uma casa só para mim. Viver aquilo que “devia ter vivido” aos 18, procurar novas oportunidades e encontrar independência e estabilidade em Lisboa continua a ser um desafio.

Tenho pelo menos a sorte de ter um trabalho que me permite falar disto mesmo: do que significa viver em Lisboa para todos nós e que soluções se podem encontrar para uma cidade mais justa para todos. E os jovens são dos grupos que mais tem sofrido na pele: quero um futuro em que vivo confortavelmente e em que tenho direito a um espaço meu.

Um direito que é de qualquer jovem adulto.

“Se isto continua assim, volto para Guimarães”

por Carolina Salgado

Mudei-me para Lisboa há pouco mais de um ano. Desde miúda, sempre soube que a minha vida não passaria por Guimarães, mas por aqui. Não tinha era consciência de como seria difícil manter uma qualidade de vida minimamente decente. 

Tenho 22 anos, nasci e cresci numa pequena aldeia de Guimarães, em Candoso São Martinho. Em 2018, fui viver para a Covilhã para fazer a licenciatura em Ciências da Comunicação, na Universidade da Beira Interior.

Quando terminei a licenciatura, em 2021, senti que voltar para Guimarães seria como voltar atrás no tempo. Então, com o apoio da minha mãe decidi enfrentar Lisboa e viver cá. 

Para quem conhece Candoso São Martinho, sabe a calma que a terra é. Toda a gente sabe o meu nome, quantos anos tenho e o que jantei na noite anterior. Ou seja, o oposto de Lisboa.

Aqui ninguém me conhece e ninguém quer conhecer. 

Quando decidi que queria viver em Lisboa, a minha primeira preocupação foi: “Qual é a melhor zona para viver?”. Até hoje, não tenho resposta para essa pergunta. 

Não conhecia a capital, tinha vindo cá uma vez para ir ao Oceanário. Para mim, era uma cidade totalmente desconhecida. Não sabia como funcionava o metro, não sabia onde ficavam os supermercados e as farmácias. Conhecia algumas ruas e praças graças ao Monopólio (o jogo), mas não sabia onde ficavam e como chegar lá.

Na altura, quando comecei à procura de um quarto para arrendar, tinha consciência de que não queria viver no caos da cidade, por estar habituada e gostar de viver em zonas tranquilas, sem grande barulhos e problemas. O mais importante para mim era estar perto dos transportes públicos, uma vez que com eles iria conseguir chegar a todo o lado.

Através do OLX, encontrei um quarto num apartamento T3, na Encarnação, perto do metro. Pelas fotos, tanto a casa como o quarto pareciam espetaculares. Quando fui visitar, tive a certeza de que eram. A casa foi totalmente renovada em 2018 e estava mobilada. 

Parecia uma casa de sonho: muito bem decorada, numa zona calma, com transportes públicos perto e com uma senhoria muito simpática. Mas tem um problema que afeta muitos dos jovens que querem viver em Lisboa: a renda.

Pelo quarto, pelas áreas comuns (casa de banho, sala e cozinha), pelas despesas e ainda por limpeza semanal, a senhoria cobra 400 euros, sem recibo.

Tentei procurar quartos mais acessíveis com condições parecidas, mas nada foi do meu agrado. Então, falei com a minha mãe e ela concordou em ajudar-me a pagar a renda. 

Vir para Lisboa sem um trabalho garantido, mesmo que não fosse na área, era impensável. Em setembro de 2021, comecei a trabalhar como professora de AEC em escolas primárias.

Com uma renda de 400 euros, o ordenado quase que não chega para pagar as restantes despesas que tenho, como alimentação, transportes e viagens a Guimarães, mesmo com a ajuda da minha mãe. 

Para quem recebe menos que o salário mínimo, 400 euros é uma grande diferença na carteira ao final do mês.

Não posso dizer que vivo em condições desfavoráveis. Afinal, a casa é boa e a zona também, as despesas estão incluídas e há limpeza todas as semanas. Além de que posso contar com a minha senhoria para qualquer problema que a casa tenha. Mas 400 euros são 400 euros.

Sinto que não estou a viver a cidade como devia. A minha preocupação é sempre a mesma: “Não posso gastar, porque tenho a renda para pagar”. Então, abdico de muitos jantares e saídas com amigos.

Não penso sair de Lisboa, mas confesso que com esta renda, se não conseguir manter o nível de vida que quero, terei de ponderar abandonar a cidade e voltar para Guimarães.

Gosto muito de viver cá, adoro as amizades que fiz e os momentos que passei, mas essas não podem ser nem são as minhas prioridades. Sempre gostei de um bom jantar fora, de ir ao cinema, de viajar, de sair à noite, ou seja, de aproveitar a minha juventude e adoraria conseguir fazer isso sem a preocupação de que estou a gastar o dinheiro que é para a renda.

Para mim, conseguir viver de acordo com aquilo que eu quero e que sempre sonhei é necessário. Para já, com a ajuda da minha mãe, consigo sustentar-me em Lisboa, mas tenho plena consciência que sem a ajuda dela seria impossível.

“Enquanto houver apoio financeiro dos pais, Lisboa está nos planos. E quando deixar de estudar?”

por Daniela Oliveira

daniela oliveira

Estava a terminar a licenciatura no Porto, em 2021, quando soube que iria fazer um estágio num jornal em Lisboa. O meu sonho iria concretizar-se: finalmente ia viver para a capital. Estava em março e o estágio no Público começava em maio. A excitação de ver o sonho concretizar-se deu lugar à preocupação de arranjar um lugar onde ficar.

Nos sites de anúncios de imóveis acabei por encontrar um quarto numa cave no Bairro do Rego que aparentava ter algumas condições e ficava perto da faculdade onde viria a tirar o mestrado esse ano. 

A vontade de vir para Lisboa era tanta que não pensei como seria viver numa cave. Em maio, rumei à capital. Como a pandemia ainda se fazia sentir, o estágio acabou por ser, de uma forma geral, à distância. E os problemas começaram.

O meu quarto tinha apenas uma janela que ficava ao nível da rua. Entrava tão pouca luz natural que, a partir das três da tarde, tinha de acender o candeeiro da secretária. Mas o problema não era só a luz, ou a falta dela. De vez em quando, abria a janela, mas evitava fazê-lo por questões de privacidade ou de higiene. Nas vezes que refrescava o quarto, encontrava muitas vezes a janela e a cama com beatas, folhas, penas ou plásticos. 

Para trabalhar com mais luz natural, utilizava a cozinha que tinha uma janela maior. No entanto, fi-lo poucas vezes, pois dividia a cozinha com outra pessoa e não podia, assim, apoderar-me dela. Apesar da cozinha ter janela, abri-a poucas vezes pois dava de caras com o terraço de uma vizinha. Vizinha aliás que eu conhecia bem, embora poucas vezes tivesse falado com ela. Vivia paredes meias com ela e, por serem tão finas, sabia quando falava com os filhos, amigas e até quando estava com gripe, tal eram os espirros que dava.  

A proximidade do Bairro ao aeroporto fazia com que, se eu estivesse a entrevistar alguém por videochamada, tinha de repetir a pergunta ou pedir ao entrevistado que repetisse a resposta, tal era o barulho dos aviões. Se estivesse quase a adormecer, voltava a acordar com a passagem de um avião. E, de manhã, não precisava de despertador. 

Apesar destas condições, fui-me adaptando à casa. Por 300 euros era difícil arranjar outra.

Passado um ano, surgiu a possibilidade de sair. Uma amiga de longa data estava a pensar vir para Lisboa estudar. Era a oportunidade perfeita: sair da cave e viver com uma amiga. No entanto, a vida trocou-lhe as voltas e fê-la ficar no Porto. Como já tinha os alertas de todos os sites de anúncios ativados, continuei à procura de um T2. Se surgisse uma boa oportunidade, procuraria uma pessoa com a qual pudesse dividir a casa. 

A oportunidade surgiu em Benfica e, rapidamente, consegui encontrar uma companheira de casa. Apesar de ter melhores condições, o valor é mais elevado – pagamos 400 euros – e continuo a dividir casa com uma pessoa estranha.

Isto mostra como é difícil começar uma vida independente e autónoma.

Claro que esta mudança não teria sequer sido possível sem o apoio financeiro dos meus pais. Apesar deste grande privilégio (e de ter consciência dele todos os dias, principalmente quando vejo quem não tem abrigo ou o têm em condições desumanas) não deixo de me questionar como serão os próximos tempos.

Viver em Lisboa ainda está nos planos, mas como será quando tiver de ser eu a pagar tudo? Vou poder continuar no quarto onde estou? Por mais quanto tempo terei de dividir habitação com alguém que me é estranho?

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5 Comentários

  1. Este não é um drama exclusivo dos jovens. Tenho 53 anos, dois filhos e por razões pessoais tive de vender a minha casa. Tenho emprego estável e um salário que dá para pagar uma mensalidade ao banco, mas como não tenho um pé de meia para dar de entrada para a compra de uma casa, tenho de me sujeitar a viver numa casa arrendada. Além disso, na minha idade, além desses valores agora exigidos para a entrada de uma casa, a minha idade constitui uma limitação no prazo a contratar, o que aumenta a prestação, com risco da taxa de esforço inviabilizar a concessão de um empréstimo. Era interessante fazerem também uma peça jornalística acerca das pessoas que, como eu, têm empregos estáveis mas rendimentos que, pese embora acima do salário mínimo, ficam sempre de fora das medidas que os governos implementam. Mas há mais situações injustas: por exemplo, o facto de sermos uma família monoparental afastou a possibilidade de arrendar uma casa no âmbito de uma associação privada de utilidade pública. Há um grupo silencioso e que está sempre arredado das médias e das medidas. Não são só os jovens solteiros, como li há dias…Gostava de ler alguma coisa sobre isso.

  2. É uma triste realidade, com preços exorbitantes, não acessíveis a todos.
    Deveria de existir uma regulação de preços imobiliários, para evitar os abusos que ocorrem.

  3. Como alguém que conhece bem a zona, não consigo perceber o que tem de assustador a Rotunda das Portas de Benfica. Tem um bom jardim e boa iluminação e não existem lá problemas. Mais, do lado da Venda-Nova existe uma excelente vida de bairro, cheia de cafés, restaurantes, lojas, Pingo Doce, etc. Em termos de transportes para além da estação de comboio, ainda existe a estação de metro da Amadora-Este. O relato em causa pode gostar mais de um ou outro bairro, são gostos pessoais, mas a narrativa que “é assustador” ou “não existe viva de bairro”, é na minha opinião, sem qualquer fundamento.

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