Por estes dias, Alhandra anda silenciosa. O rio Tejo, presença marcante na pequena vila dos esteiros, está calmo e não há ninguém nele ou a ameaçar mergulhar. Esse silêncio próprio de uma pandemia será interrompido hoje para uma justa homenagem ao homem que mais agitou aquelas águas, nelas mergulhou e nadou, antes de se lançar aos rios e mares fora para levar o desporto português, pela primeira vez, às bocas do mundo.
Joaquim Baptista Pereira, o primeiro português a atravessar o Canal da Mancha, faria 100 anos neste mês de março, nascido um dia após a fundação do PCP, de que faria parte, e que viria a ajudar a impulsionar. Por isso, hoje, em Alhandra, este atleta é homenageado por Jerónimo de Sousa.
Ficaremos sem saber se Baptista Pereira seria homem para desafiar as regras do confinamento só por um mergulho nas águas do Tejo. Fê-lo muitas vezes, quebrando regras. Primeiro para fugir aos pais quando lhe levantavam a mão ou para surripiar maçãs do outro lado da margem. Mais tarde, por competição. Este menino, pobre, nascido em 1921 em Alhandra e que se tornou nadador internacional português de fundo, um herói da sua geração, tinha no trato do rio e dos mares o mesmo à vontade de quem anda para chegar às coisas. E foi isso que o tornou grande. Maior que ele próprio.

“Um homem só morre quando os outros o esquecem.” Sentadas numa sala de uma casa da pequena vila de Alhandra, são as netas do campeão que falam: Paula Rebelo e Natacha Baptista Pereira. Apelam à memória do avô, o homem com o qual foram criadas e que viram partir cedo – Paula tinha 20 e Natacha 12 anos. Aos 57 e 49, lembram a frase dele. Não a dizia em jeito de bravata, que não era assim, asseguram. Dos seus feitos falava muito pouco, aliás. Sem adivinhar que a frase que tantas vezes repetia à mesa perante a família seria, para as netas, aquela que melhor explicaria a memória viva que ainda grava no país, sobretudo nesta vila.
Por viver numa casa à margem do Tejo, Baptista Pereira fez do rio o seu recreio. “Eu creio que sempre soube nadar”, disse em tempos o próprio, numa entrevista ao então diretor do jornal Avante!, José Casanova.
Baptista Pereira era homem-peixe. Filho de pai pescador e sem possibilidades de ir à escola, cedo se habituou à faina, onde foi testando as suas habilidades de natação, quando saltava da bateira. Treinava para as maiores provas que tinha nesse tempo: fugir para os mouchões do Tejo quando os pais se zangavam ou para matar a fome com peças de fruta apanhada nas quintas de Alcochete, na outra banda.
Se há apelido que lhe assenta e é unânime entre conhecidos e familiares é “rebelde”. Baptista Pereira era um puto rebelde. Sinopse de uma vida de dificuldades que ficou até gravada na célebre obra literária “Esteiros”, escrita pelo seu amigo Soeiro Pereira Gomes, o neorrealista que lhe ensinou as primeiras letras e ofereceu fato e sapatos. No livro, “Quim”, como lhe chamavam na vila, era “Gineto”.

“Um dia, quando li o livro, perguntei ao meu avô se tudo aquilo que se contava sobre a vida dele era verdade. Fiquei muito impressionada. Ele disse que sim”, conta a neta Natacha. Falava da miséria das crianças que trabalhavam nos telhais para sobreviver, comandadas por um patrão que obrigava os adolescentes a desenformar tijolos ainda a escaldar-lhes nas mãos já calejadas. Uma infância de pobreza, mas também rodeada de prisão, morte e embriaguez, numa permanente batalha surda entre classes.
Mas tudo o que Natacha e Paula sabem desta infância é o que está nestas páginas. Paula lembra que o avô “sempre desviou o tema”. Ao passado o que é do passado, dizia. E nem o homem que cresceram a ver em fotografias penduradas nas paredes do Alhandra Sporting Clube, de fato de banho, conhecem. “Já não o conhecemos como atleta. Para nós, era só o nosso avô”. Homem de cabelos já grisalhos, músculos desvigorados, rosto engelhado, corpo seco, é certo, e fora do rio.
O homem que ensinou uma vila a nadar
Mas ele era mais que isso. Não imaginem um homem de corpo atlético, como hoje nos habituamos a ver, que Baptista Pereira não o era quando bateu recordes internacionais. Era, antes, homem farto, “que não se importava com o que comia”, como lembra a neta Paula Rebelo.
Já aos 13 anos que os agoirava, os palmarés. A comunidade local que o rodeava começou a gabar-lhes os dotes para a natação e fizeram força para que o talento não morresse ao desperdício e os seus pais autorizassem que se inscrevesse no clube local: o Alhandra Sporting Clube, do qual se tornaria o sócio número 90. As netas lembram que “ainda teve propostas para vários outros clubes de renome, ao longo dos anos”, depois dos palmarés internacionais, “mas nunca quis abandonar o clube da sua terra”.

No topo da pirâmide estava o Sport Algés e Dafundo, com incontestada supremacia na natação, dotado de piscinas a céu aberto e fechado a um lote de nadadores que já somavam vitórias no país. Entre os quais Alberto Azinhais dos Santos. Aos 15 anos, “Gineto” veio mexer com a ordem, ultrapassando os adversários ao serviço do Alhandra Sporting Clube nos recordes nacionais de 200 e 1500 metros.
Alhandra guarda a memória de um homem que todos os dias se banhava nas águas do Tejo que por aqui passam. E muitas vezes o rio galgou as margens de Alhandra, mas foram mais as vezes em que Baptista Pereira galgou para o rio. Na margem, havia sempre público a espreitar o atleta, que nunca teve preparador. Era Baptista Pereira e Baptista Pereira. Um por um. Dentro de água, porque cá fora era um homem do povo e de família, como é recordado. Imagens da RTP mostram-no a largar o corpo das águas, pé ante pé, de sorriso no rosto, treino terminado, para ir beijar um menino, o pequeno Tito, o seu filho rapaz – entre duas outras filhas raparigas, Lucília e Natércia.
Não quis que a ninguém faltasse a sabedoria que dominava de dar braçadas em água, de bruços, crol, costas ou mariposa. As netas, a última geração da família que viveu com ele, dizem que chegou a ensinar várias pessoas da vila a nadar, até já de carreira desportiva findada. “Por gosto, não por profissão.” Fê-lo nas piscinas da vila, mas também no rio.

Era persistente e solidário, até no que dizia respeito ao amor. O maior proveito que tirou destas aulas informais, logo aos 17 anos, foi a mulher e companheira com que viveu até ao fim dos seus dias. Maria Antónia era uma das suas alunas nas piscinas. A família conta a história com gargalhada, a mesma que ficou registada no 24.º número da coleção Ídolos do Desporto. “Corria o ano de 1938”, lê-se. “Ela tinha 15 anos. Certa vez o ‘professor’, que era muito tímido, perguntou-lhe: – Já namora?”
Deste casamento, não muito depois do episódio, nasceram, então, três filhos e, mais tarde, duas netas. Nenhum nadador. “Ele ainda me levava lá para o lodo, mas eu não gostava nada”, confessa Paula. O que não inquietava o campeão português. Afinal, conta a neta mais velha, “ele nunca quis que a família seguisse os passos dele, queria proteger os seus e sabia que esta vida era muito dura”. Por isso, a geração de nadadores Baptista Pereira começou e morreu com o próprio.
12 horas e 35 minutos
Quem diria que o encontro entre “Quim” e um argentino fosse o mote para galgar, agora, para águas internacionais e vencer as provas de natação mais temidas do mundo? Aconteceu já perto dos 30 anos, em 1950, com as habilidades aperfeiçoadas. O Tejo ainda era a casa, mas o campeão da natação António Abertondo, vencedor da Travessia do Canal da Mancha e do Estreito de Gibraltar, lembrou-o que havia mais mundo à sua espera e desafiou-o a trabalhar para provas de fundo.
Dito e feito, não fosse ele um homem de objetivos. Três anos depois, bateu o recorde da travessia do Estreito de Gibraltar. No ponto em que um mar e o oceano namoram nadou este português em cinco horas e quatro minutos. Como se uma prova não chegasse, no real sentido da palavra, para provar, fê-lo novamente no mesmo ano: abriu uma nova marca a nível europeu com as 26 horas que demorou a percorrer 166 quilómetros, tendo fixado aqui o recorde europeu de longa distância e permanência.

Um homem pobre, habituado ao Mar da Palha, nadava nos mares e oceanos que banham outros continentes. Braçada a braçada. E quase fazendo acreditar quem o seguia que Baptista Pereira movia, de facto, marés. Até as mais encapeladas. A curiosidade que o mundo debruçou sobre este atleta foi suficiente para o desafiarem para, em 1954, atravessar o Canal da Mancha. Um desafio temido, devidos às correntes fortes, e que no quente agosto de 1988 ficou marcado pela morte da nadadora paulista Renata Agondi. Treinou sem descanso. Fez Lisboa-Vila Franca de Xira, Barreiro-Alhandra e Peniche-Berlengas. Tudo conseguiu.

Do lado de cá, Alhandra, mais do que o país, aguardava a vitória e evocava poemas e quadras em pequenos desdobráveis. Todos eles esbatiam qualquer possibilidade de derrota. Não só Baptista Pereira ia conseguir pôr o pé no piso rochoso de Folkestone, como o faria antes de todos os outros. Foi a 21 de Agosto de 1954 que ouviu o grito de partida para a prova clássica onde concorriam cerca de 20 concorrentes, vindos de onze nações.
Uma reportagem de uma estação britânica dava conta de alguns momentos da prova: o arranque, onde aparecem os atletas a serem banhados a vaselina ou lanolina, banha animal, para evitar assaduras de águas vivas e ajudar a controlar a temperatura corporal; alguns acompanhados por repórteres de imagem, também eles dentro de água, de tronco nu e câmara de filmar em riste. Homens (na sua maioria) e mulheres (quatro) lutavam ao seu lado. Literalmente. Um dos seus adversários era o egípcio Hassam Hammad e diz-se que tentou desnortear o português correndo para ele e colocando a sua cabeça debaixo de água várias vezes. O resto da história já sabem: Baptista Pereira sagrou-se campeão da prova, ao percorrer o Canal da Mancha em 12 horas e 25 minutos.
“Pereira ainda tem forças para levantar a mão” e cumprimentar quem o recebia depois da vitória, aponta o locutor britânico. E anotava os parabéns para a nadadora inglesa Brenda Fisher. Em 1951, fez um novo recorde feminino de tempo de 12 horas e 42 minutos e repetiu a travessia em 1954, ao lado de Baptista Pereira e foi a primeira mulher da prova deste ano a desembarcar.
O regresso e a glória
Alhandra nunca tinha vivido um dia assim. Na margem do rio, depois da chegada do atleta da terra, centenas de pessoas cobrem um carro – sem deixar espaço para grandes certezas de que realmente se trataria de um que ali estava – onde seguia Baptista Pereira, sorridente, a acenar. Não demorou muito a viagem no topo. Começou a descer, fazendo notar a ânsia para viver este dia abraçado ao povo que o circundava. E o povo não o deixou escapar. Agarraram-lhe as pernas, os braços, o rosto. Baptista Pereira foi o homem mais beijado naquele dia. Entre a multidão, até fado havia: a fadista Hermínia Silva ali estava, a abraçar o mais recente herói do seu país.
Em troca, a população de Alhandra uniu-se para lhe oferecer uma casa, onde viveu até morrer. Conta a família que o empreiteiro fugiu com o dinheiro e foi o próprio que teve de terminar a construção. Além da mulher e dos filhos, levou consigo a mãe e o irmão, os parentes vivos mais próximos. Na porta de entrada da moradia, na rua 21 de Agosto – nome em sua homenagem, data na qual conseguiu vencer La Manche -, continuam gravadas as suas iniciais: “BP”.
O país estava marcado nos jornais e revistas do mundo e o português de Alhandra acabou galardoado com a medalha de Mérito Desportivo Nacional. O Tejo estava a ser mirado por todos. O puto rebelde deu ao seu campo de treino um lugar no mapa como nunca tinha tido.
Depois de Baptista Pereira, mais recentemente, Miguel Arrobas e Nuno Vicente tentaram seguir as pisadas de Baptista Pereira, ao percorrerem o Canal da Mancha. Mas só em 2008, Miguel Arrobas foi o segundo português a fazê-lo com sucesso.
Punho cerrado contra o fascismo
“Estivesse onde estivesse e com quem estivesse, o meu avô era sempre igual: um homem de princípios, que não perdia de vista por nada.” Natacha Baptista Pereira recorda no seu avô um homem firme e, por isso, não há surpresa na hora de recordar histórias como a do dia em que ele desafiou o fascismo com um gesto.
Corria o ano de 1946 e o atleta estava nas ilhas Canárias como elemento de uma equipa portuguesa que ia disputar um título com o país vizinho Espanha. A determinada altura, todos os que participaram preparavam-se para fazer a saudação fascista em frente a um painel gigante com a imagem do ditador espanhol Franco – que em 1936 integrou o golpe de Estado em Espanha e que despoletou a Guerra Civil espanhola. Baptista Pereira não o fez. Em vez disso, desafiou tudo e todos ao levantar o seu punho cerrado, como gesto de resistência.
O episódio valeu-se a expulsão da prática desportiva, proposta e formalizada pelo chefe da delegação portuguesa e inspetor dos desportos Ayala Boto. Durante este interregno, lembram as netas, sem ocupação, o nadador português trabalhou na pesca do bacalhau, a bordo do famoso barco Gil Eanes.
Não duraria muito tempo. Com a sua expulsão, abriu-se uma fenda entre a população e o governo de Salazar tão funda que os servidores do regime foram obrigados a reverter a decisão. O Alhandra Sporting Clube, a Junta de Freguesia de Alhandra e a Associação de Natação de Lisboa tinham demonstrado a sua solidariedade através de exposições às entidades desportivas nacionais e estavam a mover uma arma política contra o governo, que os quis silenciar rapidamente.

Baptista Pereira regressou rapidamente às provas e começou aqui o percurso nas longas distâncias, onde passou a distinguir-se. Deixou o bacalhau pela sucata, da qual era comerciante. As netas lembram uma infância sentadas na sucata do avô, a tentar adivinhar de onde vinha tanta coisa largada ao acaso.
Mas o seu papel principal era o de homem do povo, como ficou conhecido. Foi um sério defensor da consciência de classe e, por isso, dedicou grande parte da sua vida ao PCP, com quem partilha o aniversário – nasceu um dia após a sua fundação. Por isso, este domingo, 14 de março, será homenageado pelo partido numa cerimónia que decorre no Cais 14, em Alhandra, com a presença do secretário-geral Jerónimo de Sousa.
Ainda antes do 25 de Abril de 1974, ajudou na distribuição do Avante! e integrou várias lutas reivindicativas das décadas de 60 e 70. Era informalmente eleito para assumir o cargo autárquico em nome do partido, mas sem o poder ser realmente – o analfabetismo não o tornava apto para tal.

O que não guardou com angústia, queria era ser alguém disponível para a luta em que acreditava e um abrigo para quem precisava. Contam as suas netas que era recorrente verem à mesa, ao almoço e ao jantar, pessoas cuja identidade não conheciam, pessoas clandestinas a quem o nadador premiado dava uma refeição.
Podem dizer que Baptista Pereira morreu em 1984, com 63 anos. Mas Baptista Pereira não morreu para ninguém da vila de Alhandra. Evoca-se o seu nome com a naturalidade com que se fala de alguém vivo, ali, ao seu lado. E numa das faces de uma torre de eletricidade na entrada da vila por rio ali está mesmo ele, postado, de tronco nu e fato de banho onde se ergue a bandeira do seu país. Obra de Vile, nome artístico de Rodrigo Nunes, que em 2019 ali o deixou. Pintado a preto e branco, para lembrar que os tempos são outros.
Veja aqui algum do espólio que a família ainda guarda do atleta:

Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
✉ catarina.reis@amensagem.pt
Excelente artigo! Parabéns!
Um bom trabalho este texto, informa aquilo que os portugueses querem saber sobre o atleta, nadador, homem do povo e comunista.A. br
Excelente artigo, gostei muito de ler esta extraordinária vida
Excelente, gostei muito de ler as aventuras de um grande Homem!
Magnifico artigo. Muito obrigado
OBRIGADO BATISTA. QUIM.o pum..pum como tu carinhosamente,por vezes,me chamasvas.
Obrigada pela partilha desta fantástica história de vida .
Excelente Artigo !
Conheci, e bem, esse Grande Homem (H maiúsculo). Tivemos conversas, ainda era eu um catraio onde iniciei o Doutoramento da Universidade da Vida. Ninguém fala do desgosto dele quando pretendia fazer a Travessia Dupla da Mancha. Tudo corria bem – sempre o dinheiro – tinham mais despesas que o previsto, o Engenheiro da Fábrica Cimento Tejo ausentara-se, julgo que de férias, e regressaram. O meu irmão Ramiro Fernando Vitorino Gaspar acompanhou-o. Fui mobilizado para a Guiné, felizmente regressei e casei-me, vindo morar para Lisboa. Continuámos as conversas. Poucos dias antes de morrer tive uma conversa com o meu Grande Amigo e Herói, num banco, junto à Estátua do Alhandrense Doutor Sousa Martins. A filha mais velha chamou-o para o almoço. Nunca mais vi, esse meu Professor que era analfabeto. Jamais o esquecerei. Fica muito por dizer sobre esse Homem que me disse um dia: – Felizmente que os meus filhos foram meninos.