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Passeia-se pela cidade, telemóvel em punho. Observa as cenas da rua, as pessoas, o trânsito que passa e ouve os sons que conseguem permear o tráfego automóvel. O objetivo? Ser utópico. Imaginar o que aquele sítio poderia ser. Começou a ganhar “uma visão mais clara das coisas” em Hamburgo, cidade onde vive, quando a pandemia e os seus confinamentos lhe deram mais tempo para mudar os hábitos e começar a ler no parque. “Para mim, tornou-se claro que temos de agir. Todos nós”. Reimaginar as ruas das cidades. Foi isso que Jan Kamensky começou a fazer.
Largo da Madalena – arrancar os carros, abrir espaço para as pessoas
Sempre que monta uma animação, Jan fá-lo com um objetivo claro em mente: que a mesma seja “entendida nas Honduras ou em Riga ou na Nova Zelândia”. Em simultâneo, pretende que os seus vídeos tenham “qualidade local e efeito regional”.
Em Lisboa, foram vários os locais considerados durante os três dias que passou a percorrer a cidade a pé. Encontrou “muita beleza histórica e muita cor” e ficou agradado com as cores das ruas e com os jardins da cidade. “Por outro lado”, diz, “há muito barulho”.
”Para a primeira animação realizada por cá, Jan priorizou o caráter “reconhecível” do sítio. “Portugal precisa de uma primeira animação com valor de reconhecimento, em que pessoas do Brasil, de Espanha e da Europa vejam que é Lisboa”. O Largo da Madalena foi o local escolhido e a animação, hoje tornada pública, é a sua sugestão utópica para, também por cá, se começar a ver a rua “de uma forma diferente”.
Fez carros voar, arrancou pilaretes, removeu sinais de trânsito. No seu lugar, uma praça. Os tubos de escape e as buzinas deram lugar ao som de pássaros e, no centro, instalou uma fonte. Vieram cadeiras e sombras de árvores. A versão alternativa do Largo da Madalena hoje tornada pública é um ensaio para aquilo que Lisboa pode vir a ser.
Antes de escolher o Largo da Madalena, entre a geométrica baixa pombalina e o histórico bairro de Alfama, Jan Kamensky percorreu as ruas de Lisboa durante três dias em busca do cenário da sua animação. A praça do Marquês de Pombal chegou a ser uma das hipóteses consideradas, bem como a Rua de São Pedro de Alcântara, onde os peões têm de se encostar quando se cruzam.
Depois de reimaginar a rua em cidades como Viena, Paris, Bruxelas e Nova Iorque, o visualizador de utopias veio fazer o mesmo em Lisboa, a convite do coletivo Lisboa Possível e da associação ambientalista ZERO.


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Ser “jardineiro digital” é plantar árvores nos ecrãs
Encontramo-nos com Jan na Avenida da Liberdade, junto ao Cinema São Jorge, no seu segundo dia de exploração por Lisboa, já no final de julho. O alemão, que trabalhava para o clube de futebol St. Pauli como designer gráfico, é agora um “utópico visual” – é essa a descrição que consta do seu perfil de LinkedIn. Diz-se também “jardineiro digital”. “Um dia também vou querer ser um jardineiro real, mas digo que é melhor ser um jardineiro digital do que não ser jardineiro nenhum”. E Jan planta. Planta árvores no ecrã e pretende plantar uma outra forma de observar e fazer cidade na cabeça de quem assiste aos seus vídeos.

Pega em paisagens urbanas dominadas pelo automóvel e transforma-as em espaços de convívio e fruição através da animação. No início, uma estrada, os carros, o som do trânsito, os fumos no ar e as pessoas relegadas para o espaço que sobra. Depois, aquilo que não pertence começa a voar, literalmente. Pelo ar vão os carros, os postes de trânsito e as emissões poluentes, que se esfumam.
No lugar da estrada, ganham agora espaço praças e aterram árvores. Pergunto-lhe se odeia sinais de trânsito, já que desaparecem sempre das suas animações. A resposta é imediata. “Adoro-os. Não gosto de paisagens em que não haja sinais de trânsito, porque depois não os posso arrancar”, diz.
Em plena Avenida da Liberdade, a chegar aos Restauradores e enquanto caminhamos, deixa a observação: “É uma loucura. Quando olhamos para esta rua, quanto metal e plástico, quanta infraestrutura está dedicada apenas aos automóveis. Quando a colocamos toda de fora, [vemos] a quantidade de espaço que ganhamos”. E quando a mostra, nas suas animações, “a quantidade torna-se mais visível”.
Utopias visuais para repensar a cidade
A inspiração veio das ruas vazias durante os períodos de confinamento. “Havia tanto espaço, era como uma folha em branco, uma tela”. Decidiu fotografar a rua e dar-lhe a sua visão: fechava os olhos e tentava “imaginar um mundo onde gostaria de estar e onde gostaria de ter o [seu] primeiro encontro”.
No início, era simples, conta. “Apenas uma fotografia, o antes e o depois. Nada de novo, nada de animações”. E, depois, começou a evoluir. Usou os seus conhecimentos de edição de imagem e de animação para começar a “contar uma história” – a da cidade que é e a da cidade que pode vir a ser.
Constrói as suas visões “de uma forma muito ingénua ou radical”, admite-o. Espaços que outrora eram dominados pelo automóvel e o asfalto passam por um profundo processo de transformação no seu computador e agora pertencem exclusivamente ao usufruto de quem se desloca a pé, de bicicleta ou de transporte público.

Com as visões construídas no ecrã pretende “convidar a viajar para a utopia”, para “um enorme contraste relativamente ao mundo real”. Jan sabe bem o efeito que pretende gerar no imaginário de cada pessoa que assiste aos seus vídeos.
“Quero causar disrupção nos hábitos de observação. Quando vemos o mundo de uma maneira diferente, vamos pensar de forma diferente e agir de forma diferente”, diz. “Depois, vêm os arquitetos e os engenheiros. Eu venho antes deles – é um trabalho mais mental”.
A nenhuma das suas animações faltam o verde, a água e os elementos capazes de promover a interação social, como os bancos de jardim. “Quando colocamos um banco, isso representa interação, as pessoas falam umas com as outras”, diz.
Quando fez a sua primeira animação, em Hamburgo, fê-la para si mesmo. “Percebi que surtia um bom efeito em mim, fiquei surpreendido pelo quão simples é, porque precisas de coisas básicas”. Coisas que muitas vezes as ruas da cidade não oferecem. Quando coloca uma árvore, reage com um “‘uau, tão bom’”.
Antes, as animações faziam-se sem som, por, conta Jan, “preguiça”. Hoje, também o som é característica distintiva do trabalho dele. “É o mais divertido” e “é algo que vem da imaginação, porque não é assim tão fácil pensar como é que uma paisagem soaria”. O som das buzinas e dos motores pode dar lugar ao riso das crianças e às conversas de vizinhos.
Mais de dois anos após ter começado, as suas animações passaram de experiência a ocupação principal. Os primeiros vídeos geraram algum impacto, “mas não alcançaram muita gente”. Foi após uma partilha por parte de um professor universitário holandês que as suas animações ganharam mais atenção.
Hoje, Jan Kamensky reimagina espaços a partir do seu computador, tudo enquanto viaja de comboio, de cidade em cidade. Foi assim, de comboio, que chegou a Lisboa, vindo de Espanha.
Nos últimos meses, as oportunidades para construir as suas utopias visuais têm-se multiplicado: de Tóquio a Roterdão, à vizinha cidade espanhola de Múrcia e ao distrito de Huye, no Ruanda, onde existe a intenção de tornar a sua visão realidade. “Mesmo em partes do mundo com as quais não tens um contacto direto, há pessoas com os mesmos ideais. Querem mesmo torná-la realidade. Deu-me uma esperança renovada”, conta.

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Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
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