Lisboa é a segunda pior capital da Europa em matéria de ruído do tráfego aéreo, a seguir ao Luxemburgo. Como é que chegámos aqui?
Temos uma cidade com duas grandes fontes de ruído a afetar muita gente. O tráfego rodoviário, porque temos uma cidade com muito trânsito a qualquer hora do dia e da noite e mesmo a zona mais central ainda é percorrida por muitas vias e por muitos automóveis. E o aeroporto no centro da cidade – e esse é um contributo muito grande e forte, comparativamente com outras capitais. E faz toda a diferença, porque a rota de aproximação atravessa praticamente toda a cidade.
Quando olhamos para o mapa de ruído e contabilizamos o número de pessoas afectadas por ruído acima de 55 decibéis, consideráveis, acabamos por chegar à conclusão que em Lisboa tem, realmente, um impacto muito grande. As pessoas já internalizaram no seu dia-a-dia, no seu quotidiano, o ruído, e acabam por não se aperceber dos malefícios para a saúde que estes níveis acabam por causar.
E porquê o limite de 55 decibéis?
Temos dois parâmetros na legislação, quer europeia quer nacional. Há um indicador integrado das 24 horas, que é o chamado Lden, que é o indicador que integra o período do dia, das sete da manhã até às oito da noite, o período do entardecer, das oito da noite às onze da noite, e depois, ainda, o período da noite, que é das 11 da noite às sete da manhã. E há uma média ponderada destes três períodos, que é aquilo que nós chamamos o Lden.
Classificamos como zona sensível, uma zona com hospitais, escolas, universidades, zonas de lazer como o Campo Grande, Monsanto, ou zonas residenciais apenas com pequeno comércio. Nessas o limite para a média ponderada das 24 horas é 55 [decibéis] e, durante a noite, 45. Nas zonas mistas, é 65 e, durante a noite, 55. A Organização Mundial de Saúde defende que não deveria ir para além dos 55 e, durante a noite, não deveria sequer ultrapassar os 40 decibéis, mesmo em zonas influenciadas por aeroportos.
“Lisboa não classificou nenhuma zona como sensível. Todo o concelho de Lisboa foi classificado como zona mista.”
O que acontece é que Lisboa não classificou nenhuma zona como sensível. Todo o concelho de Lisboa foi classificado como zona mista. Isso é uma grande discordância nossa: devemos classificar em função do território que tenho e não em função dos níveis que preciso de cumprir. Na prática, por exemplo, no Campo Grande, medimos 75 decibéis para o indicador das 24 horas e 65 decibéis para o indicador noturno. Antes da pandemia. Para se ter uma ideia, 10 decibéis correspondem a uma perceção do dobro do ruído. Em termos físicos, até corresponde a quase quatro vezes mais o valor da pressão sonora que está em jogo. Porque a escala de decibel é uma escala logarítmica e, portanto, 10 decibéis correspondem a multiplicar várias vezes o ruído que tenho.

O que é que uma cidade como Lisboa pode fazer para diminuir a poluição sonora?
Esta é a poluição que recebe menos atenção da parte das autoridades. Quando vemos medidas a serem tomadas em termos de monitorização, em termos de ações junto das principais fontes, o ruído fica sempre para trás, porque é muito mais difícil. As medidas passam muito pela redução do tráfego automóvel, redução da velocidade do tráfego, muito pela retirada do tráfego de algumas zonas. Nalgumas será reduzir a intensidade, noutras será mesmo retirar.
“[O aeroporto no centro da cidade] é, pura e simplesmente, incompatível com o respeito pela legislação.“
E pensar, a médio, longo, prazo aquilo que deve ser, por exemplo, ter uma infraestrutura como o aeroporto no centro de uma cidade. É, pura e simplesmente, incompatível com o respeito pela legislação. Quando falamos em saúde, há realmente aqui uma pirâmide. Uma pirâmide que começa, primeiro, pelo incómodo, depois pelo stress, depois por alterações hormonais, por casos a mais de diabetes, de tensão arterial elevada, até que, no limite, chego à morte prematura. Em Portugal, estima-se que haja dois milhões de pessoas com perturbações do sono causadas pelo ruído. Isto corresponde a 20% da população portuguesa.
As cidades estão a fazer muito pouco, porquê? Porque consideram indispensável para a economia este barulho constante da movimentação, dos automóveis, de tudo o resto. Claro que vamos tendo pequenas melhorias: mais ciclovias, mais automóveis elétricos, algumas zonas com espaço dos carros limitado. Lisboa, por exemplo, tem tomado algumas iniciativas nessa linha. Mas são muito pequenas em relação àquilo que é preciso.
Com a Zona de Emissões Reduzidas (ZER) anunciada para a Baixa de Lisboa, a poluição atmosférica, que causa a morte prematura a mais de 400 mil pessoas por ano na Europa, diminuiria. E a poluição sonora?
A chamada ZER ABC, ou Zona de Emissões Reduzidas da Avenida Baixa Chiado, para nós é um elemento fundamental de uma cidade que se quer capital verde europeia. Com a pandemia as pessoas ainda perceberam melhor como é importante a saúde e como é crucial garantirmos que o nosso organismo está a funcionar bem, que as suas defesas estão preparadas para aquilo que é a ameaça do vírus ou outras doenças que nos possam afetar. E, quer em termos de alguns poluentes do ar que registam concentrações elevadas em Lisboa, quer o próprio ruído, retiram-nos essas defesas.
“Quem trabalha ou vive nessas áreas percebeu que, apesar das desvantagens da pandemia, consegue ouvir os pássaros. O silêncio é fundamental para um descanso e para uma melhor qualidade de vida.”
Ou diretamente, do ponto de vista químico, porque há poluentes como o dióxido de azoto, que interfere com o nosso sistema imunitário, quer porque o ruído, por exemplo, interfere no nosso nível de stress, no nosso nível de um conjunto de parâmetros fisiológicos que nos fragilizam. Quando o presidente da Câmara já disse que não queria avançar com medidas até ao final da legislatura, esse, para nós, é um enorme erro. Quem trabalha ou vive nessas áreas percebeu que agora, apesar das inúmeras desvantagens da pandemia, consegue ouvir os pássaros, que o silêncio era fundamental para um descanso e para uma melhor qualidade de vida.
Estamos a aprender?
Aquilo que poderíamos imaginar acabámos por conseguir concretizar. Muitas vezes, apenas conseguimos simular o que se poderá passar e aqui tivemos um exemplo prático em que os aviões praticamente deixaram de passar e de afetar a nossa capacidade de comunicação e o nosso descanso. Ao mesmo tempo, não tenhamos dúvidas de que a nossa saúde melhorou. Com o ruído normal, podemos não acordar, mas o nosso sono é perturbado e, portanto, há aqui um valor económico enorme da saúde para o qual nunca fazemos contas. Fazemos contas do que entra no bolso das pessoas ou não, mas não do que sai dos bolsos do Estado para pagar nos hospitais todos os problemas.
A Câmara de Lisboa anunciou, para 2021, uma rede de sensores para monitorizar o ruído. Qual a importância de uma rede destas?
É um projecto indispensável, porque os sensores não nos permitem o rigor do sonómetro, mas permitem-nos ter uma ideia muito próxima da realidade acústica em vários pontos da cidade. A própria Zero, através de um projecto que é o mobilizAR, explica como é que com um telemóvel conseguimos fazer uma medição e, depois, avaliar essa medição.
Em 2019, a Zero acampou no jardim do Campo Grande para medir o ruído provocado pelo tráfego aéreo e para registar os movimentos noturnos, entre a meia noite e as seis da manhã. Os movimentos máximos ao abrigo do regime de exceção, que permite a aterragem neste período por motivos de força maior, foi violado. O regime permite um máximo de 91 movimentos semanais e 26 diários e foi criado em 2004, por ocasião do Europeu de futebol realizado em Portugal. Mas continua em vigor.
Mesmo com a pandemia continuamos a ter aterragens e descolagens num período essencial, que é da meia noite às seis da manhã. Em nosso entender, esse período deveria, pura e simplesmente, ser abolido. Tem que ser verdadeiramente respeitado o período das 11 da noite às sete da manhã – é aí que eu não devo ultrapassar os 55 decibéis. Isto só mostra como o nosso processo de decisão é lento, lento, lento. Na Assembleia da República, há meses que esta proposta tem vindo a ser discutida, por iniciativa de vários partidos. O governo também vai fazer uma comissão, mas continuamos sem qualquer decisão.
Ao abrigo do contrato de concessão assinado com o grupo francês Vinci, o aeroporto deverá ficar onde está até 2062. São mais 42 anos. Os lisboetas aguentam isto?
Para nós, o aeroporto de Lisboa tem de ser alvo de uma enorme discussão. Percebemos que não se pode fechar o aeroporto amanhã, mas devemos pensar, em termos de médio prazo, o que é que devo fazer a este aeroporto. Não é compatível continuar aqui. E tínhamos de tomar medidas imediatas, impedindo o tráfego noturno. Na discussão do Montijo, sempre pusemos essa questão. E estamos a aguardar uma reunião com o ministro das infraestruturas, para perceber o que é que vai, ou não, ser feito. Há iniciativas parlamentares para uma avaliação ambiental estratégica e é esse o nosso desejo. Este aeroporto está junto ao hospital psiquiátrico mais importante do país. É a total incoerência entre a localização de infraestruturas.
“É preciso restringir mais o tráfego automóvel. Impedir as descolagens e aterragens entre a meia noite e as seis da manhã. E avançarem as medidas da Zona de Emissões Reduzidas da Avenida-Baixa-Chiado.”
Em vez de falarmos em Montijo, devíamos estar a falar num outro aeroporto que retirasse o atual do centro da cidade?
Pelo menos essa discussão tinha que ser feita. Até podemos chegar à conclusão de que não temos dinheiro, que o número de pessoas afetado aqui ou no outro local não faz diferença. Que, pesando os vários aspectos, aqui é mesmo o melhor, mas temos é que fazer essa discussão e tomar essa decisão, e o governo nunca o quis fazer. Sabia obviamente que estamos a falar de algo que, à partida é incompatível – respeitar a legislação do ruído num aeroporto no meio da cidade.
A ANA anunciou, em 2020, que ia insonorizar habitações nas zonas de Lisboa mais expostas ao ruído do tráfego aéreo. Só em Lisboa, residem cerca de 57 mil pessoas na rota de aterragem do aeroporto. Esta medida faz sentido ou é um paliativo?
O isolamento das habitações claro que reduz o incómodo, mas tenho que respeitar a legislação e a legislação é garantir determinado nível sonoro fora das habitações, no chamado ruído ambiente. Estamos para ver como é que vai ser concretizado. Ainda estamos à espera que seja publicado o chamado plano de ação do aeroporto. A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) foi demasiado simpática com uma situação ilegal, está a conceder como que uma viabilização que, do ponto de vista da legislação, em nosso entender, não é compatível, a não ser que isso seja assumido como uma situação verdadeiramente temporária.
Aprendemos com a pandemia?
Infelizmente, temos fortes dúvidas. Mesmo olhando para a qualidade do ar, já nos estamos a aproximar muito dos valores pré pandemia e, no ruído, isso só não aconteceu porque os aviões têm um peso muito grande e o tráfego aéreo ainda está muito abaixo daquilo que havia no período anterior. Muitas pessoas agora vêm de carro, em vez de usarem o transporte público, mesmo estando em teletrabalho. Aquilo que poderia ser uma oportunidade, estamos a ver, infelizmente, que é uma oportunidade, mas perdida.
O que é que podia ser feito já, o que é que uma cidade como Lisboa pode fazer agora?
Claramente, restringir mais o tráfego automóvel. Claramente, impedir as descolagens e aterragens entre a meia noite e as seis da manhã, preferencialmente com fortes limitações entre as 11 da noite e as sete da manhã e avançarem as medidas da Zona de Emissões Reduzidas da Avenida-Baixa-Chiado. Se calhar, não avançar tudo, o pacote todo, mas algumas delas, de forma faseada.
Se conhece, conte-nos as histórias e os casos de pessoas que foram afetadas pelo ruído da cidade. Este é um dos temas a que vamos dar atenção:

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
✉ frederico.raposo@amensagem.pt
Boa tarde!
Como e bom ter notícias da terrinha.
Agradeço a minha amiga Ana Melicias pelo
envio.
Aqui de Sao Paulo possomatar saudades de Lisboa.
Abraços
Lecy Cabral
Em breve vamos ter novidades desse lado do Atlântico! Obrigada e siga nos seguindo!!!