Como acontece com boa parte dos jovens da sua idade, Tomás vai frequentemente beber uns copos, à noite. Normalmente regressa a casa de autocarro. Parte do Cais do Sodré, de onde, de resto, iniciam viagem todas as seis carreiras da Rede Madrugada da Carris, até chegar à zona do Arco do Cego, onde vive. Normalmente, apanha o 207. Serve-lhe, até porque vive no centro da cidade, mas sabe que a rede não serve todas as pessoas tão bem quanto a ele.
É um sistema de transportes “muito desconectado e incompleto face às necessidades de uma cidade como Lisboa”. As carreiras noturnas, que funcionam entre a meia noite e meia e as 5h35 da manhã, partem todas do Cais do Sodré, o que “é algo bastante inteligente”, diz, mas as diferentes linhas “não estão devidamente incorporadas entre si e não existem carreiras na horizontal” – ou seja, carreiras que cruzem a cidade de este para oeste.


E há apenas seis carreiras, numa cidade em que elétricos, metropolitano e comboios deixam de servir a população ao início da madrugada. Os autocarros saem de hora a hora.
O especialista informal dos transportes
Com 18 anos e a estudar Relações Internacionais, Tomás não tem nem a idade nem o currículo óbvios para estudar e propor melhorias ao sistema de transportes públicos da cidade, mas tem um conjunto de interesses e um gosto, adquirido com o pai, que lhe dá uma espécie de autoridade informal na matéria.

Aprendeu a mexer com software de ilustração e, há pouco tempo, começou a verter as suas visões para o futuro dos metropolitanos de Porto e de Lisboa para diagramas.
O pai de Tomás, entusiasta da ferrovia e colecionador de ferromodelismo, contribuiu para o despertar do interesse do filho pelos sistemas de transporte.
Da Lousã, de onde partiu para estudar em Lisboa, traz a saudade, partilhada pelo pai, do ramal da Lousã, a linha de 35 quilómetros que até 2010 ligava com serviço de comboios Serpins à estação central de Coimbra e que agora está a ser substituída por um sistema de transporte público que prescinde dos carris em função da rodovia.
Na passada segunda-feira, publicou, no seu perfil do Twitter, uma proposta para a melhoria da Rede Madrugada da Carris, com 10 carreiras no total e acrescentando quatro novas. Fê-lo naquela rede social, por ser ali que conta já com “uma pequena comunidade” que partilha do seu interesse pelas redes de transportes.

Na sua proposta, critica a inexistência de carreiras que cruzem o percurso de outras, permitindo transbordos para outros destinos. Com a sua proposta de rede, o estudante e utilizador de transportes públicos sugere a criação de “vários tipos de anéis que complementem e permitam que uma pessoa que saia do aeroporto e que queira ir a Benfica não tenha de ir ao Cais do Sodré trocar de autocarro durante a madrugada”, sujeitando-se a tempos de espera que “chegam a ser de uma hora”.
Partidas de meia em meia hora
Na rede que imagina, Tomás baseou-se em percursos de carreiras que circulam durante o dia e propõe paragem nos “principais” pontos de passagem da cidade, “sempre na ótica de ter carreiras verticais e horizontais, abrangendo o máximo de pólos populacionais”.
Começou por desenhar um mapa com as seis carreiras já existentes – o 201, 202, 206, 207, 208 e o 210 – e começou a criar, a partir de falhas na cobertura e da sua sensibilidade para as necessidades de uma cidade que, apesar da sua ainda curta estadia, demonstra conhecer com algum cuidado.
Uma das carreiras “mais interessantes” na sua proposta é coincidente, em parte, com o percurso efetuado durante o dia pelo 750, entre a estação de Algés e a Estação do Oriente. De noite, este percurso, ao qual retira algumas paragens, “permitiria uma interseção entre as diferentes linhas, para abranger novas áreas da cidade” e permitindo o transbordo entre outras linhas da noite.
Carlos Gaivoto, engenheiro e trabalhador na Carris há mais de quatro décadas, olhou para a rede proposta por Tomás com interesse e valida algumas das ideias do estudante, como a que sugere a criação de uma carreira com as características do 750. “À noite, se calhar está a fazer falta”, diz. “Valeria a pena ter mais três linhas: duas periféricas e uma diametral, que cruzasse todas as outras radiais”.

Esta alteração, considera, permitiria alterar a atual configuração da Rede Madrugada, para que se tornasse “radiocêntrica, em vez de ser só radial”. O engenheiro, que chegou a chefiar o planeamento da ex Autoridade Metropolitana de Transportes de Lisboa (AMTL), considera, ainda assim, necessárias alterações que permitam chegar à “coroa periférica da cidade”, ao invés de apostar-se, apenas, na densificação da rede “à volta do núcleo histórico”.
Para além de propor a criação de uma carreira com as características do 750, Tomás sugere a criação de um outro anel interno na cidade, passando por zonas como São Sebastião, Estrela, Avenida Infante Santo, Olaias e Penha de França, antes de terminar no Cais do Sodré. “Seria mais uma linha para permitir a articulação entre as diferentes carreiras e os diferentes destinos das pessoas que usariam as diferentes linhas”, explica.
O estudante considera que o aumento da frequência de cada uma das 10 novas carreiras deveria prever, “no mínimo”, partidas de meia em meia hora, numa fase inicial, “para avaliar a adesão das pessoas” e garantindo que os horários praticados permitem “mais conexão entre as diferentes carreiras, que é o que não existe atualmente”, considera.

Entre as seis carreiras hoje a operar, a única que Tomás não sujeitou a qualquer alteração é a 201, entre o Cais do Sodré e Linda-a-Velha, por considerar que “está perfeita e passa nos pontos essenciais”.
Carris está a estudar “reformulação”
Em 2020, quando a Zona de Emissões Reduzidas para as zonas da Avenida, Baixa e Chiado foi anunciada pelo então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, foi igualmente anunciada a intenção de duplicar a frequência da Rede Madrugada da Carris, sem que tenha, até ao momento, sido concretizada. Desde que a Carris foi municipalizada, no início de 2017, que o planeamento e a gestão da rede é da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa.
À Mensagem, António Martins Marques, diretor de operações da Carris, garante que a empresa “reiniciou” este ano os estudos com vista a uma “eventual reformulação da rede da madrugada”. A retoma dos trabalhos de estudo por parte da empresa de transportes de Lisboa, iniciados em 2019 e suspensos com o início da pandemia, deverá agora incluir “novas medidas no plano de oferta da empresa para os próximos quatro anos, de 2023 a 2026”.
Apesar de os estudos se encontrarem apenas “no início”, o responsável esclarece ter já sido “identificada uma necessidade de reposição de uma carreira circular interior, com um percurso próximo da antiga 203”, que ligava o ISEL, em Chelas, à Boa Hora, em Alcântara, passando pela Praça do Chile, São Sebastião e Campolide. Esta carreira foi eliminada da rede da Carris em 2012, por imposição da troika.

Em estudo, está também a possibilidade de aumentar a frequência de passagem das carreiras noturnas, assegurando um intervalo de 30 minutos entre cada partida.
Recorde-se que a frequência das carreiras da Rede Madrugada já foi superior, com saídas a cada 30 minutos. Em 2008, o horário de funcionamento do Ascensor da Glória havia sido prolongado até às 4h30. Este prolongamento foi, desde então, revertido, com a última partida diária no histórico ascensor, em funcionamento desde 1885, a acontecer agora cinco horas antes, às 23h55.
Também as duas carreiras Night Bus, criadas em 2008, que ligavam o Marquês de Pombal à estação de Belém e o Cais do Sodré à estação Alcântara-Mar nas noites de fim de semana e vésperas de feriado, deixaram de circular. Em 2011, era igualmente suprimida a carreira noturna 204, criada em 2008 e que efetuava a ligação entre a Estação do Oriente e Belém.

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
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