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Erguem-se edifícios novos à velocidade das marés no rio Tejo. Lisboa parece mudar todos os dias um pouco mais. Ao mesmo tempo, abre-se caminho para discutir o espaço público – menos ou mais estradas, mais ou menos passeios, como dar espaço às crianças para voltarem a brincar na rua. E, afinal, como se melhora a vida daqueles que vivem nos bairros sociais?
As cidades são das pessoas, embora cada vez mais interpretadas em números por quem as constrói. Há um conceito de arquitetura que quer contrariar a tendência e pôr as pessoas no centro. Chama-se arquitetura humanitária e Afonso Nuno Martins faz parte dessa vontade.
Cresceu na Guarda e formou-se em Lisboa, pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL). Em entrevista à Mensagem, fala de como as nossas cidades devem ter mais humanidade na hora de erguer edifícios e espaços públicos – ouvir mais, para construir melhor. E de como este é o único caminho possível para ter cidades saudáveis e sustentáveis.

Afinal, “a arquitetura salva vidas”, como já comprovou na favela Rocinha, no Brasil, onde a abertura de uma rua reduziu para zero o número de mortes anuais por tuberculose.
E ajuda a melhorar outras. Este arquiteto é adepto do conceito de “incremental house“, habitações construídas para permitir que as famílias mais pobres possam ver na casa a esperança de, um dia, ter uma vida melhor. Um conceito que começou a aplicar jovem, ao lado de Álvaro Siza Vieira, na cidade onde nasceu, a Guarda, num projeto de habitação cooperativa. Afonso Nuno confessa que foi este mestre arquiteto que o fez seguir o lado mais social da arte de desenhar edifícios, bairros, cidades.
A experiência de cerca de 30 anos de profissão fá-lo dizer com certezas que, por norma, são aqueles que vivem economicamente vulneráveis os que estão também mais vulneráveis à consequência dos desastres naturais. Uma área à qual Afonso Nuno se tem dedicado com afinco, habituado a correr cenários de destruição em massa provocada por eventos naturais, como tsunamis.
Hoje docente e investigador na Universidade da Beira Interior, dedica as férias e tempos livres como voluntário e gestor de projetos na ONG Building4Humanity, com projetos em Portugal, Brasil e África.
Parar é mesmo morrer, na visão deste arquiteto que sente sempre estar em falta com um qualquer lugar do mundo. Agora, é a Ucrânia. A propósito dos movimentos migratórios gerados pela guerra, a ONG de que faz parte está a fundar uma iniciativa de integração para os refugiados ucranianos, onde cooperam universidades, municípios, “desde a Ucrânia até cá”.
Juntos, irão integrar uma “rede que há de trabalhar em contexto de campus universitário”, “um acolhimento que permite a estudantes de arquitetura, engenharia e outras áreas fazer projetos de habitação e integração para apoio aos refugiados”. “Isto é o que chamamos de arquitetura humanitária”, remata.
É por aqui que começamos a nossa conversa.
A arquitetura humanitária é sempre precedida por um desastre, como uma guerra, ou existe sem ele também?
A arquitetura é uma coisa só, não há duas arquiteturas – uma humanitária e outra que não é. Quando falamos em arquitetura humanitária, é para reforçar que é uma arquitetura desenvolvida por arquitetos em situações de crise, de grande crise. Pode ser um evento climático, pode ser uma guerra, mas também pode ser outra coisa como a pobreza, a miséria, a pobreza endémica.
Quando se atua em alguns cenários de África ou da América do Sul, por exemplo, em que existe pobreza extrema, em que a falta de recursos é muito grande e onde há muitas lacunas em termos de serviços, acabamos por estar num cenário muito parecido àquele que resulta de eventos climáticos e das guerras. A miséria e a fome são desastres permanentes.

Daqui a necessidade de haver uma arquitetura que se centre nestes aspetos e não tanto noutros – se eu quiser mandar fazer uma casa na linha de Cascais, não vou ter estas preocupações.
Não se trata de vender apartamentos confortáveis, mobilados, com grandes varandas, mas sim para perceber se uma senhora idosa precisa de uma varanda, para que ela possa sair de casa e apanhar um pouco de sol. Ou se uma habitação que tem quatro, cinco ou seis pessoas precisa de abrir mais uma janela, para criar uma ventilação que permita purificar o ar.
E quando é que percebeu que o que faz tinha de estar ao serviço de comunidades mais fragilizadas?
Eu diria que tudo começou logo quando me formei. Cresci numa cidade do interior, a Guarda, e quando me formei percebi que muitos colegas de lá tinham muita dificuldade em aceder a habitação. Hoje, é relativamente mais acessível do que em 1990. Na altura, crescia em Portugal um movimento cooperativo ligado à habitação, que estava em grande expansão e era o que permitia que os jovens acedessem à habitação, com juros bonificados e apoios municipais como cedências de terreno ou venda de terrenos a preços mais acessíveis.
Nessa altura, um conjunto de jovens recém-licenciados, como eu, decidimos fundar uma cooperativa de habitação, à qual chamámos Casa Jovem, na Guarda. Tinha como propósito criar uma oferta de habitação de qualidade para jovens, mas sempre com o pensamento de ser algo diferenciado do que, na altura, era a habitação social. Esta habitação foi massificada após o 25 de Abril, com a chegada dos retornados e num período em que o país ainda não tinha uma legislação vigente válida. Não foram bairros bem desenhados…
Com exceções à regra?
Havia bairros sociais como o bairro dos Olivais, em Lisboa, que já tinham uma qualidade diferente, uma dimensão de espaço público distinta. O que faltou, no geral, foi vontade política e agentes económicos sujeitos a alguma regulação. Com este período de desregulação imperava o vale tudo. Só no início dos anos 1980/90 é que Portugal começa a ter os Planos Diretores Municipais, a partir dos quais começam as urbanizações com áreas verdes, com espaços coletivos, transportes.
E foi assim que o bairro da Guarda foi pensado…
O nosso bairro na Guarda foi pensado num sítio em que com pouco conseguíssemos fazer muito. Decidimos chamar um arquiteto com muita experiência em habitação social, Álvaro Siza Vieira, e daí nasceu todo este meu interesse em trazer a área social para a arquitetura e para a habitação. Ele tinha acabado de vir de um projeto social de habitação evolutiva em Évora, na Malagueira, e outros em Roterdão e Berlim. Ele e este projeto mostraram-me que a arquitetura pode ser muito mais do que dar casas a pessoas, que podemos intervir socialmente, ouvir as pessoas para sabermos do que precisam.
E como é que se faz este processo participativo?
A forma mais prática é através de passeios, jantaradas… Vamos pedindo pistas às pessoas. Numa altura e num meio em que as mulheres estavam mais em casa, perguntámos como é que elas idealizavam a casa onde passavam tanto tempo, como a utilizavam e como gostavam que fosse a relação entre a cozinha e a sala, por exemplo. O que pensam os jovens? Perceber as formas de vida das pessoas. Pensar como podem evoluir as suas casas, ao mesmo tempo que a vida delas evolui…

Isso também é um conceito na arquitetura. O incremental house, de que o Nuno tanto fala, é uma forma de dar habitação mais digna a estas pessoas…
É o conceito que mais premeia a arquitetura humanitária, no meu ponto de vista. No fundo, quer dizer que damos condições para as pessoas poderem estender as suas casas. O Siza Vieira já o tinha feito ao criar casas de um piso, mas que podiam crescer para cima e para dentro dos pátios. Voltou a utilizá-lo na Guarda, no projeto cooperativo.
Porque é que isso é tão importante?
Porque estamos a falar de habitação para pessoas com rendas mais baixas, muitas vezes pessoas em situação de grande pobreza. E devem ter o direito a uma casa que reflita as suas possibilidades, sem ter de mudar de morada. Aquilo que, em inglês, chamamos ‘pay as you go‘, pagar de acordo com as possibilidades: no início, têm acesso a uma pequena habitação, mas podem fazer crescer o núcleo de acordo com os recursos que têm, porque a vida vai melhorando e melhoram as condições de habitabilidade.
Em Lisboa, isso existe?
Existe em bairros como São João de Brito [Alvalade]. As casas não começaram a ser feitas naquela dimensão que ganharam. E se olharmos para a Cova da Moura percebemos que aconteceu o mesmo, sem mão de um arquiteto – começou-se por criar barracas de pequena dimensão e agora temos casas de dois ou três andares. A família cresce, entram mais ordenados em casa e a casa cresce também.
O Nuno já correu o mundo a aplicar estes conceitos de arquitetura humanitária, muito a reboque da organização da qual faz parte [Building4Humanity]. O que traz um arquiteto consigo quando está nesta relação tão direta com as pessoas para quem está a trabalhar?
Tudo o que fazemos na organização é trabalho voluntário. A maioria de nós concilia trabalhos de investigação com ações humanitárias. Mas não estamos preocupados em fazer obras, estamos preocupados em compreender e promover processos de melhoramento de casas. E redução do risco de desastres. Por isso, um dos maiores contributos que temos dado é ir visitar outras ONG’s locais que fazem este trabalho com algum êxito e daqui ver a importância da introdução de alguns melhoramentos.
Há um exemplo claro: na favela Rocinha (Rio de Janeiro, Brasil), havia uma rua, a Rua 4, com cerca de dois quilómetros de comprimento, que na verdade não era uma rua. Transformou-se num beco, porque as casas se aproximaram tanto, que tinha 45 centímetros de largura. Isto criava um ambiente de falta de qualidade do ar e outra série de problemas sanitários. Houve, na altura do presidente Lula, com uma reforma do parque habitacional do Brasil, capacidade económica e vontade de ir a esta favela, uma das maiores do mundo, para alargar a Rua 4. E um conjunto de demolições fez com que esses 45 centímetros passassem para 5 metros de largura.
“O dado mais impressionante deste processo é que, segundo os estudos que eu e uma colega minha usámos na altura, morriam nessa rua mais 50 pessoas de tuberculose, por ano. Depois da intervenção, passaram a morrer de tuberculose zero pessoas.”
O que aconteceu àquelas casas?
Muitas delas foram demolidas. É um processo complexo, porque umas ficam, outras não. Mas toda a gente que saiu fez parte de um processo participativo – foi até criado um laboratório para isto -, e cada caso foi resolvido de maneira a que toda a gente ficasse satisfeita com o que se estava a fazer.
Houve pessoas que ficaram com casas novas na favela, outras que receberam cheques para comprar casas fora dali. Nesse laboratório, estavam os arquitetos da empresa construtora, membros do município, governo federal e a comunidade. Isto é a arquitetura humanitária a funcionar. Discutir com as pessoas as melhores soluções e encontrar condições dignas de habitabilidade.
O dado mais impressionante deste processo é que, segundo os estudos que eu e uma colega minha usámos na altura, morriam nessa rua mais 50 pessoas de tuberculose, por ano. Depois da intervenção, passaram a morrer de tuberculose zero pessoas.
A arquitetura salva vidas…
A arquitetura salva vidas e poupa dinheiro. Porque essas pessoas que morriam e adoeciam passavam por hospitais, tinham de ser tratadas, levando milhões ao Estado. Por isso, a arquitetura humanitária também poupa recursos financeiros ao Estado e ao município. Manter as pessoas saudáveis poupa dinheiro.
“Não sei até que ponto as pessoas que vivem nas Avenidas Novas não estão mais vulneráveis [a um sismo] do que aquelas que vivem na Cova da Moura. Por uma questão estrutural mesmo.”
Fala muito do conceito de vulnerabilidade e da relação com as consequências dos desastres naturais. Em todos estes sítios que percorreu, é óbvio para si que são as pessoas mais vulneráveis economicamente as que estão também mais vulneráveis aos desastres naturais?
O desastre é sempre um resultado de um impacto, não é o evento em si. Quando pensamos em desastre, já estamos a pensar nas consequências desse evento. E quando falamos em vulnerabilidade, há a vulnerabilidade do edificado, mas a mais importante de todas é a das pessoas. Claro que é triste que percamos uma ponte histórica, mas uma família em que pessoas morrem vítimas de um desastre é aquilo com que devemos preocupar-nos mais. E, se os recursos são menores, é natural que a preparação para o desastre seja menor também.
Voltando a Lisboa, está sempre na cabeça de quem vive nesta cidade a possibilidade de voltar a haver um grande terramoto que abale a capital. E não mostramos estar muito melhor preparados com o passar do tempo. Como é que a vulnerabilidade sísmica se traduz na vulnerabilidade socioeconómica aqui?
Aqui, é ao contrário. Não sei até que ponto as pessoas que vivem nas Avenidas Novas não estão mais vulneráveis do que aquelas que vivem na Cova da Moura.

Por uma questão meramente geográfica ou também estrutural?
Estrutural mesmo. Vivi vários anos nas Avenidas Novas. Estamos a falar de um período em que Portugal ainda não tinha feito a transição entre o sistema basilar de construção de alvenaria para o sistema de construção com estrutura de betão armado. E o sistema de alvenaria é o tipo de construção que não está pensado para que a habitação dure uma eternidade.
Lisboa tem uma atividade sísmica permanente. Durante um ano, há dezenas ou centenas de pequenas atividades sísmicas que vão causando algum impacto nos edifícios. Portanto, todos estão, de alguma forma, provavelmente condenados. Até porque as intervenções para reforço das infraestruturas são complexas e caras – e até podem nem ser compensadoras. Acaba por ser mais lógico demolir um edifício e erguê-lo de novo. Aliás, isso tem acontecido nas Avenidas Novas.
Depende tudo de dinheiro?
Dinheiro e organização. Não há uma política de preparação para o desastre. A nossa cultura de desastres nem é das piores, porque o terramoto de Lisboa deixou marca, mas a memória também é curta e, a pouco e pouco, vai-se perdendo a consciência da importância de questões relativas ao risco. Além disso, era importante passar isto também para quem nos visita…
Os estrangeiros deviam estar avisados de que Lisboa corre risco…
Desconhecerem esse risco não é bom. Era importante que soubessem, quando estão num hotel ou num Airbnb, o que devem fazer quando saem porta fora, para se protegerem. Se devem correr para a esquerda ou para a direita, porque em vez de estarem a ir para o Rossio, podem estar a correr em direção ao Terreiro do Paço.
Nos EUA, por exemplo, quando se chega ao aeroporto, se uma cidade está muito propensa a desastres, existe logo um manual de apoio para orientar as pessoas em situação de emergência. Claro que não é um panfleto muito apelativo quando chegamos a um aeroporto, de férias, mas é importante fazê-lo, para que as pessoas se salvem.
Outra das suas grandes preocupações na arquitetura é a sustentabilidade. E o Nuno costuma lembrar como temos muito a aprender com as comunidades mais vulneráveis na forma de tornamos a nossa cidade e o nosso bairro mais sustentáveis. Porquê?
As pessoas que vivem com poucos recursos, normalmente, têm de estimar esses recursos. Se perdem a sua casa, se sofrem uma inundação, ficam sem nada. Geralmente, são pessoas preocupadas com o encaminhamento da água, o circuito que ela faz nos bairros, com a prevenção de desastres. E nestes pequenos gestos do dia-a-dia encontramos dicas que são fundamentais para fazer uma arquitetura que responda a estas questões, uma arquitetura humanitária. Quem vive nos bairros sociais de Lisboa, por exemplo, tem muito a ensinar aos arquitetos sobre sustentabilidade.
Soluções só imaginadas por quem vive realmente vulnerável…
E por isso é que o processo participativo na arquitetura é tão importante. Precisamos de ouvir mais, para termos cidades, bairros e pessoas mais saudáveis. Mais sustentáveis, agora e no futuro.

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Catarina Reis
Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.
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