Agarre os auscultadores e siga com as crianças do bairro Alfredo Bensaúde até à escola.

A história que fala da relação entre a comunidade cigana com a escola poderia ser contada numa alusão ao pêssego que a professora Carmo segura na mão. A fruta fez o seu caminho biológico até ser embalado no saco de plástico de uma colega e, dali, ter saltado para as suas mãos.

“Simples o percurso, não é? Mas as pessoas não funcionam assim”, diz. Não se muda décadas de tradição nómada, de uma cultura livre e ambulante, “para uma cultura em que têm de fechar os filhos numa escola todo o dia”, “porque é uma ambivalência muito grande”.

Não se transitam pessoas como um pêssego transita da terra para a nossa mão. Quem o garante é Carmo Pinto, 58 anos, coordenadora da escola de 1.º ciclo do agrupamento de Santa Maria dos Olivais.

Carmo Pinto tem 58 anos e é coordenadora da escola de 1.º ciclo do agrupamento de Santa Maria dos Olivais, uma escola que responde aos bairros envolventes, onde moram muitas famílias de etnia cigana. Foto: Inês Leote

Desde 2004 que está à frente desta escola e desde que se lembra que é sobretudo frequentada por crianças moradoras do bairro Alfredo Bensaúde, na freguesia dos Olivais. E, por isso, maioritariamente por crianças de etnia cigana, que fazem a grande paisagem deste bairro.

São também estas crianças quem a professora mais vê faltar às aulas. Tornaram-se comuns os dias de salas mais vazias. Sobretudo às sextas-feiras, dia em que muitas destas crianças se preparam para ir com os pais para as feiras de venda ambulante.

Mas, desde há uns meses para cá, o absentismo escolar tem diminuído. Tudo graças a um “autocarro humano”.

De 40 a escola passou a receber todos os dias 60 alunos. “O absentismo diminuiu graças a este projeto”

CARMO PINTO, coordenadora da escola

Não é mais do que uma fila de crianças, mais ou menos organizada, que seguem do bairro Alfredo Bensaúde até à escola, juntas e a pé, todos os dias da semana. Depois de uma breve experiência, a Associação Mulheres sem Fronteiras, que atua no bairro, percebeu que juntar as crianças, de manhã, num ponto do bairro, e partirem juntos para a escola, com música e conversa pelo caminho, poderia ser o suficiente para motivá-los a comparecer mais na sala de aula.

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O projeto do “autocarro humano” é da Associação Mulheres sem Fronteiras, no âmbito do programa Bairros Saudáveis, e chama-se “AC/DC Fator M é a Solução!” Foto: Inês Leote

“Há mitos sobre isto: as crianças não gostam da escola, não querem vir. Mas depois percebemos que as crianças que estão aqui [na escola] estão bem. E que uma das razões principais do absentismo escolar é as famílias não se organizarem para trazer as crianças à escola”, conta Alexandra Alves Luís, da Associação Mulheres em Fronteiras, com anos de trabalho no bairro.

De 40 a escola passou a receber todos os dias 60 alunos, esclarece Carmo Pinto, coordenadora da escola. “O absentismo diminuiu graças a este projeto”, é perentória. Um projeto da Associação Mulheres sem Fronteiras, no âmbito do programa Bairros Saudáveis, ao qual chamaram “AC/DC Fator M é a Solução!”. “AC/DC” para “antes e depois da covid-19”, ainda que a pandemia continue a existir. E “M” para “mulheres e moradores”.

E mesmo que tivesse nascido como um projeto para todas as crianças ciganas ou não do bairro Alfredo Bensaúde, acabou por se tornar uma espécie de antídoto contra o absentismo escolar desta comunidade específica.

“Isto tem um efeito multiplicador, porque as outras crianças veem estas a vir e a algazarra toda e depois também querem vir”, conta Alexandra Alves Luís. Vídeo: Inês Leote

Acordar porta a porta

“Levanto-me, vou às casas e bato às portas. ‘Está bem, Sirila, já vamos’. Já sabem que sou eu e vão acordá-los”. Há algumas horas que o sol já bate nas janelas do bairro, há moradores à espreita, debruçados para a rua, mas nem todos os que Sirila quer estão já de olho aberto. “Enquanto isso, vou chamando outros. Alguns vou mesmo buscar à cama, quando não querem levantar-se. Ajudo a pentear, ajudo a preparar o lanche.”

Já no ponto de encontro, Alexandra Alves Luís grita por alguns nomes. Comprou uma buzina, mas acha que pode ser exagerado para outros vizinhos e continua a dar uso às cordas vocais.

Cada criança que chega ajuda na tarefa.

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A equipa coordenadora, técnica e de voluntários do projeto: Lis Soriano (voluntária), Alexandra Alves Luís (coordenadora), Isabel De Rueda (voluntária) e Sirila (voluntária). Foto: Inês Leote

Sirila, cigana e que há já vários anos conhece os cantos e recantos ao bairro onde mora, está a demorar mais a chegar com a comitiva que tratou de ir acordar. “Hoje apanhei uma menina que não veio porque está menstruada”, explica depois. “É porque, na escola, é energia até dizer chega, então há sempre aquele medo de estarmos a correr e de manchar. Depois, são as dores: uma criança aguenta menos. E depois isto é um tabu em casa: na comunidade cigana, o pai e os irmãos não podem saber, não se fala disto”. O que torna qualquer pedagogia sobre o assunto quase nula.

“Às vezes, é mais difícil recrutar as meninas para isto, sobretudo quando estão com a menstruação. A dor ou o desconforto são um impeditivo”, confirma Alexandra Alves Luís. A coordenadora e técnica do projeto diz que é uma das desculpas a que se associam tantas outras.

Em muitos casos, porque “são crianças que se deitam muito tarde, não conseguem levantar-se cedo nem os pais forçam a tarefa”, adianta a professora Carmo Pinto. “Eu moro no outro lado da avenida e vejo-os às duas da manhã a brincar na rua”. E se alguns até querem ir para a escola, não podem ir sozinhos – “porque isto é um perigo para chegar aqui” – e os pais não os levam.

“Percebemos aquilo que já sabíamos: que as crianças gostam de vir.”

ALEXANDRA ALVES LUÍS, coordenadora do projeto

São muitas as barreiras que Sirila e Alexandra encontram até conseguirem reunir um conjunto de crianças para levar à professora Carmo. O segredo é lutar sempre por alguns, porque o resto as próprias crianças tratam de fazer. “Isto tem um efeito multiplicador, porque as outras crianças veem estas a vir e a algazarra toda e depois também querem vir”, conta Alexandra Alves Luís. Algo que era uma obrigação passou a ser divertido. “Percebemos aquilo que já sabíamos: que as crianças gostam de vir.”

A escola e o caminho da validação social

Nininho Vaz Maia já enche coliseus, mas talvez não saiba que é a razão pela qual muitas destas crianças do bairro Alfredo Bensaúde se levantam da cama para ir para a escola. Pediram uma coluna a Alexandra, porque com música o caminho até lá faz-se melhor. E são as músicas do cantor cigano que saem em loop, acompanhadas da voz de alguns que parecem saber cantá-las de cor. Entre eles, há sonhos de encher coliseus também, um dia, ou de serem bailarinos.

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Cerca de 20 crianças percorrem juntos o bairro Alfredo Bensaúde até à escola, todas as manhãs. Foto: Inês Leote

Sabemos que estamos a chegar à escola quando a música começa a desaparecer das colunas. “Hoje vieram os meus meninos”, diz uma senhora de sorriso aberto, no portão. É Teresa, uma funcionária da escola que se tem habituado a vê-los mais frequentemente, mas para quem a consistência da vinda não deixa de surpreender. “Gostamos muito deles cá”, diz.

Eles, as crianças do bairro Alfredo Bensaúde, bairro de gestão camarária, gerido pela Gebalis há cerca de 20 anos e com uma forte presença da comunidade cigana. É já a terceira geração destas famílias que hoje chega a esta escola.

É a mais próxima do bairro – o percurso faz-se em cinco a dez minutos a pé – e conhecida por trabalhar bem os desafios culturais das pessoas desta etnia. Carmo Pinto, coordenadora da escola, diz que 70 a 80% dos alunos é da comunidade cigana e alguns até chegam, de propósito, vindos da margem sul. “A fama da escola é má – porque é considerada a escola dos ciganos -, mas junto da comunidade cigana eu tento acolher e estabelecer essas pontes. Segundo o que dizem, é das poucas escolas onde sentem que são bem-vindos.”

bairro alfredo bensaúde, comunidade cigana
O bairro Alfredo Bensaúde tem cerca de 20 anos, está sob a gestão da Gebalis e tem sobretudo moradores da comunidade cigana. Foto: Inês Leote

Nem sempre foi assim. Em 2006, quando as crianças desta comunidade chegaram ao bairro e à escola, foi “uma altura muito complicada” para o corpo docente. “Eles não confiavam em nós. E a confiança gera insegurança e a insegurança gera violência.”

Carmo Pinto decidiu negociar com as famílias. “A escola não é do portão para dentro e a família não é do portão para fora, tem de haver uma interação, porque somos pessoas. A criança, aqui, reflete os problemas de casa e em casa reflete os problemas da escola. Aquela violência toda que existia na altura tinha de ter uma razão.” Foi à procura de respostas e começou a ir ao bairro, beber café, observar, estar com as famílias. “Quem lá vai percebe, depois, os comportamentos que vemos aqui”, diz.

Mas não bastou. Entregou-se às enciclopédias: “comecei a pesquisar muito sobre a comunidade cigana e a perceber que eles são nómadas por cultura, por isso, estar a fechar o pardalito aqui o dia todo é muito difícil. Estarem fixos é difícil. Vai demorar gerações até que isso se torne tradição.”

“A primeira vez que houve o Wonderland no Parque Eduardo VII, ele [um aluno de etnia cigana] chegou cá, partilhou e veio tão, mas tão contente de lá. ‘Ó professora, eu fui ao estrangeiro’. Portugal, para eles, é este espaço. Tudo o que seja fora já é muito longe.”

CARMO PINTO, coordenadora da escola

A partir daqui, de matéria na ponta da língua, a coordenadora decidiu passar a receber todas as famílias no portão, de manhã. “Para me verem, saberem quem eu era. E fazia propostas – uma mão lava a outra e as duas lavam a cara. Eles queriam ajuda para tratar do SASE [ação social escolar], por exemplo, então eu pedia a colaboração deles para o comportamento do filho na escola. Hoje, temos uma comunidade que me aceita, que é minha amiga e que confia em mim. Chamo os pais e os pais vêm. Se não vêm, vou eu ao bairro e explico as minhas aflições”, recorda.

Para esta professora, trabalhar com crianças, nestas idades, e vindas de culturas distintas, deve ser um jogo de cintura. Por isso, até hoje sabe que há cedências a fazer por um “mal menor”.

Embora haja um horário a cumprir, Carmo Pinto abre a flexibilidade na hora de chegada, porque “é preferível ela vir, mas tarde, perder algumas coisas e ganhar outras, do que ficar o dia todo na rua, onde não aprende nada, porque não são famílias que ficam com eles em casa a estudar”. Mal por mal, que venham, mesmo que tarde.

A conjugação do verbo “ir”, isso sim é que Carmo Pinto considera imprescindível na negociação. Reconhece na escola um lugar capaz de proporcionar-lhes experiências que eles nunca terão em contexto familiar.

E lembra um aluno, para exemplificar: “A primeira vez que houve o Wonderland no Parque Eduardo VII, ele chegou cá, partilhou e veio tão, mas tão contente de lá. ‘Ó professora, eu fui ao estrangeiro’. Portugal, para eles, é este espaço. Tudo o que seja fora já é muito longe. Vem cá um contador de histórias, vem cá um ilustrador; podem não aprender tudo o que queremos, mas há experiências que só a escola proporciona.”

E é fácil de explicar isso aos pais? “Vai sendo mais fácil. Vamos lançando a semente aos poucos e esperamos que ela germine. Nem todas germinam. Há que saber esperar.”

“Agora umas mentes, amanhã outras”

É assim em Portugal e noutros cantos do mundo. Mas, para Isabel de Rueda e Lis Soriano, a existência de programas como este “autocarro humano” são sintomas de que Portugal está uns passos à frente de outros. Chegaram em finais de março a Lisboa, como estudantes do IES Avempace, em Saragoça, Espanha, para serem voluntárias na Associação Mulheres sem Fronteiras e especificamente nesta iniciativa também.

São disputadas entre os mais pequenos, que lhes pedem abraços, a mão e um sinal de que são parte da família. “O mais importante é dar-lhes atenção e carinho”, acredita Lis, de 21 anos.

Nada que soubesse antes. Para ambas, que não estavam habituadas “a este tipo de bairros”, Portugal mostra que “aqui pudemos conhecer melhor esta etnia e deixar esses preconceitos”. “Sentimos que aqui há menos a ideia de ‘os ciganos (de um lado) e os portugueses (do outro)’, é mais ‘todos juntos’, sem tantos preconceitos”, diz.

Isabel de Rueda e Lis Soriano vieram de Espanha para serem voluntárias neste “autocarro humano”. Foto: Inês Leote

Mas eles ainda existem.

O Comité Europeu de Direitos Sociais do Conselho da Europa reconheceu, no seu último relatório, a importância de determinadas medidas implementadas em Portugal que vão ao encontro da melhoria de vida da comunidade cigana. São elas a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas e de programas de habitação como o 1.º Direito. Mas o mesmo Comité ainda considera a ação atual insuficiente para combater a discriminação em relação às pessoas de etnia cigana.

Os números provam a dificuldade. Dados de 2017 (do Alto Comissariado para as Migrações) mostram que há 37 mil pessoas ciganas em Portugal e sabemos agora que 37% ainda vive em bairros de lata ou acampamentos, em 70 municípios, segundo um outro relatório, divulgado em 2021 pelo Comité Europeu de Direitos Sociais. Os dados e estudos, no entanto, são ainda insuficientes para estimativas demográficas rigorosas, sobretudo perante a exclusão da etnia dos questionários e censos.

À dificuldade no acesso à habitação, junta-se a complexidade da entrada no mercado de trabalho, na educação (sobretudo de raparigas) e a saúde.

Quando a conversa é educação, a comunidade cigana ainda não chega onde o ensino permite aos não ciganos chegarem, embora cada vez mais estejam representados nas faculdades e no mercado qualificado.

O mais recente estudo nacional sobre as comunidades ciganas na educação, divulgado pelo Ministério da Educação em 2018, mostra que o número de jovens de etnia cigana nas escolas duplicou em 19 anos. Se no ano letivo de 2016/2017 havia pelo menos 11 018 matriculados no ensino obrigatório, quase 20 anos atrás eram metade disso – 5921.

Na ponta da língua, pai e avós guardavam a resposta para tudo. A maioria justificava a saída precoce da escola dos filhos e dos netos por consideraram que já tinham “aprendido o necessário” ou porque já “estavam noiva/os, casada/os, grávidas ou tinham sido recentemente mães/pais”. São as conclusões do Perfil Escolar da Comunidade Cigana, um documento que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente em 2016/2017.

“Mas a culpada de eu não ter estudos sou eu.” Sirila, do bairro Alfredo Bensaúde, conta uma história que “não é um exemplo da maioria” e mostra que “estamos sempre a evoluir, como a tecnologia”. Apesar da pressão dos pais para que Sirila estudasse e prosseguisse os estudos por um futuro melhor, “porque as amigas não iam à escola”, ela seguiu-lhes o exemplo.

Reconhece agora que é um esforço que deve ser feito e que cada vez mais famílias da comunidade cigana motivam os filhos a estudar. Por isso é que se levanta todos os dias para acordar meninos e meninas do bairro onde vive e fá-los chegar à escola. “Os nossos avós tinham uma mente, os nossos pais tinham uma mente, nós temos outra e os nossos filhos vão ter outra também.”


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

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