Era junho e o ano ímpar de 2017 não anunciava nada de bom para os mais supersticiosos do bairro São João de Brito. A Junta de Freguesia de Alvalade mandou vir uma camioneta para recolher todos os moradores. Vestiram-se a rigor, chamaram filhos e netos. Para o bem ou para o mal, aquele seria dia para marcar no calendário.
Uns dias antes, Fernando Medina (à data presidente da Câmara de Lisboa) tinha telefonado para a associação de moradores: encontro marcado no Salão Nobre, havia novidades sobre o destino das famílias deste bairro.
Há mais de quatro décadas que centenas de pessoas construíram as suas próprias casas neste pedaço do norte de Alvalade, entre a Avenida do Brasil, a Rotunda do Relógio e a 2ª Circular. Nas bermas da freguesia que na altura levava o nome do bairro. Construíram-nas ali, com a ajuda dos vizinhos, à noite, à luz dos faróis dos carros. Nas horas vagas, porque o dia estava reservado para o trabalho.
Tinham em comum o passado e a necessidade de um recomeço: chegaram das ex-colónias, assim que se deu o 25 de Abril de 1974. Saíram de Angola e Moçambique e dormiram durante semanas – alguns até meses – nos bancos e chão do aeroporto de Lisboa, para o qual têm hoje vista privilegiada da janela de casa. Do bairro, vê-se mais aviões do que carros estacionados.
Quando aterraram, “não tinham terrenos, não tinham casas, não tinham nada”. “Muitas pessoas, para conseguirem algum suporte familiar, voltaram para as aldeias. As que não tinham esse suporte familiar ficaram sem sítio para onde ir.” São memórias de Maria de Fátima Martins, 58 anos, atual presidente da Associação de Moradores do bairro São João de Brito.

Um dia, a Câmara Municipal de Lisboa foi ao aeroporto, para perceber o que poderia fazer para ajudar. “Quem lá estava só pediu uma coisa: terreno para poder construir. ‘Deem-nos só isso e nós construímos’”, conta Maria de Fátima.
Ainda longe dos tempos em que se falaria de programas de realojamento, a autarquia aceitou, sob o compromisso de pagamento de uma taxa de ocupação, ceder-lhes um terreno muito perto dali. Mais perto era impossível: hoje, o aeroporto onde dormiam e o bairro que erigiram estão apenas separados pelo trânsito da 2.ª Circular.
O fantasma da demolição
Ao longo dos anos seguintes, deram tijolo, cimento e chapa às casas, asfalto às ruas, vida a um canto deserto da cidade. Mas as habitações nunca foram reconhecidas como legais pela autarquia, ainda que os moradores pagassem mensalmente a taxa de ocupação acordada desde o início. Viviam todos os dias a saber que amanhã a demolição do bairro poderia estar em discussão – como tantas vezes esteve. Sem o direito a arrendar ou a deixar em herança a casa que era deles. Feita pelas suas mãos.
Até que Fernando Medina ligou. Mais de 40 anos depois da chegada dos primeiros moradores ao bairro.
“Nunca acreditamos que pudesse ser para algo bom”, diz Maria de Fátima, por tantos considerada a mãe desta luta, e cujo otimismo era a exceção. No Salão Nobre, o então presidente confirmou as suspeitas dela: o bairro iria ser requalificado, as pessoas iam poder comprar os seus lotes, tudo seria legalizado.
E não mais se falaria em demolição.

Foi mesmo um dia para marcar no calendário: 17 de junho de 2017.
“Não está bem a ver, pois não? Eu não sabia se chorava ou se ria. As pessoas choravam, senhoras e senhores.” Outros, incrédulos, “continuavam sem acreditar, mesmo naquela reunião”. Lembra-se que “muitos iam preparados para reclamar”, habituados à luta de sempre.
São João de Brito é agora o rascunho que todos sonharam que fosse um dia. Hoje, os moradores vivem com pó, pedra, redes, maquinaria e placas de sinalização à porta. Mas, aqui, isto é bom sinal. O que irritaria a maioria, aqui tem sido encarado “com a maior tolerância”. Afinal, esperaram por estas obras de requalificação durante anos.
Em 2018, arrancou a assinatura das escrituras; em março de 2021, o asfalto começou a ser levantado para dar lugar a algo novo – nomeadamente o saneamento que nunca tiveram. Meio caminho está andado para, finalmente, se sentirem parte do seu bairro, da sua cidade, da sua freguesia. E não um canto deixado ao abandono.
Uma aldeia dentro da cidade
Até aos 17 anos, pouco ou nada disto interessava à jovem Maria de Fátima, a morar num 3.º andar de um prédio em Lisboa, com várias assoalhadas. Pelo menos até ser obrigada a mudar-se com os pais. Adolescente, viveu a mudança da casa de sempre para o bairro São João de Brito com choque.
No bairro, “uma aldeia dentro da cidade”, eram letras que davam nome às ruas (algumas escritas à mão na parede de casas), não havia água quente e as ruas lamacentas obrigavam a usar galochas todo o inverno. “Sentia-se um grande atraso”, lembra Maria de Fátima. Tudo “foi um choque”, embora a miúda vivesse a acreditar que aquela rotina era provisória.
Manteve-se durante anos – a falta de água e a lama.
Maria de Fátima fazia o Inverno todo só de galochas. “Era assim que eu ia para o liceu, com lama até aos tornozelos. Onde houvesse uma poça de água, eu passava para lavar as galochas.” O pior, lembra, era para quem ia trabalhar em escritórios e função pública. Esses “levavam as galochas até à Avenida do Brasil e, depois, punham-nas dentro do saco e calçavam sapatos”.
Para o trabalho, para a escola ou para ir pôr o lixo à Avenida do Brasil – durante anos, não houve recolha do lixo no bairro. Aqui, nem o correio chegava. Água potável só num chafariz.

O bairro era um mundo à parte e até as casas eram diferentes das casas da cidade. “As pessoas construíram à imagem daquilo que tinham na terra de onde vinham, que por sua vez já construíram à imagem daquilo que tinham nas suas aldeias portuguesas, onde viviam antes de migrarem para fora”. O que resultou num transplante de arquitetura e memórias que levaram para Angola e Moçambique e que, quando regressaram, quiserem voltar a cumprir.
O resultado? “Uma aldeia dentro da cidade. Na arquitetura e na toponímia. Há uma rua em que, como a grande maioria dos moradores era de Trás-os-Montes, chamaram Rua de Trás-os-Montes. Foram os moradores que deram o nome.”
Mas tantas outras mantêm-se até hoje ruas de letras. A de Maria de Fátima é a Rua C. Essa é uma ferida aberta na identidade deste bairro.

Afonso Nuno Martins, que há anos foca o seu trabalho na área de arquitetura comunitária como investigador da Faculdade de Arquitetura de Lisboa, lembra como a toponímia pode ser tão importante na definição de uma comunidade. Se parece assunto sem grande importância em determinados países e cidades em que as ruas e as avenidas têm números, “na nossa cultura, europeia e portuguesa, um nome de rua ajuda a reforçar o sentimento identitário”.
Pode mesmo ser “fundamental para as pessoas poderem sentir-se como cidadãos de pleno direito, poder dar uma morada dita normal quando têm ou procuram um emprego”, diz.
A primeira a chegar
Os habitantes da Rua das Mimosas, uma das vias do bairro, sabiam disso nesta que foi uma das ruas que nasceu antes mesmo de o bairro existir. Quando os portugueses retornados de Angola e Moçambique aqui instalaram as vidas, já havia “uma ou outra pessoa com casas feitas”, nos anos 1960. “Chegaram mais cedo e de um contexto completamente diferente, por dificuldades económicas. Foram construindo, pagando à CML e ficando”, diz Maria de Fátima.
Helena Rita Dias bem se recorda, ela que ainda está “esperta”, aos 91 anos – cerca de 60 dos quais a viver aqui. Foi a primeira moradora a criar raízes neste bairro. Era uma jovem num Portugal ainda no regime salazarista. Lisboa nem sonhava ser o que é hoje, mas ela sonhou com esta cidade enquanto ainda vivia no Alentejo.

“Isto era a Quinta do Gaspar, até uns engenheiros começarem a ocupar para trabalho”, conta. A quinta desapareceu. Com o dedo apontado, vai mostrando o que havia e já não há: “Ali um estaleiro grande, aí mais abaixo um ferro-velho”.
O marido era também engenheiro, “foi dos primeiros a ir trabalhar para a ponte [25 de Abril], para o fundo do mar”. Era muito amigo de um senhor que trabalhava aqui no terreno e que sabia que Helena vinha muito a estas bandas de Lisboa, onde tinha os irmãos a morar. “Um dia, perguntou se não queríamos fazer ali uma casinha. Oh, se queríamos”.
Fez as malas e “muito bem a muita gente”. “Era eu que lavava a roupa e costurava muita coisa dos que vinham lá da terra para trabalhar aqui.”
O bairro ainda não era bairro, era um grande terreno deserto e a casa de Helena. Depois, “veio a mãe da Rosa, pedir se podia fazer aqui uma barraquita, com uma filha pequena nos braços”. Depois, “vieram outros, outros, outros e fizeram um bairro”.
O bairro e a felicidade desta mulher, que se sentia sozinha até ganhar vizinhos.
Mas a rua onde vive não é uma rua como as outras. Mais fora do bairro, quase a bater na 2ª Circular, no prolongamento da Rua Jorge Colaço, “por uma questão de revisão e alteração de PDM [Plano Diretor Municipal] pedido pela comunidade do bairro há uns anos, a Rua das Mimosas ficou fora da revisão para zona residencial”. Algo de que os moradores só se deram conta agora, quando o bairro soube que iria ser regularizado, explica a presidente da Associação de Moradores. Os moradores sempre a consideraram o início do bairro.
A situação está em estudo na CCDR [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo], mas isso não impediu que as obras continuem ali também. Neste dia, falávamos com Helena com o pés em cima de uma ponte de ferro improvisada por cima de uma vala, mesmo à porta.
O direito a comprar, arrendar ou herdar
Se é verdade que o bairro São João de Brito está nas margens de Alvalade, também faz páginas de jornais há décadas. Ainda mais desde que se fundou a associação de moradores, que Maria de Fátima integrou nos anos 1990, para reclamar o direito a uma rede de saneamento. Na mesma década, em 1997 o bairro foi ameaçado por um processo que colocava no horizonte a demolição das casas. O assunto foi até utilizado como bola de pingue-pongue entre candidatos à autarquia, cada um a prometer coisas diferentes, em tempos diferentes.
Para uns, valia mais dar uma nova roupagem àquela parcela da cidade com mau aspeto. Para outros, dar a oportunidade de os moradores ali ficarem, com melhores condições.
A possibilidade de demolição foi suficiente para alguns moradores, cerca de 50, decidirem aceitar a oferta da autarquia de uma habitação social noutra zona da cidade. Alguns dos espaços vazios entre casas do bairro são dessas casas que foram abandonadas por estas famílias que fugiram da incerteza e insegurança. Viver aqui era “viver sempre em grande aflição, porque como o terreno não era nosso, a aflição era sempre esta: se eles quiserem o terreno, mandam-nos embora. Tão simples quanto isto”, diz a líder popular.

Para alguns moradores, pesava mais a possibilidade de não ter um bem para deixar aos filhos. Sem contrato da casa, ela é de ninguém. “Não tinham nada para lhes deixar.”
Lembra Maria de Fátima que a partir da ameaça de 1997 as pessoas resolveram lutar: “Não puderam fazer nada relativamente ao que abandonaram nas ex-colónias, tiveram que sair a correr por causa da guerra, mas aqui não era uma questão de guerra. Por isso, disseram: ‘Eu já abandonei tudo o que tinha por causa de uma guerra e não vou abandonar novamente por escolha de políticos’.”
O caso ficou parado devido a uma negociação entre a autarquia e a ANA Aeroportos que reclamava parte do terreno que ali existia. Durante anos, nada nem ninguém conseguiu desbloquear o assunto aos olhos da lei.
Certo é que os anos passaram, o bairro manteve-se quase inalterado, com a cidade a crescer à volta. O bairro sempre ali, longínquo, marginalizado. Até na freguesia, como dizem e sentem os moradores.
Medo por fora, esperança por dentro
“Um bairro de bandidos, de marginais, de barracas”. É isto que os moradores dizem ter ouvido durante anos a fio. “Creio que tem a ver com o aspeto que o bairro teve durante muito tempo”, o tempo em que o tijolo era chapa, contrapõe Maria de Fátima. A quem olhava de fora “parecia um morro, uma favela”.
“Na Rotunda do Relógio até puseram placards enormes de publicidade para tapar o bairro”, puxa as memórias.
Fátima desmonta tudo aquilo. Quem aqui vive é, “na esmagadora maioria, pessoas ou ainda trabalhadoras ou que trabalharam toda a vida”. “Temos médicos, advogados, filhos do bairro licenciados – não sei se quem está de fora sabe disto. E, mesmo que não tivéssemos, todos os que aqui moram ou moraram são pessoas muito válidas e nada marginais.”
As casas também não são barracas, exceto uma ou duas que assim se mantêm. Como muito ferro velho ali estendido, devido à presença de uma oficina.
Veja aqui retratos de alguns moradores do bairro:
Dizer “São João de Brito” nunca parece soar bem senão para os que aqui moram. Conhecido como o bairro labiríntico que é, com o passar do tempo abriu portas ao tráfico e consumo de drogas em algumas zonas. O que só aumentou a insegurança dos moradores. “Criámos uma rede de telemóveis e comunicamos entre todos sempre que há alguma situação suspeita. Barulho, alguém desconhecido e com atitude suspeita. Avisamos um ou outro e ligamos para a polícia.”
Durante anos, o bairro estagnou na forma. Em grande parte, por medo. As melhorias nas próprias casas eram evitadas para que se chamasse o menos possível à atenção. Se, por um lado, queriam ver o bairro requalificado e com condições básicas de habitabilidade; por outro queriam cair no esquecimento da autarquia, sob pena de acordar as ameaças de demolição.
Por isso, só agora se vê casas a ganhar mais cor, muros a surgir. Aos poucos, os moradores aproveitam este momento para também eles porem mãos à obra e fazerem das casas o que sempre quiseram fazer delas.
A Associação de Moradores conta que “o bairro ainda não está legal”, embora já se encontre em restruturação e com o loteamento em processo. Porque cada caso é um caso, há ainda quem não tenha a escritura assinada, dependente de decisão de tribunal por motivo de heranças.
Vencida a maior luta, Maria de Fátima já pensa em arrumar a farda. “É altura de passar o legado da associação para os mais novos.” Novos que há poucos, para já, mas que acredita que virão. A requalificação do bairro veio fortalecer a vontade de muitos filhos e netos regressarem ao sítio onde nasceram e cresceram.
Antes de fechar a porta, tem ainda em mente o pagamento de uma dívida aos mais idosos: dar-lhes um centro de dia, ali mesmo. “Para os nossos idosos, mas também para os da freguesia”, a fim de promover a integração do bairro em Alvalade.
Helena, de 91 anos, ainda não sabe dos planos de Maria de Fátima, mas vive os dias com uma certeza: “Quero acabar aqui, neste bairro.”
Qual o impacto da arquitetura na segurança e mitigação de preconceito?
O arquiteto e investigador Afonso Nuno Martins explica como se pode combater o preconceito e garantir a segurança de moradores de cada bairro através de algumas medidas arquitetónicas e urbanísticas.
Ruas com espaço
“O importante são as condições de salubridade, ruas com largura suficiente (para garantir vida à rua), em que a proporção da altura dos edifícios e a distância entre eles seja uma proporção correta – que a altura não seja muito superior à distância entre dois edifícios. Aquilo a que normalmente chamamos na arquitetura a regra dos 45 graus e que permite que os edifícios não se ensombrem [dificilmente aplicável em centros históricos, por exemplo]. A ideia é que a rua possa ter insolação, podendo isto combater estigmas.”
Criação de espaços públicos
“Deve haver espaços para as pessoas se encontrarem, praças, largos, alamedas, jardins. Os lugares podem e devem convidar-se uns aos outros.”
Passeios e iluminação de rua
“Estes elementos reforçam a identidade urbana e ajudam as pessoas a sentir que moram numa cidade e não no campo – onde não é necessário haver tantos passeios, por não haver tanta motorização, tantos automóveis. E ajudam quem está de fora a olhar para aquele bairro e reconhecer-lhe também essa valorização urbanística.”

Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
✉ catarina.reis@amensagem.pt

Inês Leote
Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.
Bom dia caros cidadãos.
Tudo o que eu li foi o que vivi vivo no Bairro desde 1976 .de onde vim de Angola em 1975 foi uma grande luta toda a vida mas valeu a pena. Graças há Senhora Fátima Martins o que eu Agradeço do fundo do meu coração vim para o bairro tinha eu 20 anos e agora tenho 66 anos bem aja Maria de Fátima Martins ótimo trabalho .
Bem já todos sabemos o que fazer….
Comprar casa só para ricos, que os créditos estão proibitivos,
Arrendar casa só para ricos , que as rendas estão insuportáveis.
Portanto, é ocupar um terreno, montar uma barraca, ir arranjando ao longo dos anos, que mais tarde a Câmara de Lisboa fará com que seja nossa, tudo custo zero…..