“Aquilo a que chamamos acaso não é, não pode deixar de ser, senão a causa ignorada de um efeito conhecido.” Voltaire definiria assim o nosso encontro com a história de Galeno Morgado, 61 anos, um brasileiro que tem chamado a atenção de todos os que, nos últimos dias, percorrem a avenida Almirante Reis. Espreitam pela janela do carro, desaceleram a bicicleta, ou o passo, se vêm a pé.
Ali, está um físico de formação conhecido de algum povo brasileiro por se ter rendido à arte, já em adulto, e levá-la às ruas do mundo. A paragem mais recente foi em Lisboa e na avenida de todas as polémicas, em Arroios.
Galeno não era, no entanto, paragem para nós, jornalistas da Mensagem, que naquele dia visitávamos a Almirante Reis para uma reportagem sobre pessoas em situação de sem-abrigo. Era já hora de almoço e, no Centro Social dos Anjos, da Santa Casa da Misericórdia, uma fila de pessoas crescia cada vez mais pela artéria. Vinham para almoçar, eles que encontram ali diariamente a refeição que não podem pagar.
“Este? Há dias que o vejo aqui”.
A espera dá tempo para pôr a conversa em dia e, naquele dia, Galeno Morgado era tema. Já todos tinham reparado no homem com ar de Dom Quixote (bigode farto e de pontas viradas para o céu), de chapéu e avental, do outro lado da avenida.
À face da estrada, de costas para os carros e de frente para a Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, é ali que tem passado os últimos dias, cerca de sete horas em cada, todas elas em pé. Um homem aparentemente alheio à curiosidade dos outros, habituado a ser chamado de “louco” pelos transeuntes, e sempre empenhado em dar forma e cor à sua arte.
Tem com ele uma tela redonda encastrada num círculo de alumínio que mais se parece com a roda de uma bicicleta – o seu meio de transporte predileto, embora ele desconheça a discussão que este gera ultimamente nesta avenida. Tela que fica apoiada num tripé, onde estão pousados pequenos frascos de tinta, um pano para limpar o pincel, e onde deixa também pendurada uma mochila que usa para guardar e transportar o material de artista.


Já pintou o Rossio, Belém e nunca sabe qual é o próximo destino. Mas tem sempre um destino, algures. É que o brasileiro Galeno Morgado, vindo de São Paulo (Brasil) é conhecido por levar a tela redonda e o tripé a várias ruas de diferentes cidades do mundo. Uma aventura que começou em São Paulo, passou por Berlim, Paris, Rio de Janeiro, Porto e, agora, Lisboa.
Está na capital portuguesa a reboque da filha, que para cá veio morar há alguns anos. A situação política e económica no Brasil não o anima e, por isso, vem cá passar umas temporadas, à “cidade bonita”.




O físico que vendia molduras e quis pintar quadros
Físico de formação, funcionário público aposentado da Receita Federal do Brasil (o órgão do Governo com o controlo fiscal), em nada a vida de Galeno previa que se cruzasse com a arte.
A pintura só chegou já em adulto. Foi em Paris que aguçou este interesse, na cidade onde viveu durante três anos e conheceu a mulher com quem viria a casar.
Lá, trabalhou com uma instituição religiosa que ajudava turistas com mobilidade reduzida a fazer um tour pela cidade. Ele empurrava as cadeiras de rodas pelos lugares mais emblemáticos de Paris, visitava museus e viu como, na célebre Praça Tertre, vários pintores se reuniam todos os dias para dar vida às suas telas.
A curiosidade germinou ali, mas a ideia de ele mesmo pôr mãos à obra só aconteceu quando, regressado ao Brasil, trabalhou numa empresa de molduras (antes de ser funcionário público). “Via vários quadros e quis experimentar”, como um autêntico autodidata. Aconteceu há mais de 20 anos. Surpreendeu-se com o que era capaz de fazer com o pincel e aquele ato tornou-se terapia.
Uma terapia que mantinha, até então, dentro de quadro paredes.

Só depois de aposentado é que decidiu levar a arte para a rua. “Cada sítio que eu visito, procuro pintar”.
No Brasil, por exemplo, retratou o fim de um bairro paulista, para que aquele espaço não caísse no esquecimento do país. “A última [que pintei] foi a casa do alemão na Rua Fabrício Vampré. Parece que tudo vai para o chão… É muito triste”, disse, na altura, em declarações ao jornal local Pedaço da Vila, um jornal comunitário feito de e para o bairro paulista Vila Mariana.
Em Berlim, escolheu o famoso portão de Brandemburgo. No Porto, a ponte D. Luís I, mas também a torre dos Clérigos. Quase sempre, sítios de pessoas, que faz por partilhar na sua página de Instagram.

Em cada rua que transforma em estúdio, uma pintura pode demorar uma ou duas semanas, com sete horas diárias em pé, sempre face à estrada. Não sabe o que vai pintar até lá chegar, mirar um ângulo e começar a desenhar.
Já perdeu a conta a quantas obras criou, para cima de 400. E só vendeu uma, ao irmão, por mil reais. Recentemente, colocou outras tantas à venda no site artístico que criou.
Galeno gostava de ver mais artistas, os profissionais e os amadores, a fazer o mesmo – sair à rua para pintar. E, quem sabe, criar a partir daqui uma espécie de movimento cultural. “É estimulante para quem vê e para quem cria. Precisamos mais desta arte do que ela de nós”, desabafa.
A beleza é redonda
No mundo do brasileiro Galeno, a beleza é sempre redonda. “É mais difícil pintar assim” do que numa tela retangular ou quadrada, mas melhor para “a imaginação de quem vê”. Assim, “a pintura quase que transborda quadro fora”, diz, sem nunca largar a paleta e o pincel.
É redonda, como o mundo, e está em todo o lado. Para ele, “todos os sítios têm beleza”.
Há uns dias, encontrou nesta artéria da cidade o mote para uma nova obra – a igreja que tinha à frente. Alheio a qualquer religião, na tela pintava uma sátira: homens e mulheres com membros fálicos onde eles não costumam existir, o planeta a pedir socorro contra o aquecimento global, bandeiras de todas as religiões, astronautas e até a nau que os portugueses utilizaram para descobrir o mundo. Tudo isto em cima e em redor de um “livro sagrado”, uma espécie de Bíblia.

Com o quadro quase finalizado, já via a beleza a acontecer noutro lugar, a poucos metros dali. “Amanhã, vou começar a desenhar aquele senhor ali, que tem sido tão simpático comigo”, diz, a apontar para um homem de cadeira de rodas, a poucos metros, encostado a uma montra.
Uma miragem de Paris, onde tudo começou.
Olá, vizinho!
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Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
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