Quem entrar na biblioteca escondida do estádio Pina Manique, não vai encontrar as memórias do Casa Pia Atlético Clube intactas. As fotografias a preto e branco nas paredes, os passaportes já amarelecidos pelo tempo, os livros, os jornais e os desenhos envelhecem nas prateleiras. Nem mesmo as chuteiras e o apito, guardados na biblioteca museu Luz Soriano, parecem ter resistido à provação dos anos. Mas hoje, o estádio fulgura com novo brilho.
Desde 1939 que o Casa Pia não estava na 1ª Liga. A sua história foi sendo esquecida. Até agora. Em 2019, começaram a sentir-se prenúncios de mudança quando o clube ascendeu à 2ª Liga. Mas 2022 foi o ano do pontapé certeiro: no passado dia 15 de maio, a vitória contra o Leixões assegurou o regresso à 1ª Divisão.



Mesmo com o passar dos anos, há quem tenha estado sempre a torcer pelo Casa Pia, como é o caso de Bárbara França, uma das mais antigas sócias do clube. Bárbara é uma mulher de olhos muito azuis que hoje vive na Associação Casapiana de Solidariedade.

Sentada numa mesa do restaurante Dom Leitão, no estádio Pina Manique, a sua vivacidade não acusa os 88 anos enquanto conta a sua história de amor, não só pelo “homem da sua vida”, o casapiano com quem casou, mas também pelo clube que traz ao peito em forma de emblema: o Casa Pia Atlético Clube.
Foi fundado a 3 de julho de 1920 graças ao jornalista Ricardo Ornelas, ao chefe da secretaria da Casa Pia António Pinho, ao historiador David Ferreira, ao primeiro nadador olímpico português Mário da Silva Marques e ao jogador, treinador e jornalista Cândido de Oliveira.
Nos primeiros jogos, o Casa Pia recusou-se logo a jogar com a cor da bandeira, “a cor do farrapo”, diziam. Escolheram antes o preto e branco, a cor da cidade de Lisboa. No seu ano de fundação, a equipa liderada por Cândido de Oliveira venceu o Sport Lisboa e Benfica, conquistando o Bronze Herculano dos Santos. Nos dois anos que se seguiram, ganharam sem derrotas o Distrital de Lisboa e a Taça Associação.
Entretanto, o Casa Pia Atlético Clube jogou em Paris, em San Sebastian, em Sevilha e foi a primeira equipa a deslocar-se aos Açores. Em Paris, o golo casapiano marcado por Cândido de Oliveira valeu aos portugueses um “toujours lui” (“é sempre ele”) dos franceses.
Mas foi em 1939 que a sorte do clube mudou. E esse é um ano do qual o Casa Pia guarda também uma outra memória agridoce. Uma memória que hoje surge emoldurada numa parede do museu Luz Soriano: uma fita onde se inscreve “Graf Spee”, o nome do navio de cruzeiro que serviu a Alemanha nazi durante a Segunda Guerra.
Contam os mais antigos casapianos que esse navio terá atracado no Porto de Lisboa no ano dos azares. E porque o campo de basquetebol do Casa Pia ficava no Porto de Lisboa, os alemães terão então desafiado os casapianos para um jogo.
No final, admirados com a perícia dos portugueses, os alemães terão condecorado um casapiano com aquela fita. Meses depois, o capitão do navio, Langsdorff, suicidava-se e afundava o Admiral Graf Spee. Entretanto, no Casa Pia, não foi o basquetebol que perdeu a força, mas sim o futebol.

Certamente não terá sido o Admiral Graf Spee a causa deste azar. Talvez a expropriação do campo de futebol no Restelo, em 1940, com a organização da Exposição do Mundo Português. Uma expropriação que obrigou os jogadores a saltar de campo em campo, passando pelo Estrela da Amadora e pelo Alto de Santo Amaro, até chegarem ao Estádio Pina Manique, construído na antiga Quinta dos Marechais em 1954.
Qualquer que tenha sido o motivo, agora já parece de pouca importância. 83 anos mais tarde, o Casa Pia está de volta à batalha. “Que corra tudo bem, é o que eu desejo”, diz Bárbara em relação ao futuro.
A fotografia que conta a história do Casa Pia
Há uma fotografia que surge várias vezes no estádio Pina Manique e que conta bem a história deste clube. Uma fotografia eloquente, em que onze casapianos posam para a câmara: entre eles está o arquiteto António do Couto, o escultor Francisco dos Santos, o médico e ativista republicano Januário Barreto (provavelmente o homem que trouxe o futebol para a Casa Pia) e o pintor Pedro Guedes, que na fotografia segura uma bola de trapos cedida pelo Ginásio Clube Português.

Esta não é uma foto qualquer. É uma foto de 1898 que celebra um acontecimento que daria muito que falar: a vitória do clube Real Casa Pia, um clube que praticava no Campo das Salésias, em Belém, contra os ingleses do Carcavelos Club. Uma vitória que popularizou o futebol em Portugal.
Mas a fundação do clube que hoje conhecemos ainda demorou uns tempos desde então. Antes do surgimento do Casa Pia Atlético Clube, os alunos da Casa Pia formaram a Associação do Bem, que daria origem ao Sport Lisboa e Benfica, e o Grupo Sportivo Luz Soriano, com campo em Alcântara (alguns dos seus jogadores viriam a juntar-se ao Benfica). E, só depois, sim, o Casa Pia Atlético Clube, indissociável da casa que o fundou: a Casa Pia.
Os gansos que descobriram o futebol
Hélder Tavares, vogal da direção do Casa Pia Atlético Clube, manuseia um livro bem antigo sem qualquer pudor. Princípios mathemáticos, de José Anastácio da Cunha, um homem que foi preso pela Inquisição e que o Intendente Pina Manique escolheu para regente de estudos e professor substituto do curso matemático da Casa Pia.
Hélder chegou a essa mesma casa muito anos mais tarde quando perdeu o pai. Habituado a que a família lhe fizesse tudo, viu-se obrigado a adaptar-se a uma nova forma de vida: levantar-se cedo, fazer a formatura, tomar banhos de água fria. Mas também a jogar à bola. Hoje, guarda memórias e histórias desse lugar onde viveu.
A Casa Pia foi fundada em 1780 por D. Maria I para acolher crianças, órfãs e abandonadas, mendigos e prostitutas, e começou por instalar-se no Castelo São Jorge. Entretanto, passou pelo Desterro e encontrou o seu destino final em 1833 no Mosteiro dos Jerónimos. Não se sabe bem quando, mas algures nestes anos, os alunos da Casa Pia ganharam um nome particular: gansos.
Hélder ouviu algumas explicações para o nome ter pegado. “Foi o povo de Lisboa que escolheu o nome”, explica. Talvez por causa da postura dos alunos nos desfiles da cidade. “Aquele aprumo todo a desfilar em frente à rainha”, conta Hélder. “A própria rainha dizia: ‘Aí vêm os gansos!’”.
Outra explicação deve-se à apetência dos casapianos para o desporto: afinal, a Casa Pia foi a primeira escola a ter ensino regular de natação no seu currículo (e a primeira a construir um ginásio). “Os nadadores saíam em passo de corrida em tronco nu dos Jerónimos até à praia do Bom Sucesso para nadar”. Como gansos.
Os gansos são aliás o tema de um grande quadro numa sala do estádio. Assinado pelo casapiano Tavares Correia, o quadro retrata uma cena cómica: um pintor, que provavelmente teve de se ausentar, regressa à sua tela só para a encontrar rodeada de gansos. Lá ao longe, é possível ver-se a ermida do Restelo para onde os casapianos iam estudar.

Muitos gansos conhecidos passaram pela Casa Pia, como Luz Soriano, o historiador e político que hoje dá nome à biblioteca museu, Clemente José dos Santos (Barão de São Clemente), taquígrafo e professor, Francisco dos Santos, pintor e escultor que esculpiu a estátua do Marquês de Pombal e António do Couto, o arquiteto que projetou essa mesma estátua.
Estes dois últimos foram também jogadores de futebol que, depois de jogarem pelo Real Casa Pia, acabaram no Sporting (António do Couto ainda passou pelo Benfica). E a estátua por eles criada é para onde, curiosamente, acorrem os adeptos do futebol nos dias de vitória.
Mas há um outro nome de um casapiano cuja memória se encontra bem viva no estádio Pina Manique: Cândido de Oliveira. Numa sala ainda escondida da biblioteca museu Luz Soriano, guarda-se o instrumento onde Cândido de Oliveira escondia as suas escutas, dos tempos em que trabalhou como funcionário de correios, envolvendo-se com uma organização de espionagem inglesa. Uma façanha que o levou a inaugurar o Tarrafal, por onde também passaram os casapianos Joaquim Ribeiro e Augusto da Costa Valdez.


Mais tarde, em 1945, já saído do Tarrafal, o futebolista fundou o jornal desportivo A Bola com António Ribeiro Reis, seguindo-se a tradição casapiana do desporto jornalístico, que levara à criação da revista Football, que nos anos 1920 tinha já um lema bastante progressista: “Serão ditos o bem e o mal, o bem sem adulação, o mal sem azedume, e tudo sem parcialidade”.
Tudo isto são memórias do Casa Pia Atlético Clube e da Casa Pia. Memórias pelas quais Hélder gosta de se demorar, que não são dele, mas que são de muitos que conheceu ao longo dos anos. Talvez por isso é que está aqui, na direção do clube, desde 1978: pela memória. E pelo futebol, claro. Principalmente agora, que os gansos estão de volta ao ataque.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Boa tarde.
Como ex aluno da Casa Pia, foi a melhor reportagem que li. A história da instituição, a do clube e dos intervenientes. 5 estrelas
Como ex-aluno da Casa Pia, lembrei-me dos bons momentos que passei no Pina Manique. Como história a Casa Pia é muito riquíssima desde 1780. O meu bem haja à Casa Pia de Lisboa e ao nosso Clube. Assina: Raposo.
Sou lisboeta de origem, nascido na freguesia do Beato, muito perto do colégio da Casa Pia em Xabregas e sempre admirei o porte e a disciplina dos rapazes da Instituição que conheci. Aliás, no meu tempo e no meu bairro era vulgar ouvir muito boas referências à educação/instrução que ali era prestada.
Agora que o Casa Pia Atlético Clube voltou à 1ª divisão do futebol em Portugal, levando primorosamente o nome da Instituição aos quatro cantos do país, desejo que continuem o bom caminho, alcançando as vitórias esperadas e dando alegria aos que se afirmam (mesmo não sendo) “Casapianos”, os Gansos de Portugal . Boa Sorte, Casa Pia.
Eu ex-aluno 8674, declaro que é sempre com prazer que leio historias relativas a Casa Pia de Lisboa.