Após dois anos de pausa forçada, as Festas Populares estão de volta e a expetativa de celebração vem em dobro.

É hora de as pessoas e a alegria ocuparem as ruas, em alguns bairros em mais de 30 dias de festa, e a Mensagem passeou por Lisboa para contar a história de quatro arraiais que ganharam fama não só pela tradição, mas também pela animação, programação e outras curiosidades.

Em Alfama, a marcha tem dois arraiais

Praticamente sinónimo das Festas Populares, é justamente em Alfama onde estão a primeira e a mais vitoriosa das marchas de Lisboa, a Marcha de Alfama. O tom curioso é que a história da grande campeã é dividida entre duas coletividades, a Sociedade Boa União e o Centro Cultural Doutor Magalhães Lima, o que torna possível festejar a mesma marcha em dois arraiais.

As decorações para os arraiais das Festas de Lisboa já estão prontas em frente à marcha no Largo do Salvador, na sede do Centro Cultural Magalhães Lima. Foto: Ines Leote.

Fundada em 1872, a Boa União orgulha-se de ser responsável por criar a Marcha de Alfama, a primeira de Lisboa, vencedora de 21 edições (e 14 vice-campeonatos) do concurso que se realiza desde 1932. A partir de 1983, porém, os desfiles no mais castiço dos bairros lisboeta mudou de organização e subiu as escadinhas, do Beco das Cruzes para o Largo do Salvador, onde está o Centro Cultural Magalhães Lima.

O atual presidente do Magalhães Lima, Mário Rocha, o “Tó”, acompanhou a transição de uma coletividade para outra, provocada pelo desinteresse dos vizinhos da Boa União de seguirem com a marcha. Coube então a uma das mais novas associações de Alfama, fundada em 1975 e sediada em parte das estruturas do antigo Mosteiro do Salvador, manter a tradição. E fê-lo com estilo: em menos de 40 anos, foram 18 títulos.

Mário Rocha, presidente do Magalhães Lima: especialidades do arraial são as bifanas e os “cachorrinhos”. Foto: Ines Leote.

O arraial do Magalhães Lima já está praticamente pronto para abrir os festejos no próximo dia 4 de junho, devidamente decorado e com as bancas distribuídas pelo Largo do Salvador. Já foram encomendados 99 barris de cerveja, cerca de 5 mil litros, contudo, ao contrário do que acontece na maioria dos arraiais, as sardinhas não estão na ementa. “As especialidades são os cachorrinhos e as bifanas”, diz Tó.

Quem não abre mão da sardinha é o Boa União. Basta descer poucos metros até ao Largo do Prior, onde a coletividade orrganiza o seu arraial, num simpático terraço com vista para Alfama.

A grelha estará sob o comando de Rui Teixeira, 70 anos, todos vividos no bairro, literalmente um vizinho de porta da sede da coletividade onde trabalha, aberta nos festejos aos cerca de 600 associados que desejem descansar um pouco as pernas e refrescar-se com uma cerveja em promoção para os sócios.

Apesar de não sediar mais a Marcha de Alfama, Rui garante que a torcida de todos no Boa União é para que o título – a última edição, antes da pandemia foi vencida pelo Alto do Pina – regresse ao bairro. Essa é também a expetativa da organização do Magalhães Lima que, como manda o figurino, guarda a sete-chaves o tema do desfile.

O que ninguém esconde, mesmo, é a felicidade de poder voltar à alegria dos Santos Populares e a certeza de que a euforia – independente da conquista ou não do vigésimo-segundo título – tem dois destinos, nos arraiais que, juntos, contam a história da maior das campeãs de Lisboa. É festa em dose-dupla.

Na Madragoa, entre pescadores e varinas

No bairro da Madragoa, os dois anos de paragem devido à pandemia fizeram a diferença para as emoções que o bairro vive agora na preparação para as Marchas Populares. “O que se vive neste momento é algo que há muito tempo não se via na Madragoa”, diz João Medeiros, ensaiador e membro da comissão organizadora da Marcha deste bairro, no Esperança Atlético Clube.

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Mariana Peres e João Medeiros ensaiando os passos para o regresso das Festas de Lisboa à Madragoa. Foto: Rita Ansone.

Entusiasmo, profissionalismo, rigor e amor são as palavras que o jovem de 29 anos encontra para descrever o ambiente de todos os envolvidos na marcha do bairro, a primeira campeã no primeiro desfile na Liberdade, em 1932, e a segunda maior vencedora de sempre, com nove títulos.

O interregno dos últimos dois anos permitiu que o bairro reforçasse o espírito de união que muitos bairros lisboetas têm vindo a perder. “A marcha é como uma bandeira para o bairro. Aliás, as marchas de Lisboa são uma bandeira de identidade e muitos bairros têm vindo a perder isso devido ao desaparecimento das coletividades e do desporto”, afirma João, reforçando que na Madragoa o clube de futsal ainda resiste.

Desta forma, a marcha é um dos momentos que mantém o bairro unido. “Isto é muito forte, são as tradições e as corres do bairro. A marcha da Madragoa ainda é o elo de toda a população que vive cá”, afirma Mariana Peres, parceira de João na composição das marchas de Madragoa.

Mas nem só para quem é do bairro, pois basta ter o coração posto na Madragoa. “O nosso compositor não é filho do bairro, mas começou a vir aqui, ganhou amigos e um amor tremendo pela Madragoa”, explica Mariana.  Um sentimento representado no boom de marchantes inscritos para terem uma oportunidade de descer a Liberdade pela coletividade.

O Arraial da Madragoa espalha-se pela Rua da Esperança e tem o seu epicentro na sede do Esperança Atlético Clube, ao pé do Museu da Marioneta. Um espaço acolhedor, mas longe de ser conhecido como um dos maiores de Lisboa, o que explica a corrida para garantir os bilhetes para as noites de festa.

E uma vez na Madragoa, não se espante se deparar com pescadores e varinas pelas ruas durante as Festas Populares. “A Madragoa é bairro de origem piscatória, porque no passado grande parte da população veio da zona de Aveiro ou de Ovar (as mulheres ovarinas renderam a derivação do termo varinas). Estabeleceram-se aqui, criaram famílias e há gerações que foram passando até hoje e que continuam a viver aqui”, explica Mariana. 

Em Âlcantara, no maior arraial de Lisboa

É sob a sombra da ponte 25 de Abril e com o Tejo como vista que se festeja os Santos Populares em Alcântara, num dos maiores – se não o maior – arraiais de Lisboa, organizado pela Academia de Santo Amaro (ASA).

Uma associação bem peculiar, gerida com organização militar pelo antigo sargento-chefe da Cavalaria, António França, 56 anos, 36 como associado da ASA. Peculiar porque, em vez de uma marcha – como tantos arraiais –, a Academia de Santo Amaro orgulha-se de ser o único arraial a ter um teatro de revistas.

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António França, presidente da Associação Academia de Santo Amaro, e o seu braço direito, Nuno Almeida: 30 dias de festa e arraial. Foto: Inês Leote

O início do arraial da ASA, no dia 3, coincide com mais uma apresentação da nova produção, Ó (V)IVA do Costa. A tradição do teatro de revista é tão forte que o espetáculo não pode parar nem durante as Festas Populares e é o grande responsável para que, às sextas, as músicas só comecem a tocar após as cortinas se fecharem.

Em compensação, não há limites na extensa programação do arraial, que segue até o dia 26 de junho e emenda com a celebração da não menos tradicional Romaria de Santo amaro (de 28 de junho a 2 de julho), o que garante 30 dias de intensa movimentação na espaçosa sede da Academia de Santo Amaro, com cerca de um hectare de área.

“Na última edição, em 2019, na véspera de Santo António já passava da meia-noite e a fila para comprar cerveja saía pelo portão, dobrava a esquina e perdia-se de vista”, conta António França, a façanha confirmada pelo seu braço-direito, Nuno Almeida, afamado por ser o maior assador de sardinhas de Lisboa: num dos anos, chegou a testemunhar a passagem de uma tonelada e meia do pescado pelos grelhadores da ASA.

Lá em Alcântara, os números são sempre assim, em grande escala. Para encarar a demanda das Festas Populares, o antigo sargento-chefe montou uma estratégia de guerra: são cerca de 40 pessoas a revezarem-se pelo espaço para dar conta dos milhares de frequentadores, sedentos para o reencontro com os festejos. Para não decepcionar, António França reservou o arsenal etílico de 20 a 30 barris de cerveja… por dia.

A programação musical, para além da aparelhagem mecânica, prevê seis noites com apresentações ao-vivo no palco em frente às cerca de 40 mesas. Se a intenção é curtir um arraial de Lisboa à grande, então já sabe, basta alistar-se aos animados recrutas do sargento-chefe António França, que promete colocar todos a marchar, mesmo sem uma marcha por perto.

Na Bica, onde o ano maya começa com o arraial

No Largo São Antoninho, os anos não são vividos à espera do Natal ou da Páscoa, mas antes na expectativa da festarola dos santos. “O ano maya começa com o arraial”, diz Carlos Teixeira, o homem que este ano assume as rédeas da festa.

Carlos é morador da Bica desde sempre. Foi aqui que conheceu a mulher e é aqui que passa os dias. É dono do bar da Bica e membro da associação recreativa Cardinal Boémio. As suas memórias do lugar onde sempre viveu devem-se muito a este arraial: “Era sempre muita animação”, conta. “Quando se recorda um ano na Bica, recordam-se os Santos”.

Antes da covid, este arraial emblemático era organizado por uma outra associação, a Zip/Zip, que entretanto deixou de existir. Mas o que seria deste bairro sem a festa mais vibrante do ano? A tradição não podia morrer, e, por isso, a Cardinal Boémio veio recuperá-la no ano em que a festa regressa em força à cidade.

“Nesta dinâmica de não deixar morrer o arraial, agarrámo-lo e vamos fazê-lo ainda mais fresco”. O que significa isso? Bem, Carlos diz mesmo que não vai haver a repetição do “apita o comboio”, mas antes uma programação eclética que apele a quem vem de fora mas também aos moradores: música ambiente ao final da tarde, concertos às 22h e fados aos domingos.

Mas, mais importante, a festa vai homenagear as figuras mais conhecidas do bairro. No Largo de Santo Antoninho, um grande estendal será o expositor de fotografias das “pessoas que fazem o bairro”. “Para que se perceba que há vida”, explica.

Tudo isto, claro, acompanhado de uma cerveja ou até mesmo de um sofisticado cocktail. O anfitrião apenas lamenta que os apoios financeiros não sejam suficientes para tudo, mas a parte positiva é “a animação, a festa, as luzes”.


A cobertura das Festas de Lisboa, na Mensagem, é apoiada pela cerveja oficial.

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3 Comentários

  1. Boa tarde,

    O museu na rua da esperança é da marioneta e na coleção têm os mamulengos, marionetas do nordeste brasileiro.
    Obrigado

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