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Era uma vez João e Mariana, dois jovens da Madragoa que, saudosos das marchas populares, pensaram em matar as saudades da mais tradicional expressão cultural lisboeta, interrompida pela pandemia, com o impulso da criatividade e a ajuda das redes sociais.
A história ganhou vida há poucos meses no vlog Toc’a Marchar, uma volta a Lisboa através de visitas às coletividades da cidade que, mesmo impedidas de desfilarem, mantêm vivíssimo o amor pela marcha.

Um amor que Mariana Peres e João Medeiros, 28 e 29 anos, conhecem muito bem.
Amigos desde quando a memória alcança, dos tempos de vizinhos de porta na Madragoa e das aulas no Liceu de Passos Manuel, foram apresentados aos ensaios da marcha ainda na infância ou até mesmo antes disso. “Há fotografias da minha mãe a ir aos ensaios comigo na barriga. Já nasci com o bichinho da marcha”, diz João.
Com Mariana, não foi muito diferente. “Aos 3 anos já ia aos ensaios no Esperança Atlético Clube. Se a minha mãe não me levasse, fazia birra. Na Madragoa é assim, depois de andar, a primeira coisa que uma criança aprende é dançar o vira”, afirma, orgulhosa da dedicação materna à tradição lisboeta. “Entre 1992 e 2005, ela só não marchou em 93 e 98, quando estava grávida de mim e da minha irmã.”
Uma trajetória que explica como os dois jovens da Madragoa conseguiram manter acesa a chama das Marchas de Lisboa, mesmo com o longo inverno da pandemia.
Quando o sol beija a lua, a Madragoa sai à rua
Mariana e João estrearam-se na Liberdade praticamente ao mesmo tempo – ele, em 2007 e ela, em 2008 – e, desde então, as marchas são parte integrante da vida dos dois jovens. Ao ponto de, em 2017, decidirem largar tudo para fazerem parte, em regime de dedicação exclusiva, da direção do Esperança, a coletividade responsável por levar a Madragoa para a avenida.



“Já participávamos em pequenas colaborações, mas, pela primeira vez, estava nas nossas mãos a marcha do princípio ao fim”, lembra Mariana. Do “princípio ao fim” entenda-se a ementa completa de um desfile, do figurino à coreografia, passando pela cenografia, composição musical e letra. Todas as áreas estão sob a responsabilidade de um profissional contratado e supervisionado pela comissão organizadora. Naquele ano, entretanto, uma das letras a ser cantada na avenida seria assinada pelos dois.
A aventura da dupla como letristas da marcha iniciou-se ainda em 2016, quando os começaram a escrever uma letra a quatro mãos através do… Facebook.
A aventura da dupla como letristas da marcha iniciou-se ainda em 2016, quando os começaram a escrever uma letra a quatro mãos através do… Facebook. “Passávamos o dia juntos e quando íamos para casa ainda conversávamos pelo Messenger. Numa noite, às três da madrugada, enviei uma quadra para a Mariana, que me respondeu com outra e seguimos assim até estar pronta”, recorda-se João.

A composição, entretanto, passou um ano guardada na memória do computador, até que em 2017, acabou apresentada ao júri responsável pela escolha das marchas da Madragoa. “Em cada desfile, as coletividades costumam cantar quatro marchas, a oficial da Marcha de Lisboa do ano, uma marcha histórica da coletividade e duas inéditas. Neste ano, uma dessas duas inéditas foi a nossa”, explica Mariana. E assim, na avenida ouviu-se o refrão de A Alma de uma varina: “Esta rapariga/que tanto apregoa/diz toda a cantiga/é varina Madragoa”

A estreia como autores na Liberdade, entretanto, não foi propriamente um sucesso. Na escala de pontuação até 20, a Madragoa amargou um 11 no quesito letra. “Foi uma frustração. É claro que havia o facto de sermos dois miúdos desconhecidos, sem estudos superiores nem nome na praça, mas pesou também não ter havido uma sintonia da nossa marcha com a outra”, contextualiza João.
Independentemente das razões, ambos acreditavam que a avaliação negativa representava o fim da aventura como letristas. Mas não para o diretor artístico do Esperança, Bruno Vidal, que apostou no talento da dupla e insistiu para que os dois assinassem a letra em 2018, desta vez, as duas inéditas, o que garantiria a sintonia que faltara no ano anterior.
A responsabilidade exigiu que Mariana e João trocassem o chat do Facebook pelo tradicional lápis e papel. Enfornados no pequeno escritório do Esperança, só iam ao computador para eventuais consultas semânticas no Google. “Digitávamos coisas do tipo: palavras que rimam com balão”, diverte-se João. E foi assim, a rimar “lua” com “rua”, que compuseram as letras Quando o sol beija a lua e Madragoa sai à rua que, juntas, batizaram o desfile da coletividade naquele ano.
O resultado? A nota 18 no quesito letra em 2018.
O Alto do Pina renasce das cinzas
Foi uma despedida para lá de honrosa para Mariana e João da direção do Esperança Atlético Clube, após o fim do mandato de dois anos. Uma despedida da coletividade sim, mas não das marchas. Pelo contrário. Como o diretor artístico Bruno Vidal também deixara a Madragoa, rumo ao Alto do Pina, foi a oportunidade de Mariana e João respirarem outros ares, outras marchas.

“Um certo dia, o Bruno Vidal procurou-nos e disse que não abria mão de escrevermos a letra da marcha para o Alto do Pina daquele ano”, conta Mariana. Para os dois jovens da Madragoa, o convite representava o desafio de abandonar o amado bairro e trabalhar para “a concorrência”, mas também era a oportunidade de deixarem de ser “dois miúdos sem nome na praça” para se transformarem em letristas profissionais. “Além do mais, escrever sobre o mesmo sítio acaba por nos limitar”, ressalta João.
Como o Alto do Pina vinha de uma má classificação no desfile anterior, o mote eleito para 2019 foi a “Fénix” e, baseados na mítica ave que renasce das cinzas, a dupla fez nascer as marchas A volta do Alto do Pina e Alto lá! com o Alto do Pina. Composições que não só ajudaram a coletividade a levantar o título como, juntas, receberam a nota máxima do júri: 20.
Inspirados na Fénix, a mítica ave que renasce das cinzas, a dupla fez nascer as marchas A volta do Alto do Pina e Alto lá! com o Alto do Pina.
A história de João e Mariana poderia ter um final feliz, não fosse a pandemia. O ano da vitória e da nota máxima foi também o último de desfiles em Lisboa, com a alegria paralisada pelo vírus em 2020 e 21. Mas quem nasceu com “o bichinho da marcha” não se deixa render. Após dois meses de junho consecutivos sem festividades, os velhos amigos decidiram que, se a marcha não ia até eles, eles iriam até as marchas.
Toca a Marchar!
Mariana e João decidiram inicialmente criar um perfil no Instagram dedicado ao assunto, o Toca a Marchar, com lives, sondagens, quizzes e stories. “Entretanto, percebemos que o público da marcha não estava no Insta e pensámos noutra solução”, explica João, justificando a opção pelo modelo de vlogs, com um canal homónimo no YouTube.
A primeira rubrica do canal foi chamada de Volta ao Bairro, que remonta a uma tradição das Marchas de Lisboa na qual cada coletividade é obrigada a desfilar pelas ruas do bairro antes de descer a Liberdade.
Na prática, munidos de um telemóvel e um selfie-stick, Mariana e João protagonizavam a tal volta por cada um dos bairros que tradicionalmente participam do desfile, com uma paragem especial na sede das coletividades para uma entrevista com um de seus representantes.
A receção não poderia ter sido melhor. “As pessoas aderiram imenso ao projeto, pois quem gosta da marcha estava com saudades de falar sobre o tema”, conta João. Para a dupla, foi a oportunidade de conhecer outras coletividades e também uma Lisboa que ainda era desconhecida mesmo para estes dois lisboetas da gema. “Foram diversas as vezes que nos perdemos”, reconhece Mariana.
O resultado do périplo está dividido em dez vídeos, em que entrevistam os organizadores das marchas e ainda passeiam pelas ruas do Castelo, Bica, Alfama, Bairro Alto, Alcântara, São Vicente, Carnide, Graça, Mouraria e, claro, Madragoa. Os programas compõem uma espécie de “primeira temporada” do Volta ao Bairro e que já tem uma segunda em fase em produção, com os outros dez bairros marchantes.
“A nossa intenção é ampliar o projeto nas redes sociais, como no caso do podcast”, conta Mariana. O episódio piloto do Toca a Marchar já está no Spotify e traz um pouco do resumo do que se lê nesta entrevista e também a experiência de ambos como letristas das marchas. “Pensámos ainda em outros programas em vídeo para o canal, sempre a convidar os responsáveis pelo desfile a trocarem memórias e experiências”, adianta João.
Certo é que o projeto Toca a Marchar veio para ficar e tem a pretensão de seguir mesmo após o aguardado retorno dos desfiles. É que quem ama as marchas faz questão de vivê-las os 365 dias do ano.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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