Diogo Varela Silva caminha tranquilo pelas tortuosas ruas da Mouraria, enquanto conversa e responde a mensagens no telemóvel. Transita entre a sombra das árvores e a luz dourada que vence os arvoredos, como no chiaroscuro tão caro ao cinema.
É o mesmo jogo, da sempre luminosa Lisboa e dos dias sombrios durante a pandemia, que se reflete no seu mais recente documentário, de 2021, Do Bairro, logo a partir dos primeiros segundos de filme, quando um sino de uma igreja anuncia a aurora de mais um novo dia de confinamento nos bairros típicos de uma cidade sitiada pelo vírus, as vielas desertas – “fantasmagóricas” como gosta de frisar o cineasta – cruzadas apenas pelas motas dos estafetas da Uber.
É o regresso de Diogo Varela Silva à Mouraria e a Alfama, bairros por onde andou noutros tempos e outros humores, a acompanhar a avó – a fadista Celeste Rodrigues – a cantar nas casas de fados, com as mesas apinhadas de pessoas e as ruas cheias de gente e de vida. E onde mora, num pátio antigo.
A pandemia foi o leitmotiv de Do Bairro, mas a ideia de retratar o fim de um ciclo já rondava a cabeça de Diogo Varela Silva, disposto a registar os últimos dias da cultura do bairrismo, tendo as coletividades como estrutura nuclear, substituída paulatinamente pelo silêncio da falta de diálogo entre as diversas culturas que habitam a Mouraria e a pressão imobiliária e turística que emudece Alfama. E se ele conhece bem esse ambiente.
Um registo tão silencioso que o fado – omnipresente quando se trata de Alfama e da Mouraria – raramente se ouve, e, quando aparece, em fundo, é como banda sonora acidental, roubada a um rádio ou outro da casa de um morador. Contudo, um silêncio eloquente, que fala por si só e ajuda a contar a história recentíssima dos dois bairros e de Lisboa.
“Alfama está cada vez mais despida: está tudo muito bonito, pintadinho, mas falta a alma”
Diogo Varela Silva
Após cumprir a digressão em circuitos de festivais, entre eles o Doclisboa, Do Bairro estreia-se no Cinema City Alvalade, a 26 de maio, numa sessão que contará com a presença de Diogo Varela Silva, que adianta nesta entrevista à Mensagem o que o levou a filmar as grandes mudanças desta nova Lisboa.
Como surgiu Do Bairro?
A ideia do filme já me rondava há uns cinco anos, queria contar como estes bairros típicos, a Mouraria e Alfama, estavam a transformar-se com as mudanças em Lisboa, com o turismo e a imigração. A pandemia só tornou a abordagem do tema mais urgente e levou-me a realizá-lo, para perceber as grandes mudanças que há entre o que conhecíamos e o que é, as alterações nas várias formas do que é viver o bairrismo antigo, que está a desaparecer, a ser transformado noutra coisa.
O resultado do trabalho é o que esperava?
Os documentários têm aquela coisa de nunca estarem feitos até acabar a montagem. Na prática, é durante o processo de montagem que ganham a forma final. É uma coisa que vamos mexendo, vamos trabalhando e também vamos reagindo àquilo que estamos a captar e a obter nos sítios, o que não acontece tanto na ficção. Aqui não há um guião. Temos várias ideias sobre o que queremos tratar, mas é sempre permeável ao que os bairros nos dão e, portanto, há uma adaptação e um reagir a esse processo todo. No fim, fiquei satisfeito.
E os bairros foram generosos?
Foram. Felizmente, tenho essa ligação com os bairros e com as pessoas dos bairros. Calculo que não seja fácil filmar um documentário na Mouraria e em Alfama se não se conhecer quem vive lá, porque não há a disponibilidade nem a abertura das pessoas para estarem a ser retratadas. No fundo, estás a interferir na privacidade delas.

Como foi filmar durante a pandemia?
A logística é sempre mais complicada, com a questão das máscaras, da limitação das pessoas que poderiam estar num espaço público, mas fez-se. É claro que a cidade era um cenário ideal para abordar o tema da pandemia, vazia, com um lado todo fantasmagórico. Neste aspeto, acabou por ser ela própria um cenário e ajudar o trabalho do Guilherme Daniel, responsável pela fotografia do filme.
A rodagem foi durante a parte mais crítica da pandemia. Houve algum momento dramático?
O filme é dedicado a uma das pessoas que entrevistámos, o Afonso, que foi vítima de covid, já após as rodagens, durante a pós-produção. Quer dizer, foi vítima da realidade com que nos estávamos a deparar, dia a dia, nos bairros e, consequentemente, no filme. É por isso que lhe é dedicado. O Afonso era uma personagem muito querida aqui da Mouraria, alguém que vivia o bairro intensamente e tinha as suas ideias sobre como isso poderia evoluir para uma nova forma de bairrismo, com a integração dos imigrantes que chegam ao bairro. Há muitas culturas aqui representadas e há uma sensação de que não se integram, de que não há diálogo e a verdade é que não há mesmo, ou há pouco. Acredito que a solução passa por estabelecer pontes para que exista este diálogo entre as várias comunidades a viverem aqui na Mouraria.
E em Alfama?
O problema de Alfama é diferente, é a gentrificação. Alfama tem muito a ver com o alojamento local e terem corrido com as pessoas do bairro. E, durante a pandemia, o que aconteceu é que não havia turistas e não havia locais, e vivia-se ali uma situação de um bairro no centro da cidade estar completamente vazio. Alfama está cada vez mais despida: está tudo muito bonito, pintadinho, mas falta a alma.

E como foi filmar um lado fantasmagórico de Lisboa, uma cidade conhecida pela sua luz?
O bonito no cinema é o chiaroscuro e a Mouraria e Alfama têm isso, por serem bairros muitos fechados, com as ruas estreitas, o que lhes dá uma beleza quase geométrica das sombras, toda uma geometria à volta da luz que a mim me interessa imenso de captar. Não é por acaso que praticamente toda a minha filmografia é em Lisboa. Procuro perceber como é que se operam essas mudanças na cidade, o que é que levou a isso, o que está por detrás, o que pode vir a ser. E este filme deixa a abertura para se pensar um bocadinho sobre essas questões.
Num filme na Mouraria e em Alfama, durante um período sombrio, o fado é a melhor banda sonora?

Há uma certa preguiça em perceber o fado como algo triste. O fado é destino e o destino não tem que ser triste nem saudosista, antes pelo contrário. Se vais aos corridos e aos fados da Mouraria, há muita coisa mais animada. Mas, se o fado é destino e durante muitos anos o nosso destino não era assim tão animador, é natural a associação, pois quarenta e tal anos em ditadura não anima muito. Mas, atualmente, o fado é a coisa mais punk que pode haver, principalmente o que está a ser feito agora. Penso que qualquer música se encaixava bem durante a pandemia, pois a música serve para acalmar os ânimos e é do que estávamos a precisar.
E já há um novo projeto?
Sim, estou a trabalhar num documentário sobre João Aires, um pintor português que viveu muitos anos em Moçambique e lá fez grande parte da carreira. Um artista que foi amigo do Candido Portinari e do Oscar Niemeyer, no Brasil, expôs na Bienal de São Paulo, mas é muito pouco conhecido cá, apesar de ser um dos pintores que está na coleção da Gulbenkian, por exemplo. Ele teria completado cem anos agora e o filme é um bocado à volta dele.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Foram momentos passados muito desolantes por todo o país. Notando-se mais em zonas onde era costume haver multidões…
Que faça já parte da história!