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Nos últimos meses, os tipos móveis na velha prensa Minerva da tipografia na rés-do-chão de um prédio na Penha de França trocaram a impressão de poemas pelo pedido de S.O.S. A mensagem em caixa-alta descreve a dura realidade de uma instituição que representa um ofício com passado nobre, presente artístico e futuro incerto.
Misto de associação, escola de artes gráficas e guardiã da memória da arte tipográfica, a Oficina do Cego ironicamente leu nas linhas da carta enviada pelo senhorio a sina de que o lugar onde está desde 2012, na Rua Sabino de Sousa, já não estará disponível a partir de julho, o que pode representar o fim em definitivo das atividades.

“O aviso legal do fim do contrato foi a segunda bomba a explodir nas minhas mãos num ano”, diz o professor de artes gráficas Nuno Ramos, presidente da direção da associação desde maio de 2021. Um tipo de sorriso fácil e ar pacífico apanhado no fogo-cruzado entre a artilharia da pandemia e o bombardeio da especulação imobiliária.
“Somos parte de um corredor de pequenos negócios e estúdios dedicados às artes gráficas e ao design na Penha de França.”
Nuno Ramos
Associação sem fins lucrativos, a Oficina do Cego vive das quotas anuais pagas pelos cerca de cem sócios e das propinas dos cursos e workshops oferecidos. Os sucessivos confinamentos entre 2020 e 2021, porém, comprometeram a saúde financeira da instituição, que sobreviveu graças à teimosia de alguns dos professores.
“O encerramento esteve em cima da mesa. Houve quem desistisse, a dizer que não dava mais para continuar. Foi só diante do risco de definitivamente fechar que decidi assumir a direção”, continua Nuno. “Com um esforço brutal, conseguimos evitar o pior e estabilizar as contas. E depois chega a notícia do risco de perder a sede…”

Desde o aviso, em fevereiro, Nuno procura por um novo espaço no bairro. “Fazemos parte de um corredor de pequenos negócios e estúdios dedicados às artes gráficas e ao design na Penha de França. Não gostaríamos de quebrar essa sinergia nem de sair da zona, o que só aconteceria caso fosse a única alternativa ao fecho de portas”, diz.
Nuno revela que já houve sondagens para que a Oficina do Cego se mudasse para outras freguesias, incluindo na vizinha Graça. Mas prefere acreditar no esforço da Junta de Freguesia da Penha de França e da comunidade para que o bairro continue a abrigar um espaço dedicado à memória de uma arte que luta contra o esquecimento.
Uma arte quase esquecida
Nascido no Barreiro há 48 anos, Nuno Ramos estudou Design e Tecnologia das Artes Gráficas no Instituto Politécnico de Tomar. Viveu ainda em Castelo Branco e Guimarães, antes de decidir morar em Lisboa, há seis anos, onde desde então divide as aulas na Escola Artística António Arroio com as atividades da Oficina do Cego.



A recente vida em Lisboa exigiu do docente, cujo pai “até hoje não sabe exatamente o que o filho faz”, uma rigorosa disciplina financeira. “Sempre que digo ao meu pai que sou professor de artes gráficas, ele só percebe a parte do professor”, diverte-se. “Houve uma vez que ele até me perguntou se dava aulas a cegos”.
Nuno sabe que manter-se em Lisboa é difícil tanto para o professor como para a associação. “Quando me reuni com a Junta de Freguesia de Penha de França, perguntaram o porquê das nossas dificuldades. Respondi-lhe que não é um privilégio da Oficina do Cego. Eu próprio, como professor, só estou em Lisboa porque divido a renda com a minha mulher. Caso contrário, seria impossível.”
“A opção de fechar vai partir-me o coração, mas é uma realidade, se não encontrarmos um novo espaço que comporte os nossos limites, físicos e de orçamento.”
Nuno Ramos
As conversas com a Junta de Freguesia aconteceram até agora em dois momentos, na sede da junta e na própria Oficina do Cego. “Deixei claro que a opção de fechar vai partir-me o coração, mas é uma realidade, se não encontrarmos um novo espaço que comporte os nossos limites, físicos e de orçamento”, explica.
Nuno explica que precisa de, no mínimo, 70 metros quadrados de área para comportar as bancadas e as pesadas máquinas forjadas em ferro fundido. Com um detalhe: “Pelo porte da maquinaria, com mais de uma tonelada, é obrigatório que seja um rés-do-chão pois, caso contrário, o peso pode comprometer o piso”, diz.
O contrato, que termina em julho deste ano, compromete cerca de 500 euros do orçamento da associação. Um valor que já não condiz com as rendas normalmente cobradas em Lisboa. “Penha de França talvez seja um dos últimos bairros lisboeta ainda pouco gentrificados. Mesmo assim, os valores já começaram a subir bastante”, esclarece.

A equação metros-quadrados por euros de renda tem sido o maior entrave para um final feliz. “Nenhum de nós vive disto, mas sim do salário de professor. E se não podemos pôr dinheiro na associação é simplesmente porque não o temos”, lamenta Nuno, que acompanha sem nada poder fazer o entra e sai de interessados no espaço.
“Já há uma imobiliária a tratar do futuro inquilino. O curioso é que o apartamento foi pensado para ser uma oficina e não uma residência. Não há janelas, apenas frestas de ventilação no alto das paredes, uma montra de vidro e uma pequena casa de banho. Mesmo assim, as pessoas garantem que pretendem morar aqui”, diz Nuno.
Um ofício impresso na história de Portugal
O nome Oficina do Cego é uma homenagem a uma antiga tipografia real do século XVII que funcionou no Arco do Cego, famosa pela qualidade da produção. “Durou pouco, mas fez livros excelentes”, explica o atual diretor. Um esmero que os atuais tipógrafos se esforçam por reproduzir, num regime de produção bastante democrático.

“A associação tem como objetivo manter vivas as técnicas das artes gráficas. Já não há muita gente a ensiná-las e as máquinas que resistiram ao tempo são hoje partidas aos pedaços e vendidas a peso. A nossa missão é preservar essa arqueologia industrial e transmitir o ofício na prática a novas gerações”, explica o diretor da associação, fundada em 2009.
Além de fonte de renda, os cursos e workshops server para que os interessados em utilizar os serviços da tipografia aprendam as técnicas e produzam o próprio material. “Não aceitamos encomendas para imprimir cartazes ou livros. Mas se alguém estiver na disposição de sujar as mãos de tinta para ajudar a fazê-los, será bem-vindo”, explica.
Este espírito colaborativo em torno de um ofício com passado nobre e estatuto de arte é a amálgama a unir os cerca de cem atuais sócios da Oficina do Cego que, juntos, produzem os seus trabalhos e os dos demais, impressos em livros, cartazes, postais e outros objetos gráficos, além de colaborarem com a transmissão das técnicas gráficas.



A cultura do it yourself transcende as atividades gráficas e as pequenas e grandes reparações na maquinaria e na estrutura são feitos pelos próprios sócios. Com ou sem experiência no ramo. “Outro dia, alguém comentou que a canalização da oficina estava sempre a entupir, e alguém se lembrou que o serviço original foi feito por um… historiador”, recorda, sobre a peculiar contribuição de um dos associados.
Para perpetuar na história os ensinamentos do ofício, uma das formas mais eficazes são os workshops, muitos realizados fora dos limites da oficina, encomendados por entidades como a EMEL ou a Câmara Municipal de Lisboa, mas também pelo setor privado. O último realizou-se no 25 de Abril, nos jardins da residência oficial do primeiro-ministro.
“Foram duas atividades, a de postais e cartazes tipográficos alusivos ao 25 de Abril, ambas abertas ao público”, explica Nuno Ramos, que viu na ocasião mais uma oportunidade de sensibilizar o público para a importância de preservar a memória de uma arte que durante a ditadura lutou lado a lado com os portugueses pela democracia.

“Antes do 25 de Abril, havia inclusive as tipografias portáteis, uma espécie de kit de impressão móvel, dentro de uma mala, onde era possível se imprimir panfletos de forma silenciosa e praticamente em qualquer lugar”, explica Nuno, sobre o passado subversivo recente de uma técnica que acompanhou a história de Portugal desde a monarquia.
Gigantes com corpo de ferro, sangue em forma de tinta e alma de papel que durante o século XX difundiram os ideias democráticos em tipografias clandestinas, colaborando para imprimir um capítulo novo na história de Portugal e que agora precisam dos portugueses para virar a página deste momento difícil de sua própria história.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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