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A senhora de vestido preto espera na porta do Rei do Bacalhu, apesar da manhã fria na Rua do Arsenal. Ajusta o casaquinho nos ombros e volta a apoiar as mãos com os dedos entrecruzados no peito. “O patrão já vem”, garante o funcionário de avental castanho.
E vem mesmo.
Fernando Dias surge da portinhola lateral junto ao balcão e faz surgir também o sorriso de alívio no rosto vincado da cliente, que se enche de coragem para finalmente entrar na loja.
“O marido comprou connosco durante anos”, conta o patrão, enquanto força a guilhotina e corta ao meio a posta de bacalhau. “Após a morte dele, foi ela quem passou a fazer as compras, mas apenas comigo. Hoje, esteve mais de vinte minutos à minha espera”, explica, sem olhar para os lados, atento ao mecânico sobe e desce da afiada lâmina, a passar a poucos milímetros dos dedos. “Só confia em mim”, reforça.
A parábola resume a alma de um negócio que sobrevive da confiança. Houve um tempo, não muito distante, em que a Rua do Arsenal era a meca do bacalhau, em Lisboa. Onze lojas exibiam a iguaria nas montras e nove comercializavam exclusivamente o peixe pescado nas águas frias.
Entretanto, a lenta transformação da Baixa de zona comercial para turística mudou o cenário.
Hoje, as fachadas da rua exibem a sorte no Euromilhões, mas sobretudo souvenirs, o logotipo de um hotel, além de um enorme andaime que esconde mais um futuro alojamento turístico.

Apenas duas lojas, a Mercearia Pérola do Arsenal e o Rei do Bacalhau, resistiram à extinção e continuam a comercializar o peixe símbolo das ceias de Natal dos lisboetas. Mas a pressão sobre o tradicional negócio mantém-se grande.
Memórias de um marinheiro que não sabe nadar
“Só não me puseram os patins, porque consegui comprar o imóvel a tempo”, recorda Fernando Dias, limpando com um pano húmido a superfície do balcão. Foi em 2008, quando os senhorios dos prédios vizinhos começaram a despejar os antigos inquilinos e o dele ameaçou fazer o mesmo. O comerciante, porém, conseguiu exercer o direito de preferência e salvou os anéis, mas não os dedos.

Havia um segundo Rei do Bacalhau no canto oposto da Rua do Arsenal. Fazia parte da estratégia comercial do patrão, de fisgar os clientes pelos dois lados de entrada da via, antes de chegarem aos concorrentes. O estratagema da gentrificação, contudo, foi ainda mais agressivo e a filial gerida pelo cunhado não resistiu. “Hoje, estão lá umas camisolas do Cristiano Ronaldo penduradas na porta”, lamenta.
Um novo cliente entra na loja e a lâmina volta a subir e a descer, rente ao dedo do comerciante. Não há perigo. Esta tem sido a rotina diária de Fernando Dias, desde que largou a tropa em 1984 para trabalhar no Rei do Bacalhau, um negócio que abriu as portas em 1948 e desde os anos 1960 passou a ser da família Dias. Começou no ofício ali mesmo, por detrás daquela mesmíssima guilhotina e daí nasceu a intimidade.
“Tradicional ou em lombos?”, quer saber Fernando, segurando a guilhotina ao alto, como um carrasco na Bastilha. O cliente não hesita, prefere o segundo corte e a lâmina decepa os vértices da peça em forma triangular e depois retalha a parte central em filetes retangulares. Diferente do corte tradicional, onde o bacalhau é primeiro dividido ao meio, antes de ser recortado transversalmente em várias postas.
A transição entre a tropa e o balcão não foi difícil de percorrer. “Servi na Marinha, no outro lado da rua”, conta Fernando, apontando para o imenso prédio do Ministério do Mar que dá nome à rua. Nascido na Guarda há 56 anos, o antigo grumete atracou em Lisboa para fazer o serviço militar, porém a carreira naval desde o início não se augurava promissora. “Quer saber de algo caricato? Era marinheiro, mas não sabia nadar”, ri-se.
“É a melhor época do ano, sem dúvidas, mas antes vendíamos o dobro nos dias de Natal”
Fernando Dias, do Rei do Bacalhu
Agora, almirante do próprio negócio, Fernando Dias não perde tempo no leme do Rei do Bacalhau. Nos meses de dezembro, mais do que no período pascoal, a velha guilhotina opera sem sossego e retalha para lá de uma tonelada do pescado. “É a melhor época do ano, sem dúvidas, mas antes vendíamos o dobro nos dias de Natal”, diz. A mudança de rotina na Baixa de Lisboa parece ser o principal vilão.


“Antigamente, as pessoas trabalhavam aqui perto, saíam dos escritórios, compravam o bacalhau e iam para casa. Havia ainda os operários que apareciam durante o dia, levavam uma pequena posta já demolhada, faziam uma fogueira na obra e o almoço estava pronto. Mas eram outros tempos. Hoje, quem passa aqui à frente são só os turistas”, afirma.
Os clientes tradicionais ainda aparecem, é verdade, mas Fernando Dias queixa-se dos preços do parque na Praça do Município, para os que vêm de carro, que torna menos atrativo o preço do produto vendido. E garante que, no caso dele, a proibição da circulação de veículos na Rua do Arsenal parece também ter atrapalhado o negócio. “Ninguém vai andar no metro com um pacote debaixo do braço com cheiro a bacalhau”, explica.
O avançado que dribla o odor de peixe
É justamente para evitar que o forte cheiro se alastre nos transportes que António Lapa cobre os filetes de bacalhau numa camada de plástico aderente, antes de embrulhá-lo com o grosso papel pardo. O antigo avançado do Atlético de Lisboa, Desportivo Mafra e Oriental aprendeu a driblar os odores do peixe com dona Gina, a colega de balcão do Mercearia Pérola do Arsenal, a outra loja do ramo que ainda resiste na rua.


“É mais fácil passar por um central do que fazer um corte”, brinca Lapa, que pendurou as chuteiras em 2008, após uma época sem balançar as redes adversárias. Desde então, tem trocado de trabalho como trocou de clubes nos relvados. Aos 47 anos, defende agora a camisola da histórica loja de bacalhau, contratado há seis meses para substituir o antigo craque, Rui Bartolo, falecido recentemente.

A responsabilidade do jogador que hoje segura a peça de bacalhau como um troféu não o assusta. O cliente, estático como um jogador na barreira, observa Lapa fintar o cordel com os dedos, no engenhoso nó que termina numa alça para que se encaixe o indicador ao levar o embrulho para casa. A tática é mais um segredo repassado por Regina Rodrigues, a já citada dona Gina, misto de colega de campo e treinadora, há 18 anos atuando na liga das lojas de bacalhau da Baixa.
Gina começou a trabalhar na filial da mercearia, a poucos metros da matriz da Pérola do Arsenal. Assim como aconteceu com o Rei do Bacalhau, a segunda unidade não resistiu ao avanço da especulação imobiliária e hoje é uma das lojas encobertas pelos andaimes. “Vendíamos sobretudo charcutaria, mas também bacalhau e conservas. Fechou há três anos”, conta a vendedora.

A loja onde atualmente trabalha, fundada em 1952, ainda resiste, pois o prédio é propriedade do patrão. Gina não descarta a importância dos turistas. “Com exceção da Páscoa e do Natal, quando a maioria dos clientes é português, no resto do ano a clientela estrangeira garante metade das vendas”, diz.
No Rei do Bacalhau, os turistas também são uma fatia importante da receita, principalmente os franceses e os espanhóis. Estes últimos foram responsáveis, inclusive, pela criação de um novo tipo de apresentação do bacalhau, para além do corte tradicional ou em posta. “Não se sabe muito bem o porquê, mas em Espanha eles preferem o peixe cortado em cubinhos”, diz o vendedor Anselmo Couceiro.
Arsenal e as memórias explosivas de Lisboa
Outro mistério é o motivo pelo qual o comércio de bacalhau em Lisboa ter preferido instalar-se na Rua do Arsenal se a poucos metros, logo após o Arco da Rua Augusta, há uma Rua dos Bacalhoeiros. “Soube que se chamava Bacalhoeiros porque há muito tempo lá atracavam os navios carregados de bacalhau”, arrisca Fernando Dias. “É curioso, mesmo”, confessa Gina. “Nunca tinha pensado nisso.”

A história conta que a Rua dos Bacalhoeiros ganhou nome em 1859, substituindo a anterior Rua dos Confeiteiros. Ao que parece, havia uma pretensão do então Governo Civil de o comércio bacalhoeiro instalar-se ali, o que acabou por não acontecer. Hoje, bacalhau, por lá, apenas na ementa dos restaurantes que se espalham pela rua sem trânsito.
O Arsenal da Marinha testemunhou acontecimentos explosivos da história de Portugal, inclusive a morte de um rei
Atualmente, também não há um arsenal na Rua do Arsenal. Mas já houve. No século XVIII, era na ribeira das naus que a Marinha de Guerra portuguesa armazenava as munições. O Arsenal da Marinha foi destruído no terramoto, reconstruído e permaneceu no sítio até 1939, quando as operações – inclusive o estaleiro – foram transferidas para a Base do Alfeite, na Margem Sul.
Enquanto funcionou na Baixa, o Arsenal da Marinha testemunhou acontecimentos explosivos da história de Portugal, inclusive a morte de um rei, D. Carlos I, em 1908. Foi para o Arsenal da Marinha que foram levados o corpo do monarca e do seu herdeiro, Luís Filipe. A Rua do Arsenal também viu a consequência direta do regicídio: a República ser implantada a partir das varandas da Câmara Municipal de Lisboa.
Foi também na Rua do Arsenal que o capitão Salgueiro Maia, na manhã de 25 de Abril de 1974, recusou-se a render-se e avançou com as tropas revolucionárias em direção ao Largo do Carmo, para depor o presidente Marcello Caetano e pôr fim ao regime ditatorial, restabelecendo a democracia em Portugal.
A Rua do Arsenal hoje vive dias mais calmos, embora a proximidade do período de festas seja sinónimo do frenético entre e sai dos clientes nas suas lojas de bacalhau. A aparente paz não é quebrada nem quando o assunto é a melhor forma de preparo do pescado. “Prefiro à Gomes de Sá”, aponta Gina. Fernando Dias não entra em polémicas. “Outro dia, comprei nos CTT aqui ao lado um livro com mil receitas. A verdade é que o bacalhau fica bem de qualquer jeito maneira”, conclui, como bom lisboeta.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Alvaro, que texto bacana, qd fui a Lisboa em 2010, passeamos no centro e tinha uma loja que consertava brinquedos e vendia tb , que era um mergulho no tempo. Será que existe ainda? Abraço forte Breno