Agora, que a minha mãe está a poucos anos de se tornar centenária, volto com frequência à casa onde cresci. Lembro-me de que, quando a família se mudou para esse prédio de Lisboa, tinha eu seis anos, vivia no último andar o embaixador do Japão, que era muito simpático e perguntador e a quem, no elevador, o meu irmão e eu respondíamos invariavelmente com o mesmo sotaque com que ele se nos dirigia, o que nos provocava incontroláveis ataques de riso mal abríamos a porta e aterrávamos no nosso patamar.
Quando ele regressou ao Japão, o apartamento foi ocupado por um conhecido pediatra que se tornou um amigo (e o nosso médico, já agora) e que chegou a ir lá a casa pedir uns suspensórios emprestados – emagrecera e tinha as calças do smoking a cair – e tirar-me uma espinha da garganta com uma tesoura de bicos curvos num dia em que eu estava a almoçar carapaus com molho à espanhola (e foi tão rápido que eu ainda acabei o que tinha no prato).
Nos outros andares, tínhamos vizinhos com quem brincávamos, ou esperávamos a carrinha da escola, ou embirrávamos (um senhor que dizia sempre «o paizinho» e «a mãezinha»), ou ouvíamos tocar piano o dia todo (uma diva chamada Regina Quintanilha que depois foi viver para Itália). Mas, mesmo quando não os estimávamos por aí além, cumprimentávamo-los e sabíamos muito bem os seus nomes.

No prédio onde a minha mãe continua a morar, esses vizinhos de carne e osso foram substituídos por escritórios. As duas excepções são uma família que começou logo mal (com o suicídio de um senhor de idade, que se atirou da varanda de trás para um terraço que anos antes fora um infantário); e uns padres de saia até aos pés, entre os quais há um muito irritante que, enquanto reclama que está a pingar água lá em baixo, sacode nervosamente entre os dedos o comando de um BMW topo de gama (Opus Dei, esqueci-me de dizer).
No prédio para onde eu me mudei há muitos anos, os vizinhos também permanecem quase todos imateriais e desconhecidos: não só porque vêm e vão com uma rapidez avassaladora, incluindo um presidente de Câmara que por lá passou (e durante a crise económica o edifício ficou praticamente às moscas porque o senhorio resolveu aumentar as rendas aos inquilinos com contratos novos – não era, felizmente, o nosso caso); mas também porque, quiçá por não usarmos o elevador (moramos no primeiro andar), raramente nos cruzamos com alguém a quem possamos pedir um raminho de salsa, como faziam os vizinhos antigamente.
Além disso, também há escritórios, clínicas e empresas nos lugares onde em tempos se lavava roupa de crianças no tanque, se batiam tapetes à janela, se ficava na cama a convalescer de uma gripe e, aos domingos, se comia arroz-doce, farófias ou leite-creme.
O meu pai é que estava certo. Tinha escritório num prédio junto ao Parque Eduardo VII e, no andar por cima, ficava a sede da ANA (Aeroportos e Navegação Aérea). Um dia, a um senhor que entrou com ele no elevador e, hesitante sobre o piso para onde ia, lhe perguntou pela ANA, o meu pai respondeu:
– Vive no quinto. É a única mulher que está por cima de mim o dia todo e eu, desgraçadamente, não conheço.

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.
Extraordinária narrativa das vivências de uma vida.
Uma delícia, como tudo o que Maria do Rosário Pedreira escreve.
Texto fantástico. Como curiosidade suplementar refiro que a mãe da “diva”, também chamada Regina Quintanilha, foi a primeira advogada portuguesa.