• Nuno Saraiva

O que é que uma comissária europeia, vice-presidente da Comissão, uma cidadã checa, faz quando chega à Brasileira do Chiado, em Lisboa, depois de um dia inteiro de websummit e reuniões? Gaba os pastéis de nata, senta-se e pede um café forte. “Americano, por favor”, diz Věra Jourová, sem tocar no bolo que lhe é servido e justifica-se: “Já sou avó. Hoje fui avó!” Mais tarde haveria de pedir algo para brindar a este dia em que nasceu a sua primeira neta. Vinho do Porto – que mais?

Assista ao debate aqui.

Na sua cabeça estaria a sua neta, e também por ela, no seu discurso, no discurso de uma responsável da UE por algo tão importante por estes dias, valores e transparência, o centro do que seria o debate: cidadania.

Que melhor lugar para o fazer do que um café, A Brasileira do Chiado, centro do mundo intelectual do início do século XX em Lisboa, sede de um jornal local, no século XXI, e, no fundo, num dos sítios onde a ideia de uma Europa como hoje a conhecemos nasceu mesmo – nas tertúlias e conversas de café?

Věra Jourová esteve descontraída à mesa do café. Foto: Inês Leote

À conversa, de sala cheia, estiveram também Joana Mouta, da associação Passa Sabi e António Brito Guterres, da Fundação Aga Khan. O mote era “Cidades Europeias e os Media: histórias não contadas.” A plateia estava cheia de leitores da Mensagem, estudantes e muitos lisboetas com interesse na sua cidade. Além de urbanistas.

O cerne da questão: a participação cívica. O papel das cidades e dos media na democracia, a desinformação, a diversidade mas falta de pluralidade das cidades e os tão badalados algoritmos. A sala estava cheia, e a banda sonora da máquina de café levava para o cenário das tertúlias descontraídas. Věra Jourová alinhou.

Cidadã checa que viveu durante vinte e cinco anos num regime totalitário, a comissária serviu-se da sua experiência: “Foi enquanto trabalhava na Câmara Municipal como chefe-executiva que me apercebi da importância das cidades para que, de facto, se cumpra a democracia. Quando as pessoas vinham ter comigo e reivindicavam os seus problemas. E eu pensava, sim, eu sou uma ‘funcionária pública’, são eles que me pagam. Há potencial subaproveitado nas cidades, devia haver contacto da população com os seus representantes.”

A comissária começou a sua carreira no poder autárquico e falou da experiência. Foto: Inês Leote

O objetivo da Comissão Europeia? “Ajudar a dar poder às pessoas, não torná-las em peças manipuláveis da multidão”, resumiu Věra Jourová. “Esta ideia da multidão, é de certa forma manipuladora, deixámos de ser indivíduos.” Também por isso, a Comissária não deixou de referir vezes sem conta a sua luta contra a desinformação, no que está focadíssima, até por tudo o que ela envolve.

Relatou a sua frustrante conversa com Mark Zuckerberg, na qual garante que ele “garoto que começou numa garagem, queria ser rico e depressa se tornou na pessoa mais poderosa do mundo”, e as novas regras que, até ao final do mês a UE vai impor às plataformas, contra o microtargeting nas campanhas políticas, para “pôr ordem no mundo da publicidade política online. Temos de ir mais longe, além da Lei de Serviços Digitais que aprovámos no ao passado.

Os algoritmos tiveram lugar central na conversa, e Miguel Poiares Maduro sugeriu uma outra medida: que pudéssemos escolher qual o algoritmo que queremos que domine as nossas redes sociais. Não o do Facebook, mas, por exemplo, o do New York Times. “Porque são os algoritmos que continuam a polarizar as pessoas e a esfera pública”, explicou. De volta, Jurová, disse-lhe que um dia ia lembrar-se da primeira vez que falou disto em público: “Vou me lembrar que roubei esta ideia a um cidadão, na Brasileira!”

Miguel Poiares Maduro, na assistênicia, com os leitores da Mensagem. Sala cheia, na Brasileira. Foto: Inês Leote

“Os algoritmos fazem com que as pessoas se fechem nas suas bolhas. As pessoas depois vêm para o mundo real e veem que as pessoas discordam delas. Mas a democracia é a discórdia, é gritar, é barulho”, resume. “Não queremos acabar com os algoritmos, mas queremos que sejam mais transparentes”, concluiu. “É confortável para as forças políticas dividirem-nos, e vemos isso na prática. Para além disso, a esfera digital dos algoritmos permite a criação da ‘multidão’, que é fácil de manipular”.

Precisamente, Joana Mouta, trouxe a sua experiência do terreno, as vozes dos que muitas vezes “não estão nas salas onde as decisões são tomadas”, e que são os que mais sofrem com a desinformação porque são alvo de desconhecimento e alvo do preconceito, tornando-os vulneráveis e muitas vezes alvo de “polarização”.

Joana Mouta define, em poucas palavras, aquilo que se passa um pouco por toda a Europa, mas também aqui mesmo, em Lisboa: “Medo de desconhecido. A crença no etnocentrismo – de que a nossa a cultura é a única que é válida. E quando acreditamos nisto, e não temos os media para desconstruir estas ideias e criar pensamento crítico, temos o preconceito e o populismo”.

A conversa aconteceu na Brasileira e contou com a presença de Věra Jourová, Joana Mouta e António Brito Guterres. Foto: Inês Leote

Mote para a Comissária Vera falar da crise que afeta os media – e ainda mais o jornalismo regional e local –, e reconhecer a difícil sobrevivência dos meios de comunicação. O que, segundo ela, ajuda ao espalhar desinformação: “As grandes campanhas de desinformação são sustentadas por dinheiro e más intenções”.

E dá o exemplo das campanhas russas, ou chinesas, em que a UE é alvo, e os seus vários países de diferentes formas. “Eu por exemplo, não posso entrar na Rússia, sou persona non grata… Que pena, não posso ir para a minha dacha…”, ironizou. “Eu não tenho uma dacha”, esclareceu, mais séria, para quem pudesse ter percebido mal.

A luta, no entanto, não passa por “banir” mas promover uma maior proatividade dos setores de comunicação, com os políticos e legisladores a preverem as campanhas de desinformação.“Queremos mais fact-checking (que pode ser feito a nível local) e queremos privar os ‘desinformadores’ do dinheiro, para que as pessoas não sofram lavagens cerebrais. Queremos fome pela verdade e pelos factos.”

Desse outro lado, da rua, António Brito Guterres falou de uma falta de pluralidade de Lisboa. “As cidades são cruciais para a governação da União Europeia”, diz. “Temos cidades diversas, mas não plurais. Quando somos diversos, mas não plurais, estamos longe da coesão. Talvez se tivéssemos media mais diversos e plurais… mas a população não tem acesso aos media nem à educação”.

Educação é um tema forte. Joana Mouta também se referiu a ela: “Educação e acesso à educação. Temos educação universal, mas não é justa”. Věra Jourová não podia estar mais de acordo – muitas vezes, sente que falta a “diversidade” e o “pluralismo” nas conversas e debates onde está.

João Seixas fala sobre algoritmos urbanos que temos de afinar pelo pluralismo da cidade. Foto: Inês Leote

Neste sentido durante o debate falou-se ainda de “algoritmos urbanos”, pela voz do geógrafo João Seixas, que falou das bolhas urbanas e de como a cidade está a não promover a diversidade, “algo que torna as cidades vivas”. Vera Jurova voltou a referir a questão da bolha, e da necessidade que há de sair dela, para todos. Até para uma Comissária.

E o que faz para manter esse contacto, além do vidro dos gabinetes europeus? “Quando vou a casa e vou ao pub, tenho um reality check. Tento ir a eventos com pessoas diferentes da sociedade. Nas conversas nas universidades, sinto que faltam pessoas. Mas a verdade é que tenho muitas saudades da minha vida real.” Mesmo com conversas de café que ajudam a dar um pouco de noção da realidade.

A conversa foi aberta à plateia, abrindo-se espaço para a discussão sobre algoritmos. Foto: Inês Leote

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