Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
Da estação de Campolide até Bela Flor é uma caminhada agradável, margeando a ciclovia, sob o olhar altivo do Aqueduto das Águas Livres. Um quarto de hora depois, ou nem isto, e já se vê o conjunto simétrico de prédios, bem como alguns moradores idosos numa roda de conversa, as cabeças brancas em contraste com as madeixas coloridas de jovens atentos ao telemóvel. O destino é a Agrofloresta de Campolide, uma franja inclinada de terreno entre o último edifício e o viaduto Duarte Pacheco. Uma frondosa iniciativa que tem alterado a paisagem, inclusive humana, do bairro social.
“O objetivo de uma agrofloresta é usar a floresta para produzir comida”, resume Joaquim Espada, literalmente o “homem no terreno” da Junta de Freguesia de Campolide, responsável pelo projeto. “A natureza sempre tenta seguir o caminho da floresta, primeiro com as ervas, depois com os arbustos e as árvores. A intenção é apanhar a boleia e plantar uma horta e um pomar”, diz.
Joaquim é um tipo de poucas falas, cujas palavras resistem a escapar da boca camuflada pela barba de aspeto arbustivo. As mãos sujas de terra deixam claro que prefere o diálogo com as plantas. Mesmo assim, lembra que as florestas não precisam de alguém para as regar ou pôr estrume, beneficiando de um ciclo autossustentável. A agrofloresta, portanto, pretende que a vegetação alimente a horta.
“O objetivo de uma agrofloresta é usar a floresta para produzir comida”
Joaquim Espada
Para isto, cada um dos quatro canteiros está separado dos demais por macieiras, nogueiras, figueiras, amoreiras e outras árvores, frutíferas ou não. Nesta etapa, a intervenção humana ainda é necessária. “A poda propicia que as folhas e ramos caiam no chão, imitando o processo natural de uma floresta, abastecendo as hortas de matéria orgânica”, explica Joaquim.

Em dois anos, a horta já colheu safras de couves, alface, beterraba, alho francês, rúcula, espinafre, sálvia e outras folhas. Para além das hortaliças, a agrofloresta também cultiva ervas medicinais, como boldo, cerejeira brava e sabugueiro. Espera-se para os próximos dois anos que, à atual oferta, se somem as frutas, cujas árvores precisam de mais tempo de maturação. Ainda assim, as colheitas já foram revertidas para os vizinhos do bairro social e não apenas como complemento da feira.
A coordenadora do projeto, Cátia Godinho, conta que a agrofloresta foi a principal fonte alimentar de alguns moradores do bairro social, durante a pandemia. “O temor de quem perdeu o emprego de não ter nada no frigorífico foi amenizado ao olhar pela janela e perceber que havia comida no quintal. A pobreza envergonhada é um problema e aqui ninguém precisa pedir nada. Basta vir, colher e, discretamente, voltar para casa”, conta Cátia, o sorriso fácil no rosto substituído pelo ar de comoção.
“O temor de quem perdeu o emprego de não ter nada no frigorífico foi amenizado ao se olhar pela janela e perceber que havia comida no quintal”
Cátia Godinho
Cátia explica que a agrofloresta começou a operar há dois anos, como parte do projeto Bela Flor Respira. À época, o terreno estava abandonado, dominado por ervas daninhas, bidons e outros entulhos descartados. “Por ser uma área inclinada, não havia alternativas de convívio. Pensámos, então, numa oportunidade de interação social e de alertar a comunidade sobre a importância de se cuidar do espaço público, obtendo em troca comida”, explica Cátia.

A iniciativa prevê também o ensino da técnica, ainda uma novidade em Portugal. Os cursos semanais, entretanto, foram suspensos pela pandemia. “Esperamos em breve retomar a partilha de conhecimento, desta vez apostando numa formação mais específica, com pessoas capazes de gerir um projeto semelhante”, diz Cátia, enquanto caminha célere por entre os canteiros, em direção a dois voluntários que espalham um composto à base de cogumelo na terra.
“Já houve mais”, revela Cátia, referindo-se ao voluntariado. A pandemia não só atrapalhou o lado pedagógico, como atrasou a expansão da agrofloresta, circunscrita em mil metros quadrados, um quinto do potencial cultivável. Apesar das limitações, a junta mantém dois especialistas, às quintas-feiras, para orientar quem deseje colaborar. “Faz parte do ADN aproveitar ao máximo os recursos da comunidade. Infelizmente, só vamos expandir quando sentirmos que temos mais braços”, diz.
Semear o convívio entre gerações
Um dos voluntários é uma criança, que deixou a brincadeira com os patins para adubar os canteiros com os resíduos de cogumelos. “Os vizinhos costumam aparecer, muitos deles idosos e sem condições físicas de colaborar, apenas para conversar. A atividade assim combate o isolamento social e promove uma relação geracional”, avalia Cátia, observando a menina, ainda calçada com os patins, debruçada sobre um pé de couve.
Em seguida, para não contradizer Cátia, surge outra vizinha, uma idosa deslizando lentamente as sapatilhas pelo terreno escorregadio, concentrada em não perder o equilíbrio. Traz um saco plástico, que uma voluntária encheu com folhas de alface, couve e sálvia. Tímida, responde negativamente com um simpático sorriso à sugestão de uma entrevista, antes de desaparecer por entre as folhagens.

Joaquim interrompe a poda para vê-la partir. “O maior desafio é, realmente, envolver as pessoas. Ao mesmo tempo, é o nosso maior proveito. Estamos ainda num processo de experimentação, pois é uma técnica nova cá. Porém, já considero o saldo positivo. Melhoramos o solo, a interação social e devolvemos um certo orgulho de se viver aqui. Nesse sentido, a agrofloresta já está a dar frutos.”
Numa manhã de quinta-feira chuvosa, Alessandro, de boné na cabeça e chapéu de chuva na mão foi o primeiro a chegar. O dia prolonga-se até às 18 horas e talvez o sol ainda apareça. Em outubro de 2020, no âmbito do projeto Jardins Abertos, conheceu a agrofloresta de Campolide e, desde então, às quintas-feiras veste roupa prática, luvas e calçado confortável. “Gostei muito da iniciativa”, diz.
“Já considero o saldo positivo. Melhorámos o solo, a interação social e devolvemos um certo orgulho de se viver aqui.”
Joaquim Espada.
Enquanto Joaquim não chega, Alessandro assume o papel de guia e, caminhando lentamente pelo solo húmido que vai deixando marcas nos sapatos, explica o trabalho que ele e outros tantos voluntários têm desenvolvido. Nos canteiros, já há tomates cereja, alfaces, rúcula e espinafres. Há também árvores, algumas delas exóticas. É o caso da Ricinus communis, popularmente conhecida como mamona.
De São Paulo imigrou para Portugal em 2018. Para Alessandro, a agrofloresta permite “maximizar o espaço e produzir agricultura ecológica, incluindo o ser humano que naturalmente faz parte dos sistemas. Projetos como estes são importantes para acolher a comunidade que, cooperando entre si, trabalha para um bem comum”.
Nessa manhã, dedicou-se, juntamente com Chris, um jovem também brasileiro que está a tirar o curso de engenharia ambiental e atualmente a estagiar neste projeto, a construir um espaço de convívio onde os voluntários e a restante comunidade podem estar e passar um bom tempo a apreciar as ofertas da natureza.

Interrompendo a conversa de Alessandro, surge uma menina de 15 anos, familiarizada com o espaço e com as pessoas. À tarde tem aulas e, por isso, aproveita as suas manhãs de quinta-feira desocupadas para cuidar de um espaço que é de todos. Mal se instala no grupo avisa, com um sorriso grande e olhos doces, que “nasceram dois gatinhos bebés”.
Amiga dos animais, todos os dias põe comida e água naqueles que outrora já foram pratos de vasos de plantas, para alimentar os guardiões do espaço: o galo, a galinha e os pintainhos. “Ainda não lhe dei um nome, mas o galo anda sempre atrás de mim”, diz com a ave macho a seguir-lhe as pegadas que deixa na terra molhada.
Ingredientes para a sopa à porta de casa
Empoleirada no parapeito da janela de um dos andares do prédio que parece dividir a cidade do campo, está a senhora Jacinta. A vontade de fazer uma canja para o almoço fala mais alto e dá um pulinho até à horta. De olhos postos nos canteiros, à procura da salsa para a sopa, Jacinta vai dando dois dedos de conversa. “Fui criada no campo e adoro isto aqui”, revela.
Desta vez não há salsa, mas há couve e um bom molho de espinafres, acabadinhos de apanhar e fresquinhos, com gotas de água que revelam o amanhecer cinzento e chuvoso. A sopa será outra, mas dali nunca sai de mãos a abanar. “Obrigada, minha querida”, agradece Jacinta, antes de se ir embora, à menina que lhe apanhou as hortaliças.

A hora de almoço aproxima-se e o sol ainda não venceu o cinzento que invade o céu. Nas mochilas, algumas delas penduradas, outras pousadas sobre um banco de madeira, guardam-se as merendas dos voluntários. Depois de uma manhã de trabalho e contacto com a natureza, é preciso repor energias. O dia ainda é longo e a agrofloresta precisa de ser cuidada.
Num quadro branco e com caneta preta, apontam-se as tarefas do dia: colheitas, cuidar dos tomateiros, podas nos caminhos; cuidar do pessegueiro. Geralmente, às quartas-feiras são enviadas newsletters aos voluntariados com as atividades propostas para a quinta-feira seguinte. Os voluntários têm luz verde para partilharem ideias e sugerirem atividades.
A Bela Flor faz parte dos jardins abertos e tem uma visita virtual no site. Aqui.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Que belo projecto!
Fantástico, o projecto e notícia que o dá a conhecer. Parabéns