O pousar de uns olhos toca-nos como dedos e é por isso que nos viramos à menor suspeita, tantas vezes confirmada, de que alguém está a olhar para nós. É um sexto sentido, que se confunde com o tato, e que pressente o contacto silencioso de outros olhos em nós.

Dá-se que o nosso cérebro está de certa forma preparado para nos comunicar que alguém nos observa, mesmo quando não é o caso. O olhar dos outros antecipa-nos mecanismos de defesa, prepara-nos as reações, defende-nos de mostrar o que não queremos e, daí, programou-se o ser humano para ver olhares antes de eles existirem: em matérias de sobrevivência, mais vale senti-los a mais do que a menos.

Assim, corremos a enfrentar um olhar, e o outro ser humano, de idênticos reflexos, já nos olha também, reagindo ao movimento e confirmando, ambos, que eram de facto olhados, ainda que ninguém os olhasse. Em alternativa, fugimos do olhar que não o é ainda, ansiosos, incomodados, evitando confirmar o que não duvidamos, que nos olham, que nos veem, ajeitando o cabelo, comportando-nos alinhados com aquele que queremos ser.

O peso de um olhar pode ser um ferro em brasa mesmo quando apenas imaginado. É a vertigem de nos sentirmos vistos que nos endireita as costas, altera comportamentos, que nos leva as mãos aos bolsos, e à cara, e a todo o lado, porque as mãos nunca sabem para onde ir quando alguém olha para nós.

Ser olhado, permanentemente, é uma distopia que nos arrasa a identidade, que nos impede de sermos sozinhos, que é a forma mais sincera de ser. O olhar omnipresente é aí pesado como pedras, subjuga-nos e intimida-nos. Esse olhar é uma prisão, que nos amarra as liberdades, mesmo quando nos é oferecido embrulhado em segurança.

Nas redes sociais, paraísos de descontentamentos contentes, traficam-se olhares como se fossem pedras preciosas. Jornalistas em causa própria, vamos reportando com a minúcia de um diretor de programas os momentos quotidianos que nos fazem únicos e, no tempo que dura um upload, tornamo-nos finalmente iguais a todos os outros. Queremos ser vistos, mas não queremos ser distinguidos. Procuramos irmanar-nos, borrados de medo de não pertencer. Eu sou tu. Eu sou nós. Eu não sou eles. Olha para mim. Não vejas demasiado.

Vejam-me como eu estou, não como eu sou. É assim que hipocritamente queremos carregar o peso do olhar dos outros.

Mas se vamos numa rua, e alguém nos aborda, o olhar pode ser também um abraço que aconchega. À pessoa que sobrevive em bancos de jardim, em gares de comboio, com a ajuda dos que passam, o olhar que vê e reconhece pode ser a prova necessária de que aquela pessoa ainda existe, ainda está, ainda é. Esse olhar pode salvar vidas.

Penso nisto ao ler as crónicas do Jorge Costa aqui n’A Mensagem.

Quantas vezes não virei a cara a alguém, não evitei um olhar, desconfortável com uma presença que eu não queria reconhecer, que confrontava a realidade em que eu quero viver com a realidade em que vivo. A pobreza, a miséria, o pedinte, o pedido, a incapacidade de resolver o problema sozinho, a irritação com o mundo, a vergonha comigo, e um olhar evitado, que até era o mais fácil de dar, uma pessoa invisível, porque eu não a quis ver.

Num filme que não vou nomear, pois estragar-vos-ia o final, um personagem prende outro durante 25 anos, como punição por um crime. Nesse período, alimentou-o diariamente, em silêncio.  Quando a prisão ilegal é descoberta, mas não terminada, o prisioneiro tem apenas um pedido: “Por favor, pede-lhe que, pelo menos, fale comigo”.

É o pedido mais básico que um ser humano pode fazer, mais até do que pedir liberdade: “Reconhece-me”. Não me ignores. Fala-me. Olha-me.

A invisibilidade mata, como frio em corpos deixados ao relento. Um olhar pode ser um cobertor, pesado apenas na medida em que conforta, leve porque passa e deixa apenas a certeza de que existimos e somos dignos.

Ser ignorado revolta e ofende. Quando um conhecido finge que não nos conhece, sentimos indignação no peito. “Quem é que aquela acha que é?”. Ou quando alguém nos pisa e ocupa o nosso espaço, como se não estivéssemos, como se não fôssemos. “Então, mas este gajo não me está a ver?”

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, assim começa o Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, antes de perderem todos a vista numa pandemia, e com ela a humanidade.

A Mensagem tem dado a ver muitas realidades que me eram invisíveis, detalhes nas ruas, sons no ar, e pessoas à minha volta, as suas vidas, os seus receios, as suas ambições. Tem-me ensinado a olhar para Lisboa com outros olhos, dos que veem, a procurar em cada alma a sua história, a mais intensamente reparar no que faz palpitar o peito daqueles com que me cruzo.

Não sei quanto pesa um olhar. Mas sei quanto vale: bem ou mal, tudo.


João Marecos

Chegou a Lisboa no preciso segundo em que chegou ao mundo. Aqui cresceu, fez amigos, estudou Direito, tornou-se advogado, antes de a curiosidade o levar para Nova Iorque, onde repetiu tudo isso. Escreveu um livro, que apresentou no Chiado. Fundou o 100 Oportunidades à beira do Tejo. É o amor que o mantém fora de Lisboa, será o amor a fazê-lo voltar.

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