O Rio Tejo estava lindíssimo naquele final de tarde em Outubro. Sempre gostei de contemplar o Tejo. Sempre gostei de deambular pelas docas de Lisboa, junto aos seus bairros antigos. Sempre amei a minha cidade, Lisboa. Cidade encantadora, histórica e romântica, onde nasci e vivi durante toda a minha vida.

Mas agora, as ruas da cidade tinham-se tornado para mim cansativas e melancólicas, pois era nas ruas que tinha de estar constantemente, sem ter casa. Sem ter um sítio para dormir como toda a gente, um sítio para mim. Para estar, para ser eu. Para dormir em paz, estar a salvo do perigo e para me lavar em privacidade, em vez de me lavar pelas casas de banho públicas espalhadas pela cidade. Que saudades tinha eu da minha casa de banho.

Pode parecer ridículo começar uma crónica falando da falta de uma casa de banho. Mas durante o tempo que fui sem abrigo, era uma das coisas que mais me fazia falta. Quando alguém escreve sobre dignidade, decerto não escreve acerca de casas de banho. Mas escrevo eu. Ninguém se sente digno sem higiene. E é preciso ter falta de acesso a ela para sentir isso na pele e para perceber o que eu digo.

E cá estava eu na doca junto à Estacão de Santa Apolónia, isolado, por trás do terminal de passageiros. Estava o mais afastado possível, junto ao último gradeamento que separa a doca do rio, sentado no chão de pedra para ter a máxima privacidade possível para me descalçar e cortar as unhas dos pés. Sim, porque um sem abrigo também tem de cortar as unhas dos pés e não vai fazê-lo junto às outras pessoas ou mesmo numa casa de banho pública. Pode parecer um pouco deselegante a forma como começo a minha crónica de hoje, a falar sobre casas de banho e unhas dos pés. Mas as minhas crónicas são sobre a realidade de um sem abrigo, a minha realidade.

No entanto, eu olhava para o Tejo como sempre tinha olhado. E estava lindíssimo naquele final de tarde já com o Sol a desmaiar no horizonte. Tentava aproveitar aquele momento como um bom momento de paz, encontrando ali o melhor momento do dia, que tinha sido muito cansativo e já com o frio do Inverno a chegar. Tinha-o passado quase todo a arrumar carros ali perto, junto ao Terreiro do Paço, fazendo um intervalo para ir ao carro de apoio ao Cais do Sodré almoçar. É muito esgotante arrumar carros. As pessoas pensam que não, mas é. Estamos sempre de pé, a maioria do tempo à espera que chegue um carro, caminhando de um lado para o outro, percorrendo a rua ou a área vezes sem conta.

Mas lembro-me que não tinha sido um mau dia. O almoço tinha sido feijoada. Basicamente feijão, poucos enchidos e quase nenhuma carne na cuvete, mas estava boa, bem temperada. E tinha “feito” cerca de 7 euros nesse dia. Calcei-me e acendi um cigarro, dos poucos que tinha pedido durante o dia. Continuei a olhar o Tejo, admirando o horizonte. Sentia-me um homem completamente diferente. Quase três meses a viver nas ruas que me pareciam já uma eternidade.

Três meses é muito pouco tempo na vida de uma pessoa, mas isso será em condições normais. Para quem vive na rua, é muito tempo. É uma espécie de efeito de estufa em total liberdade, que, na verdade, é condicionada porque eu sentia-me preso na rua sem poder sair. O conceito de liberdade de um sem abrigo é muito diferente de uma pessoa comum. Mas nós também somos pessoas comuns e o problema reside aí. Temos de viver como ninguém vive e como não é suposto viver e vivemos assim, misturados com as restantes pessoas, e é então que passamos a ser o problema social.

Sentia-me mais maduro. Mas que maturidade era esta? Crescer a sofrer? Evoluir com raiva? Ganhar experiência com medo? Aprender a lidar com o perigo nas ruas e com os criminosos que nos rodeiam? Saber comer sem ter dinheiro para o comprar? Tinha-me tornado em pouco tempo num homem mais frio, mais insensível. No entanto mais atento a tudo o que me rodeava. Eu estava a crescer como homem num mundo onde chorar é perigoso, pois é sinal de fraqueza. E nas ruas mostrar fraqueza é o pior que podemos fazer se queremos sobreviver.

Por exemplo, o episódio em que fui agredido e assaltado onde dormia mais o Zé, só ele é que soube. Soube tudo assim que lá chegou e eu lhe contei o que se tinha passado. Foi ele próprio que me disse para não contar a mais ninguém. Perguntei porquê. Ele respondeu que “não era bom para o nosso curriculum”. Insisti mostrando incompreensão e ele concluiu: “aqui procura-se foder quem costuma ser fodido”. Mostrei desprezo por aquela conclusão, pois pensava que seria suposto ajudarmo-nos uns aos outros em vez do contrário.

Ele disse-me o que sempre me costumava dizer: “Jorge, tens de aprender a andar aqui”. Nesse dia cansei-me de ouvir aquilo. Olhei-o nos olhos e respondi-lhe: “não, eu não quero aprender a andar aqui, eu quero aprender é a sair daqui!” Ele riu-se à gargalhada fingindo estar divertido, como lhe era habitual, comentando: “é isso mesmo! ah grande Panda!” Eu detestava aquela alcunha, mas permitia que ele me tratasse assim. Conhecendo o Zé como eu o conhecia, era uma demonstração de respeito e amizade. Aliás ele não colocava alcunhas a ninguém.

Era precisamente ele que chegava à doca junto a Santa Apolónia, pois tínhamos combinado encontrar-nos por ali. “então? já fizeste a manicure?” brincou ele. Respondi que sim perguntando como tinha sido o dia dele. Parecia não ter sido grande coisa. Trazia o habitual pacote de vinho na mão. Isso era sinal de que só tinha conseguido arranjar dinheiro para o vinho, caso contrário traria tudo na mochila. Era uma forma masoquista de me dizer que só tinha “feito” dinheiro para vinho e pouco mais. “Uma merda!”, respondeu. “Vamos tratar da janta, que vai cair uma carga de água. Temos de mudar de sítio.”

Olhei para o céu e estava de facto a ficar muito nublado. Dormir com chuva era um problema. Já tínhamos dormido há duas noites com uma chuva irritante, das primeiras de Outubro e a minha primeira noite com chuva desde que eu dormia na rua. Conseguimos abrigar-nos debaixo das arcadas de um edifício e passámos a noite relativamente bem. Mas ele, antes de adormecer, enquanto fechava o saco-cama, olhou para mim e disse-me um pouco preocupado: “temos de arranjar um sítio para o Inverno, Jorge. Isto são apenas uns pinguinhos e o frio ainda não chegou. Isto não é nada.” Eu ainda não tinha pensado nisso.

Sugeri que esperássemos pelos carros da noite no Largo da Estação de Santa Apolónia. E poderíamos comprar qualquer coisa no Pingo Doce da estação, com os 7 euros que eu tinha. Ele disse que os carros chegariam tarde, ia chover e tínhamos de ir tratar da dormida mais cedo. E deu uma ideia: “Oh Panda, porque não compras uma onça de tabaco pá gente? Olha que isto hoje vai ‘tar mau para pedir tabaco e as beatas vão estar molhadas. Eu faço umas compras no Pingo Doce.” A nossa vida era esta. Ou tínhamos dinheiro para comida ou para tabaco. Nunca para as duas coisas.

As compras no supermercado nessa noite foram roubadas. Eu nunca fui nem sou ladrão. Mas por vezes roubei comida enquanto fui sem abrigo e não tenho problemas de o dizer. Tinha fome. A escala dos valores éticos e morais de uma pessoa sem abrigo é muito diferente, acreditem. Eu fiz coisas durante esse período de que não me orgulho, mas tiveram de ser feitas. Aceitei a sugestão. Até porque era muito difícil eu deixar de fumar. Um cigarro era o único conforto que eu tinha por vezes. Fumei muitas beatas, podem estar certos disso.

Outros, como o Zé, usam o vinho como anestesia. E confesso que até eu o usei em algumas ocasiões. O vinho por vezes consegue secar as lágrimas e ajuda a dormir. Disse-lhe então que ia com ele. Eu compraria um saco de pão e ele “encarregar-se-ia do resto”, pois o Pingo Doce em questão era muito pequeno, mas só tinha um segurança. É sempre um risco roubar num supermercado. Podemos ser vistos ou apanhados à saída nas caixas, pois nunca sabemos quais os produtos em que a leitura ótica acusa no sensor, fazendo tocar o alarme.

Sabemos que, regra geral, os produtos embalados são os mais perigosos nesse campo. E temos de ter cuidado com as câmaras de vigilância e com quem nos observa. Por isso vamos criando técnicas e aprendendo uns com os outros. Não somos bandidos. Temos fome e, de facto, alguns de nós roubam em supermercados. Mas o que somos ou não, isso fica ao critério de quem nos vê e de quem nos julga.

Depois de eu ter comprado uma onça de tabaco na tabacaria, eu e o Zé decidimos cá fora o que iriamos “trazer” do hipermercado, pois não podemos perder tempo lá dentro. Quem vai comprar um saco de pão não se demora nas compras e não podemos dar nas vistas. Nessa noite, decidimos trazer queijo flamengo, fiambre ou talvez um chouriço, produtos estes em que a leitura ótica nas embalagens pode fazer soar o alarme à saída. Mas como o Zé me tinha dito logo no início, a leitura ótica está na embalagem e não no produto.

Quando entrámos eu dirigi-me às prateleiras do pão. Havia bastante variedade ainda, o que me dava tempo para fingir escolher, dando-lhe tempo a ele. Enquanto fingia escolher o pão, observava o Zé. Vi-o rapidamente a tirar o seu corta unhas do bolso e, quando passou pelo expositor do queijo, com a ponta rasgou a pelicula plástica de uma embalagem de queijo flamengo, seguindo o seu caminho mais à frente para a charcutaria. Convém fazer as coisas em andamento, pois quem eventualmente observa pelas câmaras está mais atento às pessoas que estão paradas, dica de um sem abrigo que no passado tinha sido segurança num centro comercial.

Vejo o Zé regressar e, passando de novo pelo expositor do queijo, habilmente tirou da embalagem todas as fatias do queijo flamengo e colocou-as no bolso de trás dos jeans como quem guarda uma carteira. Fez-me o sinal e dirigimos-mos para a caixa. Assim que coloco o saco do pão no balcão da caixa para pagar, o Zé de imediato começa a falar com a empregada dirigindo-lhe os “piropos sexy” habituais. Todas as empregadas se querem ver livres rapidamente de clientes assim, ainda por cima com o aspeto de sem abrigo. “90 cêntimos” pediu-me ela rapidamente. Paguei, agradeci e saímos do hipermercado.

Assim que abandonámos a estação pedi-lhe o queijo. Queria lavá-lo no chafariz, pois nem queria imaginar o que era o interior do bolso de trás dos jeans do Zé. Ele deu-me as fatias do queijo e rapidamente abriu a braguilha das calças tirando para fora um chouriço de Seia dizendo com gosto: “isto hoje é à patrão!” Não pude deixar de sorrir e disse que um dia seríamos apanhados. Ele olhou para mim e disse sério: “Se isso acontecer, não te ponhas com música. Mete o que roubaste em cima do balcão, dizes que és sem abrigo e que roubas para comer”. Ou seja, a verdade, disse eu. Ele continuou:  “sim. O que te pode acontecer? Olha o Chico quando foi apanhado, teve de ir à esquadra, jantou e dormiu lá, ’tás a ver? Não é assim tão mau. A gente pra sermos bem tratados, temos de ir presos.”

Fiquei a olhar para ele, não percebendo muito bem se estava a falar a sério ou se estaria a brincar. Mas o Zé, julgo eu, já estava numa fase em que as duas coisas se fundiam. E depressa pensei para comigo: é neste tipo de pessoa que me estou a tornar. E de repente, começa a chover. E que chuva! Quase torrencial! Corremos que nem loucos novamente em direção à Estação. Já era tarde para irmos buscar as nossas coisas para mudarmos de sítio. Disse ao Zé: “vai ficar tudo molhado.”

Tínhamos deixado as nossas malas e colchões dentro de um edifício em obras, em Marvila, sem teto. O Zé encolheu os ombros. Abriu os olhos satisfeito e disse sorrindo: “esquece isso agora. Vamos jantar. Temos pão, queijo, chouriço de Seia e tcharan! tenho mais um pacote de vinho na mochila.” Eu sorri e disse “e eu comprei tabaco!” E dirigimo-nos para um dos bancos públicos da estação. Conseguem imaginar-nos? Claro que sim! Quem não viu já dois sem abrigo sentados num banco público a comer com as mãos, a beber vinho de um pacote e a dizer disparates?


Jorge Costa

Jorge Costa

Morreu aos 55 anos em abril de 2022. Nasceu em Lisboa, cidade onde sempre viveu. Na Mensagem, partilhou a sua experiência da vivência nas ruas, sem teto para viver e para dormir. Foi sem abrigo durante 8 meses, até maio do ano passado. Escreveu sobre esta “difícil experiência, indigna e quase desumana”. Publicou um livro póstumo, Diário de Um Sem Abrigo, na Oficina do Livro.

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6 Comentários

  1. Jorge, obrigado por compartilhar tão delicados momentos vividos nas ruas. O teu testemunho nos envergonha a todos, pois nenhum ser humano deveria ter de passar por isso. Sem teto e sem comida – e sem uma casa de banho, como dizes, é realmente difícil manter a dignidade. Um abraço, meu amigo (se me permites, mesmo sem te conhecer).

  2. Olá Jorge,
    Tenho lido a tua partilha desde o ínicio e ressoa muito em mim. Nunca vivi na rua, mas sempre que há mau tempo ou muito frio, lembro-me de todas as pessoas na rua que estão nessa situação. E hoje o que partilhaste sobre a higiene, felizmente é algo que nunca vivi, mas de facto já pensei muito sobre isso mesmo antes da tua crónica. Tu descreveste brilhantemente, ninguém tem dignidade sem higiene. A tua história, como te tantos outros, sem abrigo, imigrantes, vitimas de guerra são, o que há muito já desconfio, uma consequência natural do sistema podre em que vivemos. Esse sistema envergonha-me e faz-me sentir culpa por ter nascido com privilégios que muitos não têm. É por isso que me dedico e tenho dedicado, da forma que posso, a lutar contra este sistema opressivo e exclusivo, profundamente injusto e desapropriado à condição humano. Porque acho que todos temos o dever moral e ético de o fazer. Leio-te e imaginei quantas vezes já fui injusta com sem-abrigos e já ouvi comentários em que diziam “eu dinheiro para tabaco não dou, só se for para comer.” E eu concordava em parte. Mas de facto, hoje, com o teu testemunho percebo perfeitamente o quão mesquinho é este tipo de pensamento. O mesmo equivale para o alcool. É triste, o sistema afastou-nos tanto um dos outros, que quase nenhum de nós se consegue por na pele do Outro.
    Obrigada por partilhares estes momentos, tão crus. Eu já partilhei com muita gente conhecida, para lhes dar a conhecer mais uma realidade e assim, “ajudar” de alguma forma.
    Cumprimentos

  3. Ola Jorge ! Considero-me uma pessoa muito grata por aquilo que tenho e tal como a Ana Rita , quando tomo um banho ou me deito na cama numa noite de chuva , penso sempre nas pessoas que não o podem fazer . É com muita tristeza que leio os seus relatos . Encontrei este por acaso mas vou já procurar os outros . Tudo de bom para si !

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