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A processar…
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Em Lisboa como na China, a personagem mais irritante que se conhece é o PT de ginásio. Lisboa passou por muito – o terramoto de 1755, um homem que atirava gente do Aqueduto das Águas Livres, eleger alguém do Chega –, mas há poucas coisas piores do que estas pragas.

Em primeiro lugar, chamarem-se PTs já é irritante. Dá ideia de que temos de ter nota máxima no British School antes de podermos levantar ferro. Depois, entopem os ginásios com as suas aulas privadas. E então é tudo deles. Ninguém precisa de perguntar de quem é a toalha largada na prensa, porque é óbvio que é da senhora que está com o PT na outra ponta do ginásio.

Tento sempre ignorá-los e, se algum respira, faço-me de surda, mas volta e meia não evito ouvi-los, e as suas frases dementes molestam-me as orelhas: “Para teres o corpo que queres depende do teu mindset”, “Não podes suar no gym e comprar muffins na bakery”. A suar do pâncreas e dos ossos, penso que isto já não é vida, mas hiper-realidade.

Se na vida procuramos ser felizes, aproveito este espaço para lavar roupa suja. Nos ginásios, é vê-los muito solícitos, sempre à cata de mulheres na casa dos 40 recém-divorciadas. Sabem que é fácil convencê-las a dar-lhes comissão.

Eu, como sei que, quando me corrigem a posição dos abdutores, já só estão como hienas salivantes, em busca de dois terços do meu salário, e querem lá saber dos abdutores, evito falar-lhes, até sorrir. Aliás, quando passam por mim, não é raro fingir de morta só para que nem me cumprimentem. Como não tenho jeito para a simpatia ensaiada – ou para a simpatia em geral –, o esforço de imitar um cadáver cansa-me menos do que o de meio agachamento.

De resto, são sempre um estorvo. Uma pessoa vai aflita fazer caminhada do fazendeiro, com 30 quilos de halter em cada mão, e o corredor a direito parece um labirinto, porque o idiota do PT ocupa uma das faixas só para ir ao lado da estudante a dizer “Isso, isso, muito bem”. E nem sequer se afasta, a culpa é de quem tem razão. Ontem, só não levou com um dos halteres na cabeça, porque ainda os aguento com o braço estendido, mas ter força nos trapézios para os elevar acima da cabeça já é outra história.

Enfim, lá pousei os halteres e o gajo veio meter conversa comigo. Não lê os sonetos à Afrodite Anadiómena do Jorge de Sena, mas falar inglês é com ele. Perguntou-me:

– Como está o teu grip?

E eu:

– O quê? Não, não estou com gripe.

Voltei a meter os phones e preferi passar por anafalbeta em inglês. Sinceramente, qualquer coisa é melhor do que abrir a boca no ginásio, e há poucas coisas piores na vida do que conhecer gente num health club ou fight club ou fitness club ou qualquer coisa que precise de ser escrita com itálicos.

Há uma histeria qualquer em quem sua como modo de vida que me afasta dessa gente. Parece que tudo o que alguém diz é fascinante. Como esta manhã:

– A minha colega teve gémeos.

– Uau, gémeos.

– Agora têm 3 anos.

– Ooooh. 3 aninhos. Que fofo.

Claro está, a resposta – a admiração, a estupefacção, o fascínio – seria igual se em vez de gémeos fosse um caniche, se em vez de três anos fossem seis meses.

Portanto, tendo eu alergia a gente em geral e a PTs, mas também a ambição de ser, no mínimo dos mínimos, igual à Jennifer Lopez, pedi ajuda ao meu amigo Pedro. Em primeiro lugar, devo dizer que, como amigo, não é de confiança. Se lhe digo que me doem as costas, quase como quem lhe busca o ombro, já sei que vou dar por mim a levantar 60 quilos em peso morto para fortalecer a lombar.

Mas a verdade é que há poucos na vida que percebam tanto das coisas que aborrecem de morte os outros, razão pela qual, a meio de uma conversa, ele manda aquelas palavras à toa: deltóides, rombóides, redondos. Razão pela qual, também, ele não está muito apto a falar com outros meninos. A namorada, coitada, só consegue tirá-lo de casa para o meter no ginásio, onde pelo menos convive um bocado, bebendo um cocktail de whey de baunilha com aveia em pó e ovo cru.

A verdade é que a relação do Pedro com o ginásio parece inútil. As pessoas costumam gostar de ter um six-pack para o mostrarem aos outros, mas o Pedro só sai de casa para ir ao ginásio, onde todos são CR7 como ele. É um acto que se vicia, ir ao ginásio só para fazer boa figura no ginásio. Mas, se vos falo do Pedro, não é para que o imaginem em tronco nu e depilado. É para, em parte, vos dar a conhecer esta Lisboa escondida.

Nós nem damos por eles, mas os legendadores existem. Ou melhor, damos por eles quando estamos escarrapachados no sofá – depois do ginásio, claro – a ver séries como obsessivo-compulsivos e apanhamos um erro a tiro: “Não é tosta, é brinde!”.

O Pedro, que talvez meta espinafres em pó no batido de espirulina, passa então totalmente anónimo pela vida, porque nunca erra em nada. Não tem sequer a glória de falhar para saberem que ele existe. Aquela treta do “Fail again. Fail better” funcionará para intelectuais, mas não para o meu autómato amigo, que os meus outros amigos julgam que inventei, porque é até hoje um mito urbano que mais ninguém conhece.

Há vários anos – para cima de 40, acho –, ainda me cruzei com ele no Chiado, numa manifestação qualquer. Foi engraçado vê-lo de calças de ganga. “Uau, estás vestido!”. A frase é sempre um perigo, principalmente para quem souber que, volta e meia, saio da casa dele às quatro da manhã. Ficámos a legendar até às tantas, mas, no fundo, sei que isto dá aspecto de nos termos conhecido na Internet.

Quando pedi ajuda ao Pedro, não sabia bem em que buraco me metia. Ele resolveu fazer-me um plano, alérgico como é à minha massa adiposa. A coisa parecia simples, cinco séries, de 20 repetições cada, de trusteres, que eu mesma traduzi para português, com sabe deus quantos quilos e uns abdominais manhosos.

No fim da primeira, eu já ofegava. No da segunda, queixava-me. No da terceira, gania. No da quarta, morria. No da quinta, odiava-o. Quando cheguei à porta de saída do ginásio, já tinha uma hérnia nas costas, a qualidade de vida de uma centenária e pouca vontade de estar viva.

Durante dias, trabalhei deitada. Perguntava-me se o defeito seria meu, mas era óbvio que era do Pedro. Ele, que viu a minha avó agachar-se um dia para pegar na muleta que tinha caído, e disse “Meta peso nisso para fortalecer os quadríceps!”. A minha avó já tem a surdez da idade e, pelo menos, não caiu no erro que eu caí – e, assim, não caiu nem morreu.

Durante semanas, não fui ao ginásio. Eu mal conseguia lavar os dentes, quanto mais armar-me em Ali Daei. Encomendava a comida na Internet e, apesar das dores, ainda conseguia fazer coisas saudáveis, como leite magro com cereais integrais de chocolate. Aos poucos, ainda perra como um oito, lá comecei a sair à rua, e felizmente vivo na zona de Lisboa com mais reformados por metro quadrado. Por um lado, é bom, porque é um sossego. Por outro, é preciso tirar meio dia de folga para ir ao supermercado, porque toda a gente tem prioridade.

Mas, dessa primeira vez na rua, vi uma senhora com os bisnetos, que era como eu me sentia, exceptuando a parte dos bisnetos. Perguntei-lhe o que fazia para aguentar a idade, as dores, o corpo que se desarticulava. Confessei-lhe o mesmo problema, eu, que era tão nova e vivia a velhice por confiar nos meus amigos.

Ela sorriu como quem ganha a lotaria – ganhou-a mesmo. O neto dela, por coincidência, tinha uma loja de produtos ortopédicos, e foi lá que comprei uma almofada para a lombar que hoje em dia até levo para o cinema, umas meias que me fazem muito calor e um cinto que me impede de parecer o Concunda de Notre Dame. Ali gastei meio salário e a dona Alice, que talvez receba comissão, começou a passar a reforma nas melhores pastelarias de Benfica.

Eu, entretanto, volvidos dois meses deste triste episódio, lá resolvi ir ao médico, a ver se acalmava o Pedro, “Como é, estás melhor? Quando voltas ao ginásio? Se calhar, o ideal é mesmo fazeres remada unilateral e barra fixa.” O médico, por sua vez, disse-me para estar sossegada e receitou-me uns relaxantes musculares que me drogaram tanto que fiquei a dormir durante uma semana.

Durante esse tempo, sonhei muito: que era igual à Jennifer Lopez, que os ginásios estavam livres de PTs, que podia comer sem engordar, que íamos ter paz no mundo, que eu ia viver com um golfinho e um koala, numa casa cujo jardim estivesse cheio de preguiças. Já o Pedro sonha acordado em ser PT. É caso para dizer: “Aceita a vida que tens. Nunca lutes pelos teus sonhos.”

Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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