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Pode um jardim que é um canteiro mudar as regras com que Lisboa gere os seus espaços verdes? A resposta é promissoramente positiva. Vai acontecer já, em Alvalade. E a expectativa é que se espalhe ao resto da cidade. E tudo por causa de um pequeno jardim, fruto do labor e amor de um homem pelas plantas, Nuno Prates. E de uma campanha na internet feita por um estudante de comunicação social, fechado em casa com covid, Leonardo Rodrigues. Sem se conhecerem um ao outro. E assim, o pequeno “Jardim das Plantas Doadas”, numa rua interior de Alvalade, entre a Av. Estados Unidos da América e o Bairro das Estacas, vai mudar a história cívica de Lisboa
O que aconteceu não é simples de contar, mas dá prazer fazê-lo. Tudo começou há mais tempo, quando Nuno, farto de ver o mau estado do canteiro junto do seu atelier, na rua General Pimenta de Castro, tomou mãos à obra, ou plantas ao terreno, melhor dizendo. O canteiro, seco e abandonado, fazia um evidente contraste com a entrada luxuriante da espécie de garagem que lhe serve de atelier.
Especialista em jardins, sobretudo na adaptação de plantas tropicais a Portugal, Nuno tinha construído uma espécie de antecâmara verde para o espaço, que, aliás, lá dentro, tem também uma espetacular biblioteca de livros de plantas e jardins, e um herbário todo empacotado que ocupa metade do espaço.

Nuno tornou o canteiro público a extensão do seu, plantou uma série de espécies tropicais, que tratou com cuidado – o que para ele é deixá-las à sua sorte, porque, “as plantas têm de aprender a viver sem mim”, costuma dizer. E viveram. E medraram. Os problemas começaram quando as roçadoras dos jardineiros da Junta passavam com os seus fios cortantes, danificando as plantas mais próximas do bordo. Nuno combinou com os jardineiros colocar uma mini-sebe. “Daquela coisa de galinheiro”, conta. Quem não gostou foi um vizinho, que achou que o que era bom para as plantas não era bom para os cães. Fez queixa à Polícia Municipal. E não terá sido o único.
Um dia, estava Nuno a trabalhar e ouviu um rrr-rrr das máquinas da Junta um pouco mais demorado do que habitualmente. Veio à rua, e deu com o seu canteiro todo destruído… “Fiquei em estado de choque”, conta. “Eles largaram-me as plantas arrancadas aqui à porta. E disseram que estavam a cumprir ordens.”
E estavam. Mas estamos em tempos em que as ordens já não são o que eram, e em que más decisões não ficam sem resposta: as redes sociais tornaram real a teoria de que um bater de asas pode mesmo formar um furacão. No caso, as asas foram as fotografias que a vizinha de cima de Nuno tirou à destruição, da janela da sua casa. O furacão foi a campanha que um outro vizinho, até então desconhecido, mais a norte no bairro, Leonardo, fechado em casa com covid, imediatamente desencadeou nas redes sociais, sobretudo no Twitter: “Por acaso tinha andado a passear pelo bairro e tinha fotografado o jardim, antes. E portanto as fotos do antes e depois, chocaram.”
Às duas da tarde, já Nuno tinha à porta um alto dirigente da Junta de Freguesia a tentar remediar o sucedido, e a explicar o mal entendido que teria causado tudo aquilo. Nuno foi autorizado a replantar o jardim, que está em plena recuperação, com mais de 147 espécies. “Foi uma infelicidade”, admite o presidente da Junta, José António Borges. “Percebemos que tínhamos feito asneira. E tudo se tornou uma felicidade”, adianta.
Sim, porque há mais: depois deste episódio, a Junta de Freguesia de Alvalade reuniu e decidiu fazer um regulamento que acomode os jardins feitos pelo interesse dos cidadãos. O processo está neste momento em consulta de contributos, vai a reunião da Assembleia de Freguesia, e é mais que certo que irá passar. Será o novo regulamento de “Atribuição de Hortas e Pequenos Jardins Urbanos e, segundo José António Borges, terá duas alíneas, uma para hortas e jardins colocados a concurso, e outra para cidadãos ou grupos que demonstrem interesse em fazer um jardim num terreno público.
Pode parecer pouco, mas implica uma mudança na cidade. “Estamos numa época de transição – em que é visível que os cidadãos estão a ganhar mais interesse pelo espaço público”, diz o Presidente. É uma “viragem de sentido”. Dantes, o espaço público era para ser gerido pelas entidades públicas, agora as pessoas começam a apropriar-se dele. “Por isso é que nunca houve nada disto, e os regulamentos eram o que eram”, explica. E, diz, “é óbvio que um cidadão cuida melhor dos seus seus 5 metros que uma Junta dos seus 5 hectares!”
Há ideia de que isto possa espalhar-se pela cidade e fazer jurisprudência. A ideia é que a ação de jardineiros formais tenha em linha de conta os “informais”, e que se crie uma convivência boa entre ambos. E tudo isto, diz Leonardo Rodrigues, o autor da campanha, iniciada em casa. “Eu estava a comandar as operações doente com covid. E só nessa realidade virtual conseguimos fazer com que o processo fosse revertido. É incrível, não é?”, pergunta.




É. E é paradigmático. Da modernidade na cidade, mas que mais parece de um regresso às origens. De certa forma, este amor pelos jardins já existe em Lisboa há muitos anos, em hortas, logradouros e outras formas, vasos e canteiros, etc… Mas a tendência maioritária era preterir os jardins e plantas, por formas que se acham mais práticas de viver, porque, como diz Nuno Prates, o jardineiro, “a primeira coisa em que muitas pessoas pensam quando pensam em jardins é no trabalho que dão”.
Recentemente, os jardins tornaram-se num campo de batalha cívico: é onde luta Leonardo, que criou um perfil no twitter chamado Lisboa Quase Verde. Estudante de comunicação social e trabalhando há anos na área, ajuda “as pessoas a defenderem-se, porque as pessoas precisam de saber o que dizer e a quem se dirigir. É assim que se mudam as coisas, e é tudo mais fácil ao nível hiperlocal. E as pessoas têm poder, de facto.” O caso passou também muito pelos grupos de vizinhos no Facebook, o que ajudou a aumentar o alcance.
“Comissão de avaliação de vasos”
Nuno ficou muito surpreendido como tudo isto aconteceu. Cinquentão, ele é homem de plantas e de livros, pré-internet. Mas a tecnologia veio ter com ele, até porque está muito à frente em matéria ambiental, e sem nunca fazer disso alarde. O seu apartamento, numa cobertura junto do Saldanha, dá nas vistas vistos do ar: é um oásis, uma selva urbana e tropical, cerrada e linda. Na altura que o construiu, há 20 anos, os roofgardens ainda não se chamavam assim, e ele teve problemas com alguns vizinhos, que estavam reticentes, por causa das infiltrações.
O condomínio criou uma “Comissão de Avaliação de Vasos”, para controlar as humidades. Pagou Nuno as obras de impermeabilização, e construiu uma casa que hoje é a inveja de quem tem bom gosto – e a visita na altura da iniciativa Jardins Abertos, da CML.
É com tristeza que Nuno olha para as muitas marquises de Lisboa, e pensa sempre nelas como estando a ocupar o lugar de mais um jardim. E dá outro exemplo para interesse dos lisboetas: a seção de plantas do IKEA que se transformou numa área de plantas artificiais.
O pequeno jardim de Alvalade tem Ananás, Café, Manga, Papaia, gengibre e gavatá, além dos ficus e outras ornamentais, entre 147 espécies que Nuno deixa à sua sorte. Quando faz frio “elas adaptam-se”. “Têm de criar uma auto-protecção”. Também não alinha em romantismos como “falar com as plantas”. Aliás, o que lhe agrada mesmo é a paz do silêncio que elas lhe dão.

“Eu sou o cidadão urbano mais rural que existe em Lisboa”, brinca Nuno contando que a paixão lhe vem de uma casa que os pais tinham na outra banda, quando a margem sul ainda era o paraíso dos pinheiros e havia colheitas. É um autodidacta: aprendeu património histórico na faculdade, mas não vegetal. Hoje, faz jardins como profissão.
E vai continuar a marcar a vida da sua cidade, com os seus pequenos e belos gestos. No fim de semana passado, por exemplo, esteve a plantar, com Leonardo, as caldeiras das árvores da Av. Defensor de Chaves. Pequenos jardins que são símbolo da intervenção dos cidadãos no lugar onde vivem. “Esperemos que durem.”
*artigo corrigido na habilitação de Leonardo Rodrigues.

Catarina Carvalho
Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
✉ catarina.carvalho@amensagem.pt
Eu acho notável a iniciativa da comunidade em prol da solução de erros destes. Pertenço à freg do Areeiro (no FB, com Grupo Vizinhos do Areeiro) e denunciamos ou reclamamos de algumas situações dignas de correcção – como, por exemplo, as “podas selvagens”, teoricamente feitas por gente habilitada mas,depois, ao que se vê, são cortes e mais cortes verdadeiramente assassinos. A freg de Alvalade também tem um FB-Grupo (Vizinhos de Alvalade) onde há dias foi denunciada situação semelhante. Pena é que muitos de fregueses, nestas ou noutras freguesias, achem que bramar contra as ciclovias é mais importante do que denunciar estas situações.
Parabéns ao Nuno Prates e á sua maravilhosa iniciativa, que bom seria se todos pudéssemos aprender com ele. Espalhar a natureza pelos cantos de Lisboa . Um trabalho destes só pode vir de uma pessoa muito especial.
Tão bem escrito e que história tão bem contada. Parabéns aos heróis desta história e à jirnalista por dar voz a esta causa!
Já tive a oportunidade e o prazer de visitar ambos e gostámos muito. Conseguimos disfrutar da cidade naquele pequeno grande jardim com muitos pormenores interessantes. O sol era abrasador mas sem plantas e recantos de sombra seria impossível ficar algum tempo ali.
Obrigada, Nuno!
Parabéns ao Nuno Prates pelo seu cantinho, ao Leonardo Rodrigues por ter apoiado e divulgado esta iniciativa e à Catarina Carvalho pelo artigo.
Parabéns Nuno pelo teu trabalho de transformares os canteiros frontais de Alvalade e os transformares em pequenos espaços verdes maravilhosos. Parabéns também a ti Leonardo pela tua luta como activista nas redes sociais. Como muitas vezes conversamos, é uma luta dura e muitas vezes sem resposta. A Proposta do Jardim da Celeste no logradouro verde da Rua Afonso Lopes Vieira foi e continua a ser uma luta inglória até ao momento. Mas talvez os canteiros sejam uma solução mais fácil para a junta que há uns anos pôs a questão dos moradores de ficarem eles responsáveis pela sua manutenção para contenção de custos.
Excelente iniciativa.
Sempre pensei que se os cidadãos se interessassem pela utilização criativa dos seus espaços circundantes verdes àna sua zona habitacional a cidade poderia estar bem melhor para todos.
Todos os presidentes das Juntas de Freguesia deviam ler isto porque a insensibilidade para com os espaços verdes é notória.
Eu moro em Benfica e, há algumas semanas, a moto-serra de pseudo-jardineiros dizimou os maciços de lantânas, o que fazem todos os anos em vez de os podarem, e cortou rente, como se de ervas se tratasse, dois olmos – um jovem que crescia saudável e viçoso e outro que renascia de idêntico corte do ano passado. No meu prédio, um canteiro que construí num terraço tem-me granjeado dissabores com uma personagem que se apoderou indevidamente da gestão do condomínio. A raiva às plantas como poderosas benfeitoras do ambiente, em especial às árvores, é nesta cidade de Lisboa uma aberração da politica autárquica relativa ao ambiente.
Temos de estender o vosso exemplo a todas as freguesias. Parabéns pela vossa iniciativa.
Augusta Clara Matos
Nuno Prates:
Pelo que eu te conheço, posso testemunhar que és uma pessoa com óptimo carácter, mas não sabia dos teus conhecimentos de plantas. Dou-te os PARABÉNS, por tornares Lisboa, ainda mais bonita e saudável para se viver!
Abraço amigo do Luís José.
Obrigada pelo seu contributo para tornar mais verde a grande cidade.
Adorei ler este artigo. Os novos heróis de hoje tal como os de ontem são os que revertem os processos.
Em Faro acontece o mesmo, corta-se tudo para não tetem trabalho senão para o ano que vem d se morrerem ainda melhor. No hospital, sempre que os pobres arbustos dão flores lá se ouve a motoserra cortando todas as flores e troncos até só ficarem os troncos maiores. Gostava de saber onde desencantaram estes pseudo jardineiros.
Muitos parabéns! Grata por defender a Natureza dessa forma.
Já tinha pensado organizar um Grupo assim aqui para a minha zona, quem tem espaços verdes, mas quase exlusivamente de relva apenas. Muito poucas árvores ou plantas, portanto. Quais os primeiros passos que aconselha a dar nesse sentido, Nuno? Grata!
Na ilha da Madeira, apelidada como um jardim de flores também acontecem atrocidades com as máquinas assassinas de flores, arbustos e árvores. Não tem muitos dias aconteceu fazer uma caminhada, junto à estrada entre a Universidade e o centro da cidade e dei conta de que dias antes havia muitas flores e outros arbustos que simplesmente foram cortados até à raiz. Dói na alma!
As freguesias têm muitas pessoas que não deveriam ter a seu cargo os jardins e bermas ajardinadas.
Parabéns ! É sublime saber que existem pessoas que gostam de plantas e fazem de tudo para as manter.
Excelentes iniciativas. Só uma cidadania activa pode revitalizar as cidades, e pode ser que após a pandemia comece a concretizar-se a utopia magnífica da “cidade dos bairros”, sem muros, sem a globalização castradora das liberdades que resulta da economia de mercado desregulado, com menor poluição.
Também trato dum canteiro que é público e dá-me muito gozo fazê -lo. Na lateral à rua que passa junto à minha janela arranjei dois banquinhos pintados de azul e amarelo e uma floreira. junto ao canteiro um outro maior, todos feitos com paletes que pedi em obras.