Nelson caminhava por entre os convidados, ora a equilibrar os pratos para uma mãe que empurra o carrinho do bebé, ora a servir à mesa dois séniores com dificuldade de locomoção impedidos de se juntar à fila que serpenteava pelo Largo do Intendente, no passado domingo. É um homem maduro, alto, forte, com porte de pugilista, como o papel que um dia interpretou numa peça no D. Maria II. Interpretou-o na companhia do amigo Giovanni, um vizinho bem conhecido por estas bandas.
O registo da encenação ficou eternizado em fotografias, algumas das quais expostas este domingo ao lado das mesas onde tantos outros vizinhos se juntavam para o habitual Almoço Comunitário de Natal, organizado pelo Largo Residências: lá estavam eles, Nelson e Giovanni, na clássica posição dos pugilistas prestes a entrar em combate, os punhos erguidos.


A lembrança em forma de foto é uma das muitas na galeria que o bairro do Intendente decidiu fazer em homenagem ao companheiro de cena de Nelson, que morreu em junho do ano passado. O homem “que falava com fantasmas” em Lisboa, que foi sem-abrigo, até Pai Natal do Intendente em 2018, “toureiro, marinheiro”, talvez herói do 25 de Abril, mas de quem se sabia, afinal, muito pouco: como é que José Carlos Dias virou Giovanni?
Agora, foi a amiga Luísa, a cozinheira principal deste almoço de vizinhos, quem decidiu homenagear este homem, através de uma exposição ao ar livre.

Luísa, que todos os anos, desde 2012, serve uma feijoada aos vizinhos por altura do Natal, no Largo do Intendente. Uma vizinha admirada, que já foi sem-abrigo – hoje grata por ter dado a volta aos duros tempos em que vivia nas ruas e das ruas tirava o seu sustento, mas também por ter vencido a um agressivo cancro.
Conheceu e reconheceu-se nos olhos pequenos de Giovanni: a grandeza dos lutadores, a fibra de quem é obrigado a enfrentar os duros rounds da vida nas ruas, os golpes de uma realidade difícil, a rotina de sucessivas quedas nos ringues a céu aberto, onde apenas os mais fortes resistem ao constante risco do derradeiro nocaute.
“O Giovanni já estava aqui desde sempre. Quando cheguei ao Intendente, em 1996, já andava por aqui, a contar as suas histórias”, lembra-se Luísa, concentrada na imensa e fumegante panela com feijão à sua frente.
Toureiro, marinheiro e herói do 25 de Abril?
Num dos raros momentos de pausa, Luísa aproxima-se de uma das fotos de Giovanni expostas no Largo , não resiste e dá um beijo de despedida no antigo amigo. Apesar da proximidade, Luísa não consegue solucionar um dos tantos mistérios envolvendo a vida e o passado do antigo sem abrigo do Intendente: a origem do nome Giovanni.
Afinal, o verdadeiro nome de Giovanni, viriam a saber apenas depois os mais próximos, era José Carlos Dias. “Não sei como acabou por se chamar Giovanni, sempre o conheci como Giovanni e era assim que ele pedia para ser chamado”, conta.
“Giovanni ou Giggi, mas nunca o seu nome verdadeiro”, completa Raquel, que é capaz de pelo menos fazer uma estimativa da idade do homenageado do almoço. “Penso que quando faleceu rondava os 78 anos”, diz. “Ouvimos também que teria um irmão, mas ele também não falava disso e nunca soubemos se era verdade.”
Há outras histórias sobre o passado de Giovanni que seguirão difíceis de se confirmar. “Um dia, disse-me que tinha sido marinheiro”, afirma Luísa, enquanto serve as generosas doses da feijoada preparada por ela. Já Raquel ouviu outras versões. “Falava em ter ido com a tropa para lutar nas colónias e de ter participado como militar do 25 de Abril”, diz.
Nem o amigo Nelson é capaz de traçar o passado do antigo companheiro de cena no D. Maria II.
“O Giovanni falava muito bem, era um ótimo contador de histórias. Mas nunca se saberá onde terminava a história e começava a realidade. Para mim, disse uma vez que foi jogador de futebol, servido na Legião Estrangeira, que tinha sido piloto e toureiro”, conta.
Em 2020, Giovanni contraiu covid-19 e foi internado. A doença, somada às marcas deixadas por uma existência dura, fragilizou o estado de saúde dele ao ponto do próprio pedir para deixar a casa que levou décadas a ser conquistada para viver em centros de acolhimentos para idosos, onde passou os últimos meses de sua vida.
Giovanni morreu idoso, sem perder uma certa inocência pueril.
“Às vezes, quando conversava connosco, o Giovanni entrava no mundo dele”, conta Nelson, posando ao lado da fotografia onde aparece com o amigo. “E quando a gente entrava no mundo dele, voltava a ser criança de novo.”
O Pai Natal do largo
Certo é que já cumpriu a função de Pai Natal da edição de 2018 deste mesmo almoço, como mostram as dezenas de fotografias da exposição. Ali está ele, Giovanni vestido de bom velhinho, sentado no seu trono, ladeado pelas dezenas de amigos que fez desde que entrou no “radar” da cooperativa Largo Residências.
“Foi em 2012, justamente na primeira edição do almoço comunitário, aqui mesmo no Largo do Intendente. O Giovanni chamou-nos a atenção, pois começou a cruzar o largo vestido sempre com uma roupa diferente, tirada do nosso bazar solidário. Provavelmente, para honrar as apostas nos jogos de dados que costumava frequentar na rua dos Anjos”, lembra-se Raquel Fernandes, mediadora cultural da cooperativa.
Raquel conta ainda que, apesar do primeiro contacto oficial se ter dado em 2012, já se tinha cruzado outras vezes com Giovanni por Lisboa, a conversar com os seus “fantasmas” pela Baixa.
“Era ainda miúda e o Giovanni andava o ano todo pelo Rossio, sem t-shirt, a falar sozinho e a gritar. E fazia-me impressão aquele homem magro a conversar com seus fantasmas, de peito nu até mesmo no inverno”, recorda-se Raquel Fernandes.

A convivência com os mediadores da cooperativa começou a abrandar o espírito selvagem de Giovanni. “Passamos a desafiá-lo a participar nos nossos eventos. Ele gostava muito dos nossos espetáculos musicais, às sextas-feiras, e o curioso é que ao contrário do Giovanni que conheci no Rossio, passou a portar-se bem e a ficar em absoluto silêncio”, conta Raquel.
Foi em 2016 que Giovanni, ainda como sem-abrigo, tomou parte do projeto da Companhia Limitada que levou dezenas de não-atores ao palco do D. Maria II. Apesar dos sintomas da diagnosticada esquizofrenia, compareceu aos três meses de ensaio e foi à cena, como mestre de cerimónia do espetáculo e no sketch em que interpretava um pugilista, na companhia do amigo Nelson.
No camarim do D. Maria II, Giovanni deu a senha para, após décadas, deixar as ruas. “Estava a preparar-se para o espetáculo quando, de repente, disse que gostaria de viver ali, naquele camarim do Teatro D. Maria II”, recorda-se Raquel.
Os mediadores do Largo Residências trataram então de inscrevê-lo no projeto Housing First e, em meados de 2017, Giovanni voltou a ter um teto. Uma condição que o permitiu ainda ser devidamente medicado e controlar os sintomas da esquizofrenia. Tanto que não pensou duas vezes em aceitar o convite para passar a consoada de Natal com a família de Raquel.
“Apesar de uma certa ansiedade de alguns parentes sobre como tudo ia correr, a minha mãe no final da ceia chamou-me ao canto da sala e disse, baixinho: ‘Olha que o Giovanni sabe das coisas, sabe como arranjar um bacalhau perfeitamente’”, lembra-se.
Giovanni partiu, mas ainda há muitos outros Giovannis no Intendente e em Lisboa. “O trabalho não cessa, não para, e mesmo assim não dá conta da realidade de quem vive nas ruas e precisa de ajuda”, afirma Raquel. “É um trabalho enorme, que não aparece na planilha do Excel, mas que é igualmente satisfatório.”

Um presente de Natal para o Intendente
Por volta das três da tarde, quando a sombra caía sobre as mesas dispostas no largo, Marta Silva usou o microfone para um balanço do evento. “Foram servidas 400 refeições”, anunciou a diretora artística do Largo Residências, abrindo o sorriso sob o barrete do Pai Natal que vestia. “Quem não se serviu, é melhor correr, embora haja outros tipos de comida”, avisou.
E havia mesmo. Para além da feijoada preparada por Dona Luísa, acompanhada por arroz branco, bolos reis, rainha e formigueiro estendiam-se por uma mesa, ao lado de croquetes e filhoses. Apesar da fartura, como havia previsto Marta, em poucos minutos já não havia mais para quem quisesse.
“No ano que vem, vamos preparar-nos para servir 500 feijoadas”, disse Marta, sob o olhar atento de quem põe a mão na massa (ou melhor, no feijão) – Luísa. “Chegará o dia em que vamos servir mil pessoas, esse é o objetivo”, completou.

Desde a primeira edição, em 2012, o Almoço de Natal só não ocorreu uma única vez, em 2020, por causa da pandemia. Naquela ocasião, os organizadores distribuíram “sonhos” aos sem-abrigo do Intendente, uma forma de garantir algum tipo de celebração natalícia e reforçar que os sonhos, apesar das incertezas de tempos sombrios, ainda eram para serem sonhados.
Em 2022, o almoço aconteceu no Quartel da GNR Largo do Cabeço de Bola, na Estefânia, para onde o Largo Residências se mudou após perder a sede no Intendente. Este ano, estão em vias de se mudar e ocupar uma área no antigo hospital Miguel Bombarda. Por isso, o Almoço de Natal voltou este ano para o Largo do Intendente.
“A população do Intendente precisa disto, precisa de todos nós”, reforça Marta, observando Luísa, já livre da missão de servir a feijoada, a juntar-se aos moradores do Intendente que bailavam no salão improvisado no largo, ao som da Rádio Olissipo. O sorriso de volta aos rostos marcados pela dor e pelo sofrimento, num digno conto de Natal em Lisboa.


Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 51 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa. É autor de sete livros, dois deles com Lisboa como personagem, Alojamento Letal e O Mau Selvagem.
✉ alvaro@amensagem.pt

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