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Lá pelas tantas, diante das panelas fumegantes, dona Luísa desconversa sobre a receita da feijoada que prepara. “Faço tudo sem medir”, confessa, a girar a imensa colher de pau, engolida pela cortina de vapor que emana dos tachos. “E se não der certo, não faz mal: as coisas que dão errado, sabem melhor”, completa.
O que dá errado saber melhor é a receita de dona Luísa para a feijoada e também para a vida. A lisboeta nascida em Angola há 66 anos carrega no corpo as marcas da dura existência desde que aportou a Lisboa, em 1964, então com sete anos, o início de uma história marcada pelo abandono, a vida nas ruas, a prostituição, o cancro.
Uma história também marcada pela resistência de uma mulher de têmpera forte como as panelas diante dela, de espírito resistente às altas temperaturas da dor e do sofrimento, características que a muniram da força necessária para dar a volta às intempéries da vida e sobreviver para contar essa narrativa dramática, comovente e bela.


Apesar dessa força, dona Luísa reconhece que não teria conseguido sem a ajuda dos vizinhos, amigos e conhecidos do Intendente, o pequeno largo sendo a imensa galáxia por onde gravitou por esses anos todos.
Onde dormiu com estranhos e ao relento, deu a vida um filho e quase perdeu a própria vida, onde aprendeu tudo o que sabe.
“Aprendi tudo, menos a maldade”, ressalva Luísa, a colher de pau a girar nas panelas, libertando o perfume da comida que ganha as ruas dos Anjos, extrapolando as grossas paredes do antigo quartel da GNR em Santa Bárbara, nas Residências Largo, que para aqui vieram.
Aqui, pela primeira vez, foi este ano o almoço de Natal que há dez anos Luisa organiza como forma de agradecimento ao Intendente que lhe estendeu a mão.
No antigo quartel, um telefonema a São Pedro
A chuva teima ameaçar a grande refeição, preparada ao ar livre, no pátio do Quartel Cabeço da Bola, as mesas ainda vazias diante da antiga messe dos militares.
“Não vai chover, nunca choveu em nenhum dos almoços até agora”, garante Marta Silva uma das organizadoras do evento. “A Dona Luísa tem uma cunha com São Pedro.”

Marta é diretora da Largo Residências, a cooperativa cultural e de ação social fundada em 2011 que, assim como dona Luísa, tinha sede no Intendente até ser obrigada a deixar a sede original, expulsa do bairro pela especulação imobiliária.
Este Natal é também o primeiro na nova casa, no antigo quartel da GNR.
Os caminhos da cooperativa e de Luísa cruzaram-se há dez anos, na realização da primeira feijoada solidária, ainda no Intendente. “A Luísa comentou que tinha o desejo de preparar uma refeição de Natal para aquelas pessoas do largo que, assim como ela, viviam na rua e nem sempre tinham o que comer”, lembra-se Marta.

Coube à Marta e à sua equipa a logística organizar tudo para que o desejo de Dona Luísa se transformasse em realidade.
Da primeira feijoada, servida a mais de duzentas pessoas, a relação afetiva ganhou laços também profissionais e o convite para trabalhar na cooperativa foi o início da sonhada despedida de dona Luísa das duras noites nas ruas.
Desde então, a cada Natal, a cena repete-se, o ballet de mãos que leva dezenas de quilos dos ingredientes da feijoada de um lado para o outro. Mãos que armam as mesas e distribuem os pratos com petiscos. Mãos que organizam os pratos e talheres na bancada e que abrem garrafas de refrigerante e de vinho.
Marta olha para as ameaçadoras nuvens escuras. “Luísa, já falou com São Pedro?”, grita, enquanto organiza uma pilha de guardanapos. Da cozinha, ouve-se a resposta numa voz tranquila: “Já liguei para ele, sim.”
Poucos minutos depois, como num milagre, alguns rasgos em azul cortam o sisudo cinza do firmamento.
As duas vidas de Luísa e de Luzia
A cozinha é agora uma casa de máquinas, as panelas a operarem a todo o vapor, acompanhadas de perto pelo olhar atento de Luísa, uma cozinheira que aprendeu o ofício como aprendeu tudo, sozinha. Por ela própria, o Intendente como sala de aula.
“Orientei-me na rua, foi sempre assim”, resume a mulher que desembarcou em Lisboa num dezembro chuvoso igual a este, vinda de Angola, ainda uma criança, criada por um casal cabo-verdiano.
“Tive uma educação dura, mas necessária”, recorda-se, fazendo rolar as cenouras em rodelas pela tábua de madeira rumo ao fumegante tacho.

Uma educação tão dura que a inesperada gravidez aos vinte anos foi o “convite” para sair de casa. “Tive que me desenrascar sozinha”, relembra, sobre os tempos em que se viu obrigada a viver na rua, sem casa, sem teto, o único quarto, a única mobília uma cama, onde se deitava não para descansar o corpo, mas para trabalhar.
Foi nestes tempos difíceis que Luísa “nasceu”.
“Meu nome, mesmo, é Luzia Martins”, continua. “A Luísa surgiu, pois quando comecei na prostituição não queria ter o meu nome de verdade metido nisto. Por isso, lá no Intendente, ninguém até hoje sabe quem a Luzia é, mas pode perguntar pela Luísa que todo o coxo, todo o bêbado, vai saber quem é”, diz, sem baixar o olhar.
Apesar dos dias e noites difíceis na cidade para onde foi trazida de Luanda para viver, Luísa não guarda o mínimo rancor. Prefere ver Lisboa não como o sítio no qual esteve no limiar da morte, mas sim, o oposto.
“Adoro Lisboa e por um motivo simples: foi Lisboa que me deu a vida”, reforça.
Os tempos difíceis ficaram para trás, mas Luísa nunca mais voltou a ser Luzia Martins. As memórias não são para ser enterradas, esquecidas, mas um passado sempre presente, a prova irrefutável de uma vitória.
“A minha vida foi uma luta, mas também foi uma alegria, uma alegria por nunca ter desistido de nada. E nem vou desistir”, garante.

Um dos segredos para não desistir parece estar em não se calar, falar sempre sobre tudo e com todos, seja na comunicação direta com São Pedro ou com o próprio corpo.
“Tenho dito ao meu coração para resistir. Enquanto ele seguir, sigo também”, diz, sobre o diálogo com o órgão que pulsa do mesmo lado onde um cancro surgiu.
A doença foi diagnosticada em 2009 e travou um embate severo com Luísa, no único momento da vida em que pensou não ter mais forças para reagir.
“Foi durante a quimioterapia. Estava muito fraca, quase para desistir. Mas pensei no meu filho e na minha neta que havia acabado de nascer, que precisavam de mim. E não desisti.”
Não, mesmo. Recuperada, Luísa não só ajudou a criar a neta como os outros dois netos e, mais recentemente, três bisnetos. “Essa etapa eu já venci. Agora, é ver o que vem pela frente”, diz, o capítulo doença uma página virada na sua biografia. A saúde, salvo uma constipação ou outra, segue bem.
“Hoje, quando tenho uma dor de cabeça, tomo duas cervejas, um banho frio e vou dormir, que passa”, prescreve mais uma de suas receitas.
Feijoada que sabe a gratidão e amor proibido
A única receita que dona Luísa não revela é a da feijoada, talvez porque a receita seja realmente essa, não haver uma ordem, apenas a perceção de que as coisas que dão errado, sabem melhor.
“É como um amor proibido”, filosofa dona Luísa, adicionando mais couve à feijoada. “Ninguém é certinho e a comida também não”, remata.

Para além dos limites da cozinha, um burburinho denuncia a chegada dos comensais. Marta e a equipa já terminaram a montagem do balcão e diante dele forma-se uma fila que, nas próximas horas, não diminuirá de tamanho.
Um DJ embala a espera na batida de uma morna.
Dona Luísa surge em seguida, enxugando as mãos no avental floral, recebida com beijinhos de uns, abraços de outros.
Circula pelo pátio do quartel, já repleto, ziguezagueando por entre as mesas, até assumir o posto atrás do balcão, ao lado das duas imensas panelas, trazidas da cozinha pelos dois homens mais fortes da equipa.




“Quem tiver mobilidade reduzida levante a mão que alguém vai levar a feijoada”, adverte Marta, à frente do balcão, ladeada por uma dúzia de braços que se revezam freneticamente por entre panelas, pratos, talheres, copos e guardanapos, na apoteose do almoço solidário de Natal.
É também a hora de o jornalismo investigativo começar e a reportagem da Mensagem buscar o seu lugar na fila. Em pouco mais de meia hora já é possível confirmar que uma feijoada pode saber a um amor proibido se feita com os ingredientes da vida, o mesmo que fazem as coisas erradas saberem infinitamente melhor.

A tarde segue o mesmo ritmo, a fila sem dar tréguas a dona Luísa, incansável, diante das panelas, movida pelo combustível da gratidão.
Lá pelas tantas, será possível sentar e admirar a felicidade nos olhos dos seus convidados, já a pensar no próximo ano, quando este pequeno milagre de Natal voltar a acontecer.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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