Foto: Líbia Florentino.

A fila diante da balança não dá trégua. Num tráfego intenso, frutas e verduras trocam de mãos e são pesadas, ensacadas e devolvidas aos fregueses. Um cliente surge e faz um comentário provocador sobre o recente resultado da bola. A mulher por trás da balança na bancada sorri e garante que, na próxima vez, será diferente. 

O Mercado de Benfica vai bem, obrigado. Está vivo, pulsa. Os fregueses entram em bom número pelas portas laterais. Segundo a Junta de Freguesia de Benfica, a rotina é sempre a mesma: chova ou faça sol, passam pelo mercado cerca de 24 mil pessoas por semana, oito mil apenas aos sábados.

Porém, apesar de toda a vitalidade, o Mercado acusa o passar dos anos. Cinquenta e dois deles, para ser mais preciso. Tempo suficiente para a sujidade escalar o telhado e instalar-se na estrutura circular, para várias das lajotas nas paredes, no chão ou nos balcões partirem, para a humidade dar cabo dos cabos elétricos e a gordura entupir os canos.

A lista dos reparos necessários neste cartão postal de Benfica é grande.

Reforma prometida para o cinquentenário mercado deveria ter terminado no verão de 2023, mas esbarrou no descontentamento dos comerciantes. Foto: Líbia Florentino.

“O mercado obviamente precisa de melhorias. Há um tempo, a porta lateral passou uma semana fechada pois não se conseguia abri-la”, aponta Ana Dias em direção à entrada próxima à movimentada banca de frutas e verduras onde os clientes aguardam na fila para pesar os produtos. 

Praticamente todos os comerciantes do mercado e ainda a Junta de Freguesia de Benfica e a Câmara de Lisboa concordam que o Mercado merece uma renovação. 

E a renovação foi anunciada com grande pompa em 2021 e programada para estar pronta no verão de 2023… mas ainda não saiu do papel. O impasse está entre a decisão da Câmara de Lisboa do fecho total do mercado por dois anos e o temor dos comerciantes de que as portas encerradas por tanto tempo trariam prejuízos incalculáveis.

Ou pior: acabaria por “matar” o Mercado de Benfica.

Foto: Líbia Florentino.

Uma renovação sob o signo da polémica

Quando foi anunciada a renovação há quase três anos, a Junta de Freguesia de Benfica explicou que as obras aconteceriam por fases, quadrante a quadrante do Mercado. O que estivesse em obras seria isolado, mantendo as demais áreas em funcionamento, o que garantiria a operação o mais próximo possível da normalidade. 

À época, porém, já houve quem discordasse da decisão. 

Os comerciantes abrangidos em cada uma das fases da obra seriam transferidos para a parte externa do mercado e realojados em contentores, o que na opinião de muitos deles, principalmente entre peixeiros e talhantes, não era uma solução operacional viável. 

“Poderia até funcionar com quem trabalha com os secos, mas nunca na peixaria, onde arranjamos os peixes e é preciso fazer com frequência o degelo das bancadas. Para onde iriam a água e os resíduos do nosso trabalho numa bancada no meio da rua? Seria impossível!”, argumenta Liberdade Soares, peixeiro em Benfica há 28 anos.

O peixeiro Liberdade Soares segue cético quanto uma reforma radical no mercado: “Por que inventar para estragar?”. Foto: Líbia Florentino.

Liberdade – que recebeu o nome por ter nascido poucos dias depois do 25 de abril – é uma espécie de influenciador digital do Mercado, bastante ativo nas redes sociais, onde é conhecido como Alexis Lapas. Os seus comentários já garantiram polémicas com políticos e redundaram num imbróglio e o bloqueio de sua antiga conta na rede social X, devidamente reposta num novo perfil.

O peixeiro-influencer naturalmente tem sido uma das vozes ativas nas reuniões que se sucedem – quatro até agora, e ainda contando – entre comerciantes, a Junta de Freguesia de Benfica e os arquitetos do atelier Oitoo, responsável pelo projeto da reforma do mercado.

Uma das maquetes do Atelier Oitoo.

Os peixeiros, por sinal, travaram desde o início uma batalha particular com os idealizadores da reforma, que previa a retirada da peixaria do centro do mercado, deslocando-a para uma das laterais. A mudança foi vista como perda de visibilidade e os comerciantes fizeram-se ouvir, conseguindo reverter a decisão, mantendo-se onde estão no novo projeto.

Entretanto, a polémica inicial sobre a viabilidade ou não da obra faseada não havia nem sido contornada quando surgiu a informação de que a solução original pretendida não seria mais possível e a saída teria de ser, para o desespero dos comerciantes, fechar o Mercado de Benfica numa reforma total por um período estimado entre 18 e 24 meses.

Segundo a Junta de Freguesia de Benfica, a decisão em fechar o mercado por quase dois anos foi apresentada pela Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU), empresa da Câmara de Lisboa responsável pelas obras urbanas, baseadas em limitações técnicas na execução fase a fase.

“A SRU justificou que a Câmara de Lisboa não tinha as plantas de eletricidade, canalização e esgoto do prédio e era impossível fazer as reparações por partes, pois não se saberia ao certo o que se encontraria ao começar. É estranho, pois o Mercado de Benfica não é um castelo do século XV, mas não há muito o que a Junta possa fazer”, diz o presidente da Junta de Benfica, Ricardo Marques (PS)

O autarca explica que a proposta da Câmara de Lisboa prevê a relocalização de todos os comerciantes para o jardim em frente ao mercado durante os quase dois anos de obras. Após o fim das obras, a praça e o jardim passariam tmbém por uma requalificação patrocinada pela CML para devolvê-la aos fregueses.

Após reuniões com a Junta de Benfica e a Câmara, os peixeiros conseguiram permanecer no centro do mercado no futuro projeto. Foto: Líbia Florentino.

A decisão, contudo, não resolve a dúvida de alguns dos comerciantes em relação à logística de funcionamento de alguns negócios em contentores, adicionada ao temor geral de que fechar um mercado que, apesar dos problemas dá sinais claros de vitalidade, seja um tiro no pé.

Ou no coração. 

Renovação, sim, um mercado para turistas, não

O cutelo corta o ar com força e serra em duas partes a coxa da perna de um peru. Afiado também é o discurso do talhante Hélder Covas, que assim como manuseia as carnes do talho que herdou do pai e um dos comerciantes fundadores, preferia que as obras fossem “por partes” e de uma maneira menos radical.

“O mercado precisa de obras, é óbvio, basta ir à casa de banho e ao cais para perceber. Se o prédio não fosse da autarquia mas de um privado, já estaria fechado há tempo. Mas a renovação, por sua vez, não precisa ser total, mas pontual. O que está em curso talvez seja outra coisa, uma mudança de perfil do mercado”, afirma o talhante. 

O talhante Hélder Costa concorda com uma reforma no mercado, mas não numa possível alteração de perfil. Foto: Líbia Florentino.

A desconfiança de Hélder baseia-se em alguns sinais emitidos pelos arquitetos responsáveis pelo projeto, nas eventuais incursões pelo mercado. “Numa delas, avisaram que a montra onde expomos os produtos terá de ser removida, pois o conceito agora é de um mercado open space”, aponta. 

Ainda segundo Hélder, os comerciantes foram alertados de que terão de retirar toda a estrutura atual dos espaços para que sejam padronizados. “Sou o único talho aqui com casa de banho e balneário para o uso dos funcionários e, de acordo com o novo projeto, vou perder isso”, explica. 

Entrincheirada na bancada de frutas, Ana Dias concorda com o vizinho talhante.

“Limpar, pintar, trocar alguns azulejos partidos, renovar a eletricidade e a canalização, sim. Mas mudar totalmente a cara do mercado é um risco, pois os clientes gostam do mercado como ele é. E fechá-lo por, no mínimo, dois anos, ainda é pior ainda, pois pode acabar por matar o mercado”, afirma a comerciante.

Ana Dias lembra ainda que o atual projeto prevê a troca das atuais bancadas fixas por outras móveis e retráteis, supostamente para que possam ser recuadas para usar a área interna do mercado noutros eventos.

“Mas há bancadas minhas com 500 quilos de melão, por exemplo. Quem é que vai andar com esse peso todos os dias?”, questiona Ana.

Ainda segundo a comerciante, as bancadas novas no projeto serão menores do que as atuais, em nome da circulação interna. “Tenho quatro bancadas, com cerca de 20 metros de área. Ainda não fiz as contas de quantos metros vou perder com as novas bancadas”, lamenta Ana.

Ana Dias critica redução de tamanho das novas bancadas, projetadas para serem móveis. Foto: Líbia Florentino.

Os comerciantes temem que se queira que o Mercado de Benfica dê uma piscadela de olhos aos turistas. “Estão a brincar, pá! O mercado sempre foi para os vizinhos e não está virado para os turistas”, reforça a comerciante que, 22 anos atrás, mal saiu do liceu entrou no mercado para trabalhar com os pais.  

O presidente da Junta de Freguesia de Benfica nega qualquer tentativa de “gourmetização” do Mercado de Benfica, como nos moldes do ocorrido com os mercados de Campo de Ourique, ou de uma forma mais radical ainda, na conversão do antigo mercado da Ribeira no atual Time Out.

“Salvo a nova padronização das bancadas, o interior do Mercado de Benfica será praticamente o mesmo. O que se pretende é criar uma possibilidade de, na parte externa, contar com esplanadas e outros serviços capazes de concorrer com a oferta que existe ao seu redor”, afirma Ricardo Marques. 

CML diz que divergências foram ultrapassadas

Com a habilidade que só os anos de prática concedem, o peixeiro Liberdade arranja um robalo, sob o olhar atento da freguesa. “O mercado é funcional como está e precisa apenas de tratar de problemas pontuais”, diz, com a voz grave de barítono, enquanto entrega à cliente o peixe selado num saco de plástico.

“Por quê inventar para estragar?”, questiona. 

Procurado pela Mensagem para responder sobre as críticas dos operadores do Mercado de Benfica de não terem sido ouvidos sobre a reforma do equipamento, o estúdio Oitoo, responsável pelo projeto arquitetónico, respondeu que qualquer comentário referente à reforma do Mercado de Benfica deve ser dado exclusivamente pela Câmara de Lisboa. 

A autarquia, por sua vez, nega qualquer divergência entre a proposta de reforma e o desejo dos comerciantes. 

“A estratégia para a requalificação do Mercado de Benfica tem sido definida em estreita articulação entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Junta de Freguesia de Benfica (JFB), numa colaboração estabelecida em inúmeras reuniões com a SRU e a equipa projetista e formalizada em decisões concretas”, respondeu a CML por email.

Segundo a Câmara de Lisboa, as partes chegaram a uma solução na última reunião, realizada em fevereiro deste ano.

“Após várias modificações solicitadas por parte da JFB, no início de 2024 foi estabilizada a solução, estando em atualização os projetos para o lançamento do concurso de empreitada da obra e do mercado provisório”, afirma a CML.

Mas para a Junta de Freguesia de Benfica, que é PS, faltam detalhes para o martelo ser batido. O presidente Ricardo Marques aposta na próxima reunião descentralizada da Câmara em Benfica, no dia 21 de março, para que tudo fique resolvido.

“Não sei os outros, mas já coloquei o meu nome na lista de participação”, diz o autarca, sobre o que promete ser mais capítulo numa novela ainda sem data para terminar.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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4 Comentários

  1. A intervenção prevista no Mercado Municipal de Benfica visará apenas o equipamento municipal e não o formato comercial, e quando assim é…

  2. Há pessoas que fazem regularmente vários quilómetros para irem ao Mercado de Benfica. Muita oferta, preços acessíveis, mantendo a qualidade.
    A necessária intervenção deverá ser mais no sentido da manutenção do que da remodelação.
    No dia em que no Mercado de Benfica os preços forem iguais a qualquer outro mercado ou hipermercado, deixa de ser “O” Mercado de Benfica.

  3. Assisti, da janela, à construção do mercado; passei grande parte das tardes da infância a jogar à bola na entrada que dá para o jardim; mais de cinquenta anos depois, vivo do outro lado da cidade, mas todos os sábados, ao fim da manhã, quando os preços baixam um pouco para esgotar as bancas, me abasteço de tudo o que posso para a semana. No último sábado trouxe uma pescada fiada, porque já não tinha mais notas, e a vendedora insistiu — que pagaria para a semana.

    Este é o último mercado vivo de Lisboa. Está vivo porque ficou esquecido. Tem problemas? Claro que tem — são cinquenta anos com pouca manutenção — mas o problema maior que enfrenta é a reabilitação da sua identidade. O mercado não precisa de concertos nem de recitais de poesia para se poder postar fotografias e vídeos; o mercado precisa de continuar a vender coisas boas e baratas às 24 mil pessoas que ali vão, e muitas são mesmo pobres, pessoas que regressam a casa de autocarro carregando os sacos possíveis a cada dia. O mercado precisa do talho que congrega uma vasta comunidade africana da Venda Nova, da Damaia e da Buraca, precisa da banca onde a filha (cujo nome protejo) ajuda o pai ao sábado, que vende muitas coisas da sua horta e que nos arranja batatas olhos de perdiz, se lhe pedirmos pelo telefone até sexta-feira. Do que o mercado não precisava era de uma banca da Nescafé que substituiu uma outra de fruta barata e que não resistiu às rendas na pandemia, nem uma banca de leitão do Caneira (que é bom, todos sabemos, mas não tem de contaminar tudo e podemos comprá-lo no Continente ou em Negrais).

    O Mercado de Benfica precisa apenas que se reparem as coisas que estão danificadas e precisa, acima de tudo, que os autarcas canalizem os seus sonhos húmidos de gentrificação para outras coisas e se esqueçam dele por mais cinquenta anos.

  4. Obrigada por uma resposta tão emocionada! Gostavamos muito de fazer uma visita ao mercado consigo… Que diz?

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