Há meio século, a rotina é praticamente a mesma: o relógio ainda nem marca cinco da manhã e os comerciantes já se juntam nas traseiras do Mercado de Benfica, almas silenciosas e irrequietas à espera que a pesada porta de ferro deslize e franqueie o acesso ao “cais”, como é conhecida a pista por onde desfilam carnes, peixes, aves, frutas, vegetais, grãos e toda a sorte de produtos que estarão à disposição dos clientes assim que o gigante de pedra despertar.
Do lado de fora, o silêncio é quebrado aos poucos pela montagem do vizinho Levante, o espaço por onde se estendem bancas com roupas, sapatos, perfumes e outras quinquilharias. O mercado opera em sinergia com a “feira dos ciganos” – uma referência à etnia predominante entre os comerciantes – beneficiando de clientes que após levarem umas calças de ganga ou uns ténis, acabam por lembrar-se que lá em casa faltam batatas ou que um peixinho ia bem para o almoço.
Duas peças que se encaixam num puzzle aparentemente perfeito, mas que visto de perto exibe as suas falhas, vícios e fadigas, fruto da ação impiedosa do tempo. É justamente para combater a obsolescência física e operacional provocada pelo passar dos anos que a Junta de Freguesia de Benfica anunciou a requalificação do Mercado de Benfica para 2022.
Uma obra orçamentada em 7 milhões de euros que pretende igualmente “rejuvenescer” o espírito do cinquentenário mercado, alterando a estrutura interna e externa para que se adapte às novas exigências de mobilidade, lazer e convivência, atraindo novos – e jovens – clientes, a garantia de que o coração do gigante de pedra continue a pulsar nas próximas décadas.

Atrair os jovens, sem esquecer dos velhos
O atelier de arquitetura Oitoo, em parceria com o escritório de paisagismo HAHA, venceu o concurso público de requalificação promovido pela Lisboa Ocidental SRU (Sociedade de Reabilitação Urbana). O projeto ainda em fase inicial prevê uma reforma profunda nas dependências do equipamento. “Da atual estrutura física, vamos preservar apenas esqueleto”, resume Nuno Rodrigues, integrante da equipa de arquitetos responsável pela requalificação e modernização do edifício.

O “esqueleto” a que se refere Nuno é a base de betão circular, as paredes e colunas que suportam o teto em forma de abóbada e dão ao mercado a curiosa aparência de um disco voador de estilo modernista que aterrou no centro de Benfica. O resto vai abaixo, incluindo os balcões de pedra, a serem substituídos por metal, mais fáceis de lavar, e o piso, que será trocado e alçado até o nível do acesso às lojas que circundam o mercado.
“A intervenção ambiciona modernizar o espaço para apelar aos jovens, sem esquecer das necessidades dos mais velhos”, explica o arquiteto, alertando para o desnível entre o soalho alquebrado e a entrada de um talho, propício aos tropeções mais idosos. “As lojas também serão reformadas, para que daqui se veja o exterior do mercado”, continua, o dedo agora apontado para a montra repleta, com as peças de carne a taparem a vista da rua.
O setor da peixaria, atualmente destacado no centro do edifício, será deslocado para uma área ainda a definir. “Os peixeiros geralmente são os primeiros a terminarem o trabalho e não é interessante para quem entra ter a impressão de que o mercado está para fechar”, justifica o arquiteto. Nem a calota no topo do teto escapará, cedendo lugar a um revestimento transparente em acrílico, que sobressairá em relação ao telhado, a fim de permitir a maior circulação de ar e a entrada de luz e raios de sol.
A parte do “cais” também será requalificada. O objetivo é retirar as casas de banho e evitar a circulação do público, garantindo a privacidade dos funcionários no trânsito de mercadorias. O espaço de carga e descarga também será alterado para dar às “traseiras” um aspeto de mais uma entrada do edifício. “Não faz sentido que uma construção circular tenha uma parte de trás ou da frente”, avalia o arquiteto.
Veja aqui algumas imagens do novo mercado projetado:
O empenho em retirar do setor o estatuto de “traseiras” do mercado justifica-se também pela intenção de se levar para lá o Levante. O cuidado é para não dar a impressão aos feirantes de estarem a ser transferidos para uma parte menos nobre. “A requalificação vai abrir uma ligação do mercado a outras vias e terá um parque de estacionamento, ou seja, será efetivamente mais um fluxo de entrada e saída de clientes”, diz Nuno.
Os atuais tabuleiros fixos do Levante darão lugar a estruturas retráteis que permitirão um duplo uso do local. “Para que nos dias e horários em que não houver o comércio tradicional, o espaço receba outros eventos, como concertos, feiras típicas, reforçando o caráter de centro de convívio cívico do mercado”, completa Nuno.
A retirada do Levante faz parte da estratégia de se abrir o mercado para o exterior, talvez a fase mais ousada – e delicada – da reforma, ao propor a retirada de vagas de estacionamento em nome da implantação de uma cultura de esplanada no Mercado de Benfica. “Ninguém tem vontade de passear aqui, entalado entre os carros”, diz Nuno, apontando para os veículos caoticamente estacionados em dupla fila.

As atuais 120 vagas em redor do mercado serão desativas e transferidas para o já citado parque de estacionamento, a ser construído no que serão as antigas traseiras do prédio. O alcatrão por onde atualmente os carros circulam será transformado em calçada, ligando-se ao passeio onde hoje fica o Levante, dando vida a uma nova e ampla zona pedonal e a instalação de esplanadas.
O projeto pretende unificar ainda toda a envolvência exterior do mercado para fazer “o espaço público conviver com as pessoas”, destaca Nuno. Um dos passos para que isso aconteça é tornar o conhecido Jardim do Mercado de Benfica, que na verdade se chama Jardim Francisco Ludovice, parte integrante da área pedonal do mercado, além da instalação de uma ciclovia.
Esplanadas em lugar dos carros
O investimento em restauração parece ser o grande trunfo para atrair novos clientes para o mercado. “O projeto prevê a instalação de cinco ou seis restaurantes, que funcionarão até à meia-noite, de forma a que o mercado, que hoje encerra às três da tarde, praticamente nunca feche”, diz o presidente da Junta de Freguesia de Benfica, Ricardo Marques.
O presidente não crê numa resistência dos comerciantes em relação à retirada dos lugares para os carros. “Digo com toda a tranquilidade, pois já falei com eles. Atualmente, os lugares são usadas pelos comerciantes, o que impede os clientes de estacionarem, atrapalhando o próprio negócio. A alternativa no projeto é o parque para estacionamento rápido, com permanência de 15 minutos ou, no máximo, meia-hora”, explica.

Uma dúvida entre os comerciantes prende-se com o modus operandi da reforma, que acontecerá sem que o mercado feche as portas. Os arquitetos ainda não decidiram se irão isolar a área por setores, aumentando a ansiedade sobre o que acontecerá com os negócios desativados durante a obra.
“Era mais simples e rápido fazê-la com o mercado fechado, mas consideramos que isso poderia afastar os clientes”, diz Ricardo Marques. A saída mais viável será temporariamente deslocar as bancas para as partes em operação.
A expansão do horário de funcionamento pode ser outro ponto nevrálgico no pós-reforma, pois obrigará os comerciantes a alterarem a rotina de trabalho. “Sei que quase todos os negócios funcionam a partir de uma microestrutura familiar que se aproveita de o mercado fechar cedo para ir reabastecer. Terão que mexer ligeiramente nos horários, é verdade, mas é preciso lembrar que se trata de uma questão de sobrevivência”, reforça o presidente.
Ricardo Marques também pretende apelar à “questão de sobrevivência” no momento de negociar os novos lugares para os antigos negócios, como as peixarias que deixarão o centro do mercado, e alguns talhos com frente para as futuras esplanadas, que cederão espaço a bares e restaurantes. “Está para nascer uma nova zona em Benfica, com ar mais clean, que trará uma nova vida ao bairro e garantirá a clientela para os próximos 50 anos”, afirma.
O temor do “Efeito Time Out”
Esta não será a primeira reforma no Mercado de Benfica. Desde a sua inauguração, em 1971, o espaço sofreu outra grande intervenção em 1996. “Foi quando trouxeram os ciganos”, lembra dona Emília, a mais antiga comerciante do espaço. Aos 76 anos, ela não só viu nascer o Levante, como também o próprio mercado, onde está desde a inauguração.

Ao contrário do que pode parecer, a chegada “dos ciganos” não foi motivo de preocupação para dona Emília, que ao lado do filho gerem a cantina O Chop Chop. “São eles que atraem os clientes. Não fossem os ciganos, o mercado já teria morrido”, acredita. A comerciante lembra que os vizinhos já vendiam as mesmas roupas e sapatos “ao pé da mata”, não muito longe dali, quando foram convidados a ocuparem o passeio ao lado.
À época, a anexação do Levante foi também uma “questão de sobrevivência” para o Mercado de Benfica. O surgimento dos centros comerciais e a proliferação dos supermercados foram golpes difíceis de assimilar e muitos mercados chegaram mesmo a fechar as portas. “Isto aqui foi bom no começo, de 1974 até 77. Depois, começou a cair, cair e em 94, 95, não se via viva alma no mercado”, lembra-se.
Assim como outros comerciantes, dona Emília diz que soube da reforma apenas quando foram entregues pela Junta os panfletos com a maqueta do que será o futuro mercado. “Vi, sim, nos papéis, mas não sei se será bom. Tenho medo de que os ciganos se chateiem e decidam ir-se embora”, afirma, sobre um possível descontentamento provocado com o reposicionamento do Levante.
Manuel Ribeiro de Sousa também teme que a mudança de lugar prejudique os negócios no Levante, onde vende sapatos, calças de gangas e acessórios. “Penso que eles haviam de nos chamar e perguntar a nossa opinião antes de decidirem alguma coisa”, diz o vendedor, há 15 anos vizinho do mercado. “Fiz um empréstimo de 8 mil euros para comprar o trespasse e a Câmara (que à época administrava o mercado) ainda mamou mais 600 pelas três bancas. Se a reforma não funcionar, quem vai me pagar o prejuízo?”, questiona.
José Gomes também tem os seus receios. Há 40 anos no Levante, estava lá ao pé da mata quando foram convocados para “salvar o mercado”. Hoje, o dono de cinco bancas questiona se a mudança de lugar e a mudança de ambiente poderão tirar a “mística” do lugar. “Há dois anos, cercaram a feira e já se sentiu diminuir o número de clientes”, diz, apontando para a cerca que delimita a área de comércio. “Assim como o povo, a feira quer ser livre”, filosofa.

Mais cético ainda é um comerciante do mercado que pediu para não ser identificado. “Se a vontade é acabar com tudo, basta fechar as portas, não precisam de gastar 7 milhões”, diz, enquanto limpa com um pano a montra do negócio. Assim como o vizinho do Levante, teme que a reforma retire a mística do Mercado de Benfica, como ocorreu em Campo de Ourique.
“Falo, pois fui a Campo de Ourique ver e conversar com os comerciantes. E olhe que lá ainda há turistas. Imagine em Benfica, que não é a Baixa e não vive de turismo. Há muitas melhorias a serem feitas no mercado, como resolver o mau cheiro do esgoto, mas transformá-lo num novo Time Out não será a solução. Isso das bicicletas e das ciclovias não paga as contas”, diz.
Vocação para ser o melhor de Lisboa
O presidente da Junta de Freguesia concorda que Benfica não é um bairro turístico, mas desvaloriza o perigo de um “Efeito Time Out” como se deu Mercado da Ribeira. “O nosso projeto não vai retirar nada, apenas acrescentar valias ao espaço”, explica Ricardo João Marques, aproveitando para confrontar a ideia de que os comerciantes e feirantes foram excluídos do debate. “Durante um ano houve reuniões e todos tiveram voz ativa”, garante.
Ricardo João Marques lembra ainda que as melhorias prometidas num dos vizinhos ilustres do mercado, o CF Benfica – mais conhecido como Fofó –, vão contribuir para movimentar ainda mais a zona. “Na semana passada foi aprovada a parceria entre o Fofó e o supermercado Lidl, que vai permitir a ampliação das bancadas do estádio, a construção de um novo pavilhão e de dois restaurantes, ampliando a oferta de lazer ao pé do Mercado de Benfica, interagindo assim com a nossa estrutura”, explica.
Para o presidente da Junta, em dois anos, o Mercado de Benfica vai consolidar a posição de “o melhor de Lisboa” e não só. “Cerca de 40 por cento dos nossos clientes são da Amadora e outros 15, de Odivelas. Somos um mercado que abastece três concelhos, visitado diariamente por 4 mil pessoas e por 7 mil, nos fins de semana. Com a reforma, esse número certamente será bem maior”, aposta.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Os Mercados de Lisboa são uma das marcas mais reconhecidas da cidade, daí a importância de os regenerar. O dilema reside na destrinça e na “integração” entre aquilo que deve ser um formato comercial e aquilo que é um equipamento municipal! Conciliar os “tempos” e as “vontades” é o desafio de hoje na regeneração dos Mercados, ainda, Municipais !
O Mercado de Benfica é um dos melhores mercados municipais do nosso país!! Com as obras vai perder a sua identidade, e a sua magia!!! Quando quem manda não percebe, nem tem a experiência do que é um mercado….. dá asneira!!! Mais um espaço que se perde na minha Lisboa!!!
por tudo que acabei de ler não tenho a mínima dúvida de que depois da obra feita tudo ficará melhor mas não deixo de fazer aqui um reparo e será que um parque de estacionamento por baixo do jardim ali existente não ficaria bem não esquecendo também as dezenas de pessoas de idade que ali passam as suas tardes a jogar à sueca espero que se faça alguma coisa por eles e eu que normalmente ali me desloco sei do que falo e a falta que um projeto adequado para evitar o frio e a chuva os velhinhos como eu agradecem José Henrique Pinto Tel 966016075
Será mesmo, ou acontecerá o mesmo que já se verificou noutros mercados.
Mora a 200m do mercado, o estacionamento já é caótico, depois como será?
Primeiro, parabéns ao autor pelo texto – capturou a minha atenção do começo ao fim. Eu vivo há 3 anos a 100m do Mercado e torço por essa mudança. Posso contar nos dedos as vezes que visitei o meu vizinho. O espaço não conversa com os jovens, nao tem espaço de lazer – às 20h o bairro está às moscas. Penso que a remodelação vai conseguir dialogar e trazer para perto todas as gerações que vivem aqui. Todos têm a ganhar com isso.