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A lâmina corta o ar e a cabeça guilhotinada de uma dourada rola sobre o balcão de mármore em direção ao cesto. O gesto repete-se, firme e ritmado. Em seguida, o peixeiro pousa a faca ao lado do corpo inerte do peixe, limpa a mão ensanguentada no avental outrora branco e saca do bolso o telemóvel. A cena é registada e, segundos depois, recebe o primeiro like, depois outro e mais outro e outro…
Se Sevilha se orgulha do seu mítico barbeiro, Lisboa agora também conta com a operística versão de um trabalhador que se divide entre o esgrimir das lâminas e a ribalta, no caso, a ribalta digital, #O Peixeiro de Benfica. Embora descarte o rótulo, Liberdade Soares é o novo influenciador português, com direito a seguidores e a até uma polémica a sério no Twitter, onde assume a identidade de Alexis Lapas.

Há cerca de um ano, o peixeiro intercala a exigente rotina atrás do balcão do Mercado de Benfica com posts bem-humorados sobre situações do cotidiano e as fotografias de peixes, moluscos e crustáceos em posição “comprometedoras”, sejam as imagens de fálicos atuns, ostras insinuando os contornos da intimidade feminina ou o sexy close up nos lábios à Angelina Jolie de uma garoupa.
“Abri a conta em 2013, mas só no ano passado, entediado durante o primeiro confinamento, resolvi retomá-la”, explica Liberdade Soares, 46 anos, nascido portanto em 1974, após o 25 de Abril, o que desde já explica assinar Liberdade como nome e não, apelido. O nome incomum soma-se ao inusitado nick do perfil no Twitter, uma paródia ao antigo futebolista da seleção dos Estados Unidos, Alexis Lalas.

“O Lalas era um tipo engraçado, com os cabelos e a barba cumpridos. Como à época também tinha o cabelo até os ombros, resolvi adaptar o nome dele ao criar a conta”, explica Liberdade, hoje já sem um único fio remanescente da vasta cabeleira. “A ironia é que agora os pelos crescem onde não quero, nos ouvidos e no nariz”, arremata, com o mesmo bom-humor das suas partilhas.
Se a atuação nas redes sociais é recente, há 26 anos Liberdade dá seguimento à atividade familiar na peixaria no Mercado de Benfica, rodeado por douradas, carapaus, salmões, chocos, linguados, lulas, polvos e ovas. “Foi o meu primeiro trabalho, logo após sair da tropa”, conta, enquanto habilmente arranja um tamboril, observado de perto pela mãe, que não faz a mínima ideia das competências do filho para além do balcão da peixaria.
E não é apenas a própria mãe que desconhece a sua faceta digital. Ninguém entre os colegas do mercado ouvira falar de um Alexis Lapas a trabalhar por lá. Para encontrá-lo, foi preciso exibir a fotografia dele com uma certa insistência, até finalmente alguém reconhecê-lo: “Ah, é o Liberdade. É aquele gajo, ali”, indicou uma peixeira, esticando o indicador por baixo da luva cor de laranja para as bancas 1 e 2 do sector I.
Liberdade não se espanta com o anonimato entre os companheiros de trabalho. “Além de mim, talvez haja, no máximo, mais uma pessoa do mercado no Twitter”, calcula. O peixeiro também mantém uma conta ativa no Facebook, mas não acha o algoritmo muito amistoso. “Lá, a interação normalmente fica restrita ao mesmo grupo de seguidores. Aqui, há hipóteses maiores de fazer amizades”, avalia. Aliás foi assim que a Mensagem chegou até ele.
Entretanto, nem no Facebook nem no Twitter ou outra rede social portuguesa, a presença de um alguém a divulgar as habilidades como peixeiro parece ser tão natural como a de outros profissionais liberais, como barbeiros, chefs e personal trainers, alguns já com o estatuto de profissão cool. Basta tentar lembrar qual foi a última vez que um post com uma pessoa a ajeitar um linguado passou na sua timeline.
“Um peixeiro tem de ser um atrasado mental?”, a polémica no Twitter
Linguado ou “Frech Kiss”, como sugere Liberdade numa de suas partilhas. Somada às peculiaridades da profissão, a picardia das publicações, temperadas com duplos sentidos e pitadas de críticas de costumes, talvez contribua para a sensação de que o perfil de Alexis Lapas possa ser falso, como se não fosse possível a um peixeiro, por exemplo, tecer um uma opinião sobre um filme de Woody Allen.
“Sinceramente, não sei o que leva alguém a pensar que um peixeiro não possa ter uma conta numa rede social e, como outra pessoa qualquer, dar suas opiniões”, diz evitando alimentar uma polémica sobre eventuais preconceitos sociais. A diplomacia do peixeiro, porém, não impediu que, como um legítimo influenciador digital, arrebatasse, para além de seguidores, alguns haters.

Entre as críticas que sofreu, a mais famosa – até agora – veio da vereadora (em regime de substituição) pelo PSD em Lisboa, Sofia Vala Rocha, que dedicou alguns minutos, no último dia 16 de fevereiro para contestar uma das mais populares “rubricas” da conta de Alexis Lapas, a #AyCaramba, que consiste em estampar regularmente a fotografia sensual de uma mulher.
A vereadora partilhou na sua própria conta uma galeria com quatro imagens retiradas do perfil do peixeiro para exemplificar como “as mulheres são retratadas nas redes sociais”, segundo ela, “reduzidas a corpos”, “objetos” ou um “monte de carnes”. A publicação foi seguida pelo tradicional debate nas caixas de comentários, com argumentos a favor e contra ambos os lados.
Salvador, na pele de Alexis Lapas, não deixou por menos e respondeu com a sua principal arma: a ironia. Na réplica, prometeu à vereadora ficar mais atento às fotografias que publica no Instagram para um dia dar-lhe o “devido protagonismo”, provavelmente acompanhada por um #AyCaramba.
A rusga digital poderia ter parado por aí, mas não foi o que aconteceu. Ainda no mesmo dia, Sofia Vala Rocha voltou a mencionar o perfil do peixeiro no Twitter, sugerindo que a conta não era real. A resposta de Alexis Lapas veio em tom dos antigos duelos de western, convidando a parlamentar a comparecer em dia e hora marcados no Mercado de Benfica, a fim de comprovar o contrário e, quem sabe, “resolver os seus complexos”, ressaltando ainda que um peixeiro, necessariamente, não precisa ser um “atrasado mental”.
Até onde se sabe, a vereadora não atendeu ao convite. Ao contrário de duas ou três pessoas que, curiosas com a atividade digital do peixeiro, já passaram pela bancada da peixaria interessados numa selfie com o Peixeiro de Benfica. A entrevista ao Mensagem, foi a primeira. Será que outras virão?
“Não sei. Nunca foi a minha intenção usar a conta no Twitter para chamar a atenção para mim ou para o meu negócio. É claro que a publicidade pode ajudar, mas sigo apenas a postar o que gosto”, garante Liberdade, antes de pedir desculpas, retirar um peixe do gelo e deitá-lo no balcão. A faca novamente corta o ar e o influenciador digital volta para a atividade que paga as suas contas. Pelo menos, até agora.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Excelente artigo, que veio esclarecer-me enquanto seguidora do peixeiro mais famoso do país porque, não tinha conseguido apanhar o fio à meada da polémica! Mais ainda porque sou cliente do mercado de Benfica! Obrigada pelo artigo!
Assim entendi toda a polémica…😂💪😜🤪
Obrigado pela entrevista.
E vivam os peixeiros e as peixeiras!
Abraço ao Liberdade
Adorei o texto, o peixe aqui em casa vem do peixeiro mais famoso. É excelente profissional, transmite o brilhante ser humano que é portanto merecedor de ser famoso. Liberdade o profissional que domina peixe com fotos únicas e capacidade de encher o mercado de Benfica com o seu talento. Ele tem talento!!!!!
Tiro o meu chapéu ao Sr. LIBERDADE
Estória engraçada. Já chamar influenciador digital ao homem é um exagero. Vivemos tempos em que a fama é muito rápida…
Há vários anos que compro peixe exclusivamente na banca do Sr. Liberdade, fundamentalmente em razão da simpatia dele e de sua Mãe, D. Cecília. Quanto ao “duelo” com a Exª vereadora, os meus sinceros parabéns ao Sr. Liberdade e ao sentido de humor que demonstrou, faceta que lhe desconhecia. Pra tabaco, como se costuma dizer 🙂