Nos anos 90, o mundo lutou para travar a epidemia do VIH e das overdoses, recorrendo a uma nova abordagem: a redução dos riscos associados ao consumo de drogas. Mas, vinte anos depois, quando a antropóloga Aura Roig regressou dos Estados Unidos à cidade de Barcelona, apercebeu-se que ainda eram muitas as pessoas consumidoras de drogas que se encontravam em situações de vulnerabilidade. A maioria, mulheres.

Foi então que, em 2017, munindo-se dos conhecimentos que arrecadara ao longo de anos a estudar políticas de drogas, redução de riscos, direitos humanos e questões de género, Aura fundou a “Metzineres”, o primeiro programa de redução de riscos destinado a mulheres e pessoas de género não-conforme em Espanha.
A Metzineres ganhou um espaço no bairro El Raval, em Barcelona, e em 2020 tornou-se uma cooperativa sem fins-lucrativos. Aqui, aposta-se não só na redução de riscos, mas sobretudo no bem-estar e na construção de um sentido de pertença, que passa pela participação na vida do bairro, uma forma de se quebrar o estigma em torno do consumo.
É sobre esta experiência que Aura Roig vem falar a Lisboa, no “É UM CONGRESSO, Housing First & Harm Reduction”, entre os dias 8 e 9 de novembro na Nova SBE, em Carcavelos, em comemoração dos 22 anos da associação comunitária CRESCER e dos 10 anos do “É UMA CASA, Lisboa Housing First”.

Que abordagem é esta da redução dos riscos?
Consiste em perceber como é que se podem usar certas substâncias sem efeitos adversos ou indesejados. É uma perspetiva que passa não só pela questão das drogas mas também por falar sobre as pessoas que as usam sem estigma, abordando a sua complexidade para que assim se possa encarar o seu bem-estar, o seu sofrimento, o seu trauma.
Falar de redução de riscos é falar de habitação, de acesso aos serviços sociais, da construção de uma comunidade. A redução dos riscos é ir até onde as pessoas estão, tentando desenvolver ferramentas para tornar as suas vidas mais fáceis.
As mulheres não aderem tão facilmente a esta estratégia?
As mulheres não aderem por sentirem que os serviços prestados não respondem às suas necessidades. As mulheres são totalmente segmentadas pelo setor. Se querem falar com um especialista de saúde mental, têm de se dirigir a um sítio, se querem falar da sua situação enquanto sem-abrigo, têm de ir a outro. Ninguém olha para ti de uma forma holística.
Era importante abrir um espaço onde no centro estivessem as mulheres. Falamos de mulheres que sobreviveram a situações múltiplas de violência. A partir daí, começámos a pensar no que seria preciso e abrimos a Metzineres, um espaço de encontro, onde incluímos a perspetiva da redução de riscos, mas a nossa ação não se foca só nisso, mas sobretudo em construir uma comunidade, em munir as mulheres de ferramentas para o bem-estar.
Portanto, é sempre muito mais difícil para uma mulher falar da dependência de substâncias…
Antes de recorrerem aos serviços, as mulheres tentam lidar com o problema sozinhas, isto porque os serviços não estão desenhados para lidar com a situação delas, mas sim para lidar com as circunstâncias dos homens.
As mulheres ainda são invisíveis quando se fala de drogas, e tendem a esconder o uso porque, assim que o mostram, a sua capacidade para tratar delas mesmas apaga-se. As consequências que advêm de admitirem o uso podem ser muito prejudiciais: perder a custódia dos filhos, perder o contacto com as famílias, serem excluídas ou criminalizadas…
As mulheres praticamente não surgem nos dados em relação ao consumo de drogas. O primeiro estudo relativo a mulheres só surgiu em 2016, muito depois de termos a primeira sala de consumo assistido. Estamos a começar a desenvolver indicadores para termos alguma perspetiva de género, mas ainda é muito difícil incorporá-los nos serviços e nas políticas de drogas.

Será ainda mais difícil para as mulheres transgénero ou não-binárias…
As mulheres transgénero estão mais expostas à violência, ao trauma e à rejeição. A violência estrutural é superior porque a maioria das redes são regidas pela divisão entre géneros. Por exemplo, se és uma mulher transgénero, vais para uma prisão masculina ou feminina?
Ainda falta informação sobre o efeito das drogas num corpo transgénero, o que torna muito difícil encontrar um lugar de apoio. Falta planeamento, e acabamos por não ter nenhum lugar livre de transfobia, tal como não temos nenhum lugar livre de racismo. Temos muito trabalho a fazer para garantir que somos inclusivos e que temos espaço para todos.
O consumo de droga está muitas vezes associado à vulnerabilidade. Como é que se explica esta ligação?
Não gosto de dizer que as mulheres na Metzineres são vulneráveis, porque elas são na verdade muito fortes, mas estão sujeitas a várias situações de vulnerabilidade. Quando alguém dorme na rua, é normal que use drogas para se manter acordada, alerta, porque sabe que se adormecer, a rua pode ser perigosa. Quando alguém sente que não tem apoio nos serviços de saúde mental, vai automedicar-se para não sofrer…
As pessoas recorrem às drogas por muitos motivos, e é preciso ouvir, aprender, aceitar e dar-lhes ferramentas e a informação certa. A verdade é que, quando encontramos pessoas com problemas relacionados com o uso de drogas, percebemos que as drogas não surgem isoladas, elas fazem parte de um quadro ligado a situações pessoais que tornam as drogas parte da equação. Ou seja, o problema não são as drogas em si, uma vez que grande parte da população consome drogas, mas sim o uso problemático de drogas. Quando nos focamos na droga e não nas causas, que muitas vezes passam pela injustiça social e pelas desigualdades, não estamos a fazer um bom trabalho.
Como é que a Metzineres consegue chegar às mulheres?
Fazemo-lo juntas. As mulheres convidam as suas amigas para participarem no espaço, pois sentem que aquele é o espaço delas. Nós não temos uma receção, nós não oferecemos um questionário quando elas chegam, oferecemos um café e apresentamos as trabalhadoras do espaço, muitas delas são também participantes. Todas são bem-vindas, não fazemos qualquer tipo de filtragem, elas é que decidem se querem vir.
Que mulheres são estas que chegam à Metzineres?
São histórias muito variadas. Temos mulheres de vinte nacionalidades diferentes, a mais nova tem 18 anos e a mais velha 74. São mulheres que chegam até nós com problemas de saúde mental, de criminalidade, algumas são trabalhadoras do sexo, outras estão em situação de sem-abrigo, muitas lidam com todas estas realidades. Cada mulher é única e particular, mas todas têm em comum a sobrevivência a situações de violência, de estigma, de discriminação, de imposição de barreiras. Muitos serviços mandam-nos mulheres porque não sabem como tratá-las.
E que tipo de trabalho é que desenvolvem?
Ao entrar na Metzineres, encontras uma grande sala com café, Internet, chuveiros. Temos um segundo espaço, com seis camas, onde podes descansar durante o dia, um lugar onde podes deixar e levar roupas, uma enfermaria para o consumo de drogas. Há ainda um pátio, com uma máquina de lavar, onde se organizam diferentes workshops, desde teatro, rádio, cosmética, muitos deles organizados e implementados por participantes.
A trabalhar connosco, temos uma advogada, técnicas sociais e comunitárias, educadoras… Fazemos investigação, sistematizamos informação através de indicadores que são úteis para entender a situação destas mulheres. Temos ajudado também a criar políticas públicas, como o Plano de Saúde Mental Pré-Natal Catalão. E temos aconselhado outros países que se inspiraram no nosso modelo para abrir espaços semelhantes.



Falamos de mulheres que foram sempre relegadas à margem. Como se devolve o sentido de pertença?
As margens também têm a sua comunidade. Às vezes, quando somos marginalizadas, encontramos a nossa comunidade nas margens. Na Metzineres, damos espaço para que as margens cresçam.
Na maioria dos serviços, o homem é o centro. Mas aqui as mulheres que costumavam estar nesses espaços masculinizados começam a perceber que não estão sozinhas e que podem desenvolver estratégias juntas: têm um sítio para tomar banho, para fazerem uma sesta, para colocarem a sua maquilhagem… Tudo começa ao aperceberem-se que as suas experiências são valorizadas, que têm algo a partilhar. Quando as pessoas sentem valor por aquilo que são, passam a pertencer. Aqui, elas têm esse espaço, que não é só um espaço físico, onde ganham poder para se definirem.

E os vizinhos, como é que veem a presença destas mulheres no seu bairro?
Houve uma fase em que as mulheres entrevistaram os vizinhos, e houve um que disse: “Dantes, eu tinha um bocadinho de medo, mas agora já sei o nome de todas.” Eu acho que esta frase diz tudo. Assim que constróis um espaço que possa ser partilhado e vivido em conjunto, esse medo, esse estigma que vem do desconhecido, é quebrado.
Sempre quisemos fazer parte da vizinhança, e por isso começámos a abrir-nos à comunidade: convidámos os vizinhos para virem comer paella, e foi espantoso ver toda a gente junta. Eu própria vivo no bairro, e muitas delas vivem também. Há quem diga que, se dormes na rua, não vives no bairro, mas a verdade é: serás mesmo do bairro se só lá chegas à noite, depois do trabalho, e se no fim-de-semana vais para a tua casa nas montanhas? Estas mulheres nunca deixam o bairro.
Muitas destas mulheres dormem na rua. Como é que lutam contra essa situação?
Sonhamos em ter um espaço onde elas possam dormir um dia. Para já, há um abrigo perto, com salas de consumo, que tem sido espetacular para elas, mas não tem espaço suficiente para todas. Não temos abrigos suficientes para todas as mulheres, mas estamos a lutar com as instituições para que se abram mais espaços.


Há projetos futuros para a Metzineres?
Estamos a começar a incorporar mais mulheres participantes na equipa. Sempre as tivemos mas estamos a tentar ampliar e dar-lhes mais oportunidades para trabalharem connosco de forma flexível, adaptando-se ao nosso espaço e serviço.
Para além disso, estamos a trabalhar num projeto em torno dos direitos destas mulheres, que muitas vezes não recebem notificações nas ruas, e acabam por não conseguir exercer os seus direitos. Estamos a tentar perceber se é possível dar apoio às mulheres nesse sentido. E queremos continuar a denunciar as vulnerabilidade a que todas elas estão sujeitas, desenvolvendo um espaço de defesa e de ação pública. São os nossos principais projetos.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

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