Lisboa Criola. Foto: Inês Leote

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Se Lisboa sempre foi crioula, essa crioulidade poderá ser vista tocada, cheirada, lida, provada, dançada e bastante discutida por conta da Festa Criola que acontece de 2 a 5 de novembro em quatro localidades da cidade.

No Rato, no Castelo São Jorge, em Marvila ou na Praça Beato faz-se uma viagem da gastronomia à música e à dança, das artes visuais à gastronomia e à literatura nas suas várias manifestações… na voz de Alice Neto ou nos tributos à Lisboa de Leo Middea, cantado ou falado em crioulo, em português, changana ou romeno. Assim, tal como ela sempre foi na sua essência, Lisboa sendo ela própria. De todos ou de cada um.

Tudo isso e mais alguma coisa numa festa do projeto “Lisboa Criola” de Dino de Santiago e seus companheiros, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa.

Lisboa Criola no Castelo de São Jorge. Foto: Inês Leote

Nesta festa, a única coisa “pura” é a mistura. Não há brancos, nem pretos, nem mestiços a reivindicar que o espaço é só deles. Todos cabem e trazem sua história e seu “mundo” ideal ou real para se juntar e misturar aos dos outros.

“Nosso objetivo é trazer muita periferia para a cidade para quebrar barreiras geográficas e mostrar que todos os lugares são acessíveis para todas as pessoas… Quisemos trabalhar em cinco áreas diferentes para não ser a Lisboa Criola da Mónica, do Dino, da Mafalda e do Francisco, mas escolhemos os cinco curadores para trazerem a Lisboa Criola de cada um deles e estamos a descobrir grandes talentos”, diz Monica Rey, produtora executiva. “A experiência do verão no jardim da Gulbenkian com a curadoria no “Europa Oxalá” mostrou a sede das pessoas para esse tipo de iniciativas que nos coloca todos juntos a celebrar a mistura.”

Mónica acredita que estão a fazer história. ” Já houve pessoas a fazer coisas semelhantes, queremos apenas celebrar a crioulidade de Lisboa. Mostrar que todas as culturas juntas produzem um resultado muito bonito… fizemos isso no ano passado quando juntamos Paulo Flores e o DJ Marfox, Welket Bungue e Jani Zao, ou seja, as misturas foram trabalhadas nos workshops entre pessoas de backgrounds e culturas diferentes para trabalhar em conjunto. Conseguimos mostrar que estas diferenças são muito boas e que juntas são ainda melhor porque o resultado foi incrível”.  

A crioulidade na comida…

Para a curadora de gastronomia Inês Matos Andrade “optar pela definição do que é a tradição da cozinha portuguesa é mover-se por areias movediças… podemos achar que um prato é tradicional porque a nossa memória coletiva nos diz que é assim, mas muitas vezes um prato tem histórias que não conhecemos…

A crioulidade está onde menos se espera. Foto: Inês Leote

É o caso do bitoque e da meia desfeita de bacalhau.” Crê-se terem sido criados por galegos. “A francesinha no Porto é inspirada no croque monsieur… As chamuças fazem parte do rol de salgados de qualquer balcão e o caril de frango é prato do dia em vários restaurantes. Tudo isto é uma grande mistura e que o que nós comemos hoje é fruto de um passado muito extenso e de todas as viagens dos que por cá passaram e que cá estão. Pergunto-me o que é que será tradição daqui a cem anos?”.

E a crioulidade vai muito além da lusofonia. “Na Malásia come-se um prato chamado caldo pescador e pastéis de massa tenra com sardinha por causa da presença dos pescadores portugueses no passado…” Por tudo isso “temos de parar de segregar a gastronomia e de chamar de étnicos os restaurantes que não são considerados tipicamente portugueses porque o todo não é igual a soma das partes e isso é Lisboa Criola… quando se prova um prato e há algum sabor que nos leva à nossa infância independentemente do nome do prato e da sua alegada origem”.

Inês Matos Andrade curadora da Gastronomia. Foto: Inês Leote

… e nas outras artes, visuais ou não…

Para Nash Does Work que faz curadoria em Artes Visuais na Festa Criola este é “um ideal de mistura e de felicidade como a música do Dino Nova Lisboa… Todos juntos a celebrar e a aprender uns com os outros.”

Nash Does Work fotógrafa e curadora das Artes Visuais Foto: Inês Leote

A proposta é sobretudo focada em artistas femininos, com especial destaque para Elu Flash Tattoo, curda e que “faz tatuagens ancestrais a que chamam DEC, tradição que era transmitida de mulher para mulher e que se está a perder… vai ter néon na rua do Benformoso e NailArt (arte nas unhas). “Uma arte que não costuma estar bem representada”.

Gisela Casimiro, curadora de literatura para a Festa Criola. Foto: Inês Leote

Para Gisela Casimiro, artista, escritora, performer e ativista Lisboa Criola é uma lisboa em que as pessoas “se olham nos olhos, reparam uma nas outras, se escutam, dialogam, e é onde se veem para lá das máscaras e dos estereótipos, uma cidade que é intersecional e multicultural” Ela traz a literatura com oficinas de leituras, debates e teatro.

É Blaya quem traz a crioulidade dos movimentos a estes dias de festa. Foto: Inês Leote

Para Ary Rafeiro, DJ e curador de música, Lisboa Criola é “um misto de culturas no sentido pleno de representações… Lisboa permite esse manifesto e a fusão de diferentes culturas… a minha proposta para a festa traz pessoas que nos possam abençoar com esse sentido de mistura e não podemos esquecer que Lisboa é o berço de uma nova cultura que resulta do encontro da diversidade”.

Blaya, que nasceu no Brasil, foi para o Alentejo, e fez parte dos Buraka Som Sistema – que era uma “mistura de culturas” – cantora e performer, a sua Lisboa Criola é a do Kuduro, das danças Romani, do Dancehall, de Bollywood… “Só por causa dessa mistura de energias é que sentimos melhor as coisas. Isso fez de mim o que sou hoje. Uma salada de fruta”, conclui muito entusiasmada.

O DJ de Manaus que cresceu no Rio de Janeiro e escolheu Lisboa para viver também diz que “as minorias nunca visitam de maneira natural o Castelo de São Jorge ou outros espaços da cidade, que muitas vezes não consideram delas”. Ele espera que as pessoas adiram à festa, para “essa bênção da gente poder ser quem é em espaços que para muitos não são nossos, permite mostrar que essa mistura da Lisboa existe”.

Monica Rey, acrescenta que ainda que a Lisboa Criola está a potenciar o que já existe e a trabalhar como uma plataforma que quer apenas ser uma base para a celebração, um palco para todas estas “misturas lindas e talentos que temos descoberto todos os dias”. Para a cidade mais crioula da Europa. Lisboa a ser o que ela sempre foi.


Karyna Gomes

É a jornalista responsável pelo projeto de jornalismo crioulo na Mensagem, no âmbito do projeto Newspectrum – em parceria com o site Lisboa Criola de Dino D’Santiago. Além de jornalista é cantora, guineense de mãe cabo-verdiana, e escolheu Lisboa para viver desde 2011. Estudou jornalismo no Brasil, e trabalhou na RTP, rádios locais na Guiné-Bissau, foi correspondente de do Jornal “A Semana” de Cabo verde e Associated Press, e trabalhou no mundo das ONG na Unicef e SNV.

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