Faz um mês que o Valete celebrou 20 anos de carreira no Coliseu dos Recreios. Tive contacto com o trabalho do rapper quando vivia em Maputo, em Moçambique. Mudei-me para lá em 2003, ano que faz conta de multiplicação com as duas décadas de carreira que o artista celebrou no dia 3 de fevereiro, nos Coliseus de Lisboa e Porto. Ir a um concerto de Valete é estar consciente de que vamos acompanhar várias histórias e este foi o meu primeiro audiobook de 2023.
Durante alguns dias, fiz o trabalho de casa e ouvi o EP Aperitivo que foi apresentado ao público fiel e eclético que encheu uma das salas de concertos mais desejadas da capital. Assim confirmou uma nova fase na carreira do músico, nesse “Um Só Caminho” – a assinatura que já acompanhava o ADN do compositor, mesmo antes de usarmos hashtags, que conhece a cosmologia da sua realidade e retrata a cultura urbana de Lisboa e Portugal há mais de duas décadas.
Neste concerto, transformou-se numa carta de amor.
Amor ao seu público, ao seu pai – sempre presente em cada momento – e a si próprio, numa consagração que logo no início teve o seu ponto alto depois da battle de Edi Ventura e FLAJO e a chegada eletrizante de Xeg, o rapper e MC “da casa” que chegou a abrir o palco do Coliseu, celebrando a cultura hip-hop e levando a casa a baixo.
Tudo foi pensado ao pormenor e a imagética, através dos vídeos, mensagens e excertos de letras acompanharam o “último sensei” – frase da música A Lenda que Valete escolheu para debutar a apresentação do seu mais recente EP. Nesta que foi uma viagem a 20 anos de amadurecimento, cantados pelo seu protagonista.
Entre as faixas novas de Aperitivo, os fãs de “Viris” sabiam o que queriam ouvir e o rapper não falhou: regressou a 2012 para recordou “Os Melhores Anos” (malha com o feat de Jimmy P), provocou os “Pseudo Mc’s” com a subida a palco de Bónus (parceiro de Valete há vários anos) e mostrou que as batalhas RAP são intemporais.
Seguiu com “A Mulher que Deus Amou”, música que lançou há mais de 15 anos, e relembrou que será sempre um “Anti Herói”, composição que o torna um dos rappers portugueses com mais understatement – não só em Portugal mas em países como Angola e Moçambique. Menciona Zeca Afonso, Pepetela e Nelson Mandela, figuras incontornáveis das mudanças estruturais da humanidade, e cruza temas transversais às realidades dos países africanos que estão historicamente ligados.
Talvez seja por isso que, mesmo nesta que se auspicia uma viragem na carreira de Valete, o álbum “Serviço Público” nunca se vai descolar da sua identidade.
Termina a primeira parte com “Subúrbios” e “Vampiris” para dar lugar a Papillon que mais uma vez mostrou que quer ver Valete “Impec”, tal como fez questão de lhe dizer publicamente no seu concerto há uns meses no Capitólio. É aí que reitero o início deste texto em que foi notória a onda de amor no Coliseu a uma escala etérea que faz de Valete um músico maduro e com a certeza de que o RAP é mais do que uma mensagem e sim uma celebração de vivências que são indissociáveis do passado e presente para se continuar a construir futuro.
“Qual é a tua sigla”, a faixa número 7 do EP Aperitivo e com a participação de Lila, chega ao Coliseu a meio do alinhamento e é a música que vem demarcar os dois momentos da noite. Esta faixa não tem spoiler, mas acaba por demarcar a forma como Valete constrói as suas rimas, de outros rappers de expressão portuguesa.
Depois de viajar entre o passado e o presente com a passagem pelo palco de DJ Ride e o angolano Phoenix RDC (dançarinos de hip-hop que retrataram os “velhos tempos” em que até eu dançava nas rodas do Zona Mais), aproximaram-se o final da noite e os meus momentos preferidos.
“Intemporal”, a love song deste EP reuniu consenso e “Samuel Mira”, música que Valete dedicou a Sam The Kid, companheiro de estúdio, estrada e – posso arriscar – irmão mais velho, somaram para esta conta de multiplicação que não podia terminar sem a “Roleta Russa” – um clássico educativo que só não entende quem não quer.
Da Damaia para o mundo, aquele rapaz que um dia quis ser jogador de futebol honrou os seus heróis com “Bola de Ouro” e trouxe a fadista Mara ao palco numa atuação que me fez gostar outra vez de Lisboa.
*Magda Burity é alfacinha de gema, jornalista há mais de 25 anos e decidiu voltar a estudar antropologia em Lisboa para ligar a música, o ativismo, a identidade e as zonas urbanas no centro do seu propósito.