Pode até haver quem goste da mesma forma, mas certamente não há quem goste mais de Lisboa do que os olisipógrafos. Um amor que de tão grande fez nascer uma palavra, fruto da junção da designação romana para a cidade de Lisboa: “Olissipo” com o sufixo “grafo” – um neologismo que qualifica quem se dedica a escrever – e descrever – os encantos da capital portuguesa.

Uma  história de amor com mais de um século, desde que Júlio de Castilho publicou “O Bairro Alto de Lisboa“, em 1879, dando início à rica tradição de escritos sobre a cidade. Primeiro em jornais, narrados em colunas e crónicas ou encartados em folhetins, para depois, em meados do século XX, vestir a toga e passar a frequentar os bancos das universidades.

Uma mudança de rumo que teria dado um verniz mais sério, quase vetusto, à olisipografia, afastando-a das ruas, distanciando-a do lisboeta comum interessado em conhecer os pormenores da cidade onde vivia, mas que poderia intimidar-se diante do novo estatuto de “ciência” conferido pela academia.

A iniciativa de reajustar a rota da olisipografia e devolvê-las aos lisboetas é o mote da exposição “Olisipógrafos, os cronistas de Lisboa“, aberta ao público na Biblioteca Nacional até 31 de dezembro: em 14 expositores, está reunido o trabalho dos principais olisipógrafos nestes quase 150 anos de registos, com um espaço dedicado à produção recente – onde a Mensagem de Lisboa entra.

Os olisipógrafos Hélia e Tiago: dois anos de intenso trabalho para trazer a olisipografia de volta ao convívio dos lisboetas. Foto: Líbia Florentino.

“A exposição é um movimento para tirar um pouco o peso da olisipografia e devolvê-la ao público”, resume a arquiteta Hélia Silva.

É com o historiador Tiago Borges Lourenço que assina o comissariado do trabalho que reúne livros – incluindo a edição original escrita por Júlio de Castilho – teses universitárias, boletins e fotografias.

Soma-se ao acervo da exposição o livro “Crónicas de Lisboa, produzido pela Mensagem de Lisboa, assinado pelo jornalista Ferreira Fernandes e o ilustrador Nuno Saraiva, e editado pela LeYa. A obra é uma compilação das bandas desenhadas publicadas pelo jornal e que traz entre as suas histórias uma dedicada ao nobre ofício da olisipografia.

“Decidimos incluir a crónica da Mensagem entre os trabalhos, pois alinha com a intenção da exposição de sugerir uma outra maneira de olhar para a olisipografia e de divulgar o trabalho do olisipógrafo”, explica Hélia Silva. 

O pioneiro de uma profissão ainda sem nome

Um trabalho que começou a ser conhecido pelo então olisiponense Júlio de Castilho – só décadas depois seria cunhado o termo “olisipógrafo”. Não à toa o nome que abre a exposição. Primeiro responsável pela Biblioteca Nacional de Portugal, quando ainda essa funcionava no antigo Convento de São Francisco, que hoje abriga a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa.

“Partiu do Júlio de Castilho a intenção de organizar e estruturar o espólio das ordens religiosas, entregues à Biblioteca Nacional após a extinção das mesmas, em 1759. Esse material seria compilado, estudado, sistematizado e resultaria na primeira publicação com o espírito da olisipografia”, conta Hélia.

Júlio de Castilho, o pioneiro da olisipografia no século dezanove abre a exposição na Biblioteca Nacional. Foto: Líbia Florentino.

A metodologia de trabalho imposta por Júlio de Castilho estruturou a metodologia que praticamente é utilizada pelos olisipógrafos até hoje, na época chamados de olisiponenses, uma terminologia que só seria alterada para a atual algumas décadas depois, no século XX, graças à atuação de um político, o antigo vereador Luís Pastor de Macedo.

Também vice-presidente da câmara de Lisboa, Luís Pastor de Macedo estruturou e fundou o primeiro pelouro da Cultura da autarquia, criando também as linhas que definiam o estudo da olisipografia e – desde 1933, portanto, aí sim – a função do olisipógrafo. Uma categoria que lhe pertencia, chegando a publicar quatro obras, entre elas Lisboa de Lés-a-Lés e A Nossa Lisboa.

Entre o precursor e o homem que incluiu os termos olisipografia e olisipógrafo no vernáculo, houve outros grandes nomes, como Augusto Vieira da Silva, Gustavo de Matos Sequeira e Norberto de Araújo, todos eles destacados por um legado específico e, por isso mesmo, merecedores de destaque na exposição na Biblioteca Nacional.

Augusto Vieira da Silva, por exemplo, pela precisão dos registos cartográficos de uma Lisboa que já não existia. “Os meus amigos arqueólogos garantem que ele chegou bem próximo da precisão, mais de um século antes do georreferenciamento”, comenta Hélia. Parte desse dom pode ser admirada em um dos livros expostos na biblioteca.

Já Gustavo de Matos Sequeira foi o responsável pela maquete de Lisboa antes do Grande Terramoto,. Um minucioso trabalho até hoje de tirar o fôlego, exposto no Museu de Lisboa, e que retrata como numa vista aérea feita por um drone como era a cidade antes de ser devastada pelo tremor de terra, incêndios e tsunamis.

Peregrinações por Lisboa até de salto alto

Se Augusto Vieira da Silva e Gustavo de Matos Sequeira notabilizaram-se pelos trabalhos a dar nas vistas, Norberto de Araújo merece uma montra pela qualidade da narrativa. O autor de Peregrinações de Lisboa, considerado um ex-libris da olisipografia, dissecava as camadas de Lisboa nas páginas dos jornais, entre eles o Diário de Lisboa

Hélia Silva e Norberto de Araújo: desejo de recriar em 3D as peregrinações do olisipógrafo favorito por Lisboa. Foto: Líbia Florentino.

É o favorito da comissária Hélia Silva, que fez questão de posar para as fotos a olhar nos olhos do jornalista que viu lisboa com olhar de olisipógrafo. “Os textos eram publicados em colunas e depois compilados em livros”, explica a arquiteta, que nutre o desejo de reproduzir em três dimensões as peregrinações por Lisboa descritas por Norberto de Araújo em seus escritos. 

Um pouco à frente na exposição, surge Irisalva Moita, a única mulher entre os 22 mencionados como fundamentais na história da olisipografia. Muito por ter sido um nome incontornável na história e consolidação do Museu da Cidade, onde esteve por vários anos e que depois transformar-se-ia no atual Museu de Lisboa.

Irisalva Mota, a primeira olisipógrafa: arqueologia com sabedoria e salto alto. Foto: Líbia Florentino.

Arqueóloga e museóloga, Irisalva Moita é considerada a primeira olisipógrafa, mas não a única. “É claro que existem outras, com produção relevante. Mas a exposição debruçou-se nesta primeira fase em alguns nomes que são incontornáveis e o de Irisalva é um deles”, ressalva Hélia Silva, ela mesma uma olisipógrafa que não consta na exposição que organizou.

Além do histórico profissional de Irisalva Moita, que conta ainda com a publicação de quatro livros, Hélia Silva sublinha um pormenor que pode passar despercebido ao olhar de um leigo. “A Irisalva Moita ainda conseguia ir aos sítios arqueológicos de salto alto”, diz, apontando para a fotografia na montra. “Enquanto eu, no máximo, tenho que me contentar com os tênis.”

Olisipografia nas páginas das “Crónicas de Lisboa”

Hélia interrompe a entrevista para atender três jovens que se debruçam sobre uma das montras. “Estás a ver que as pessoas se interessam pelo assunto?”, constata ao voltar, satisfeita em perceber que a ideia de trazer a olisipografia para “a rua” começa a surtir efeito. 

O esforço em trazer a olisipografia para o presente e até de apontar um futuro está na segunda parte da exposição. Se a primeira homenageia os nomes que deram o pontapé inicial na ciência, as demais vitrines revelam como os olisipógrafos ainda contribuem para que os lisboetas descubram outras camadas da cidade onde vivem, como diz ser o papel do livro “Crónicas de Lisboa“.

“Achamos que a banda desenhada é um bom exemplo sobre como se aliviar o peso da olisipografia, assim como abre um diálogo com um público mais jovem, apresentando o olisipógrafo como um dos importantes personagens de Lisboa”, reforça Tiago.

A banda desenhada publicada no Crónicas de Lisboa tem espaço de destaque na exposição. Foto: Líbia Florentino.

Um dos destaques dessa segunda parte da exposição vai para o Grupo Amigos de Lisboa (GAL), fundado em 1936 e até hoje em plena atividade. Entre fotografias históricas e uma edição do boletim da associação, o “Olissipo“, há a reprodução do belíssimo emblema do GAL, desenhado por um dos seus fundadores e dinamizadores, nada menos que Almada Negreiros. 

A Marca do GAL, assinada por Almada Negreiros. Foto: Reprodução.

Também há uma área reservada aos Serviços Culturais da Câmara Municipal, onde trabalham Hélia e Tiago, criado em 1933 pelo olisipógrafo Luís Pastor de Macedo, o mesmo que acabou por cunhar o termo olisipógrafo.

 “A criação dos Serviços Culturais foi um marco importante, pois foi seguida pelo Curso de Estudos Olisiponenses e o Gabinete de Estudos Olisiponenses, reunindo, estruturando e sistematizando o trabalho dos futuros olissipógrafos”, diz Hélia.

As montras trazem ainda os dois primeiros volumes da novíssima série de biografias dos grandes olisipógrafos: o primeiro deles sobre José Sarmento de Matos, de Margarida Magalhães Ramalho; e a segunda dedicada ao precursor da olisipografia, Júlio de Castilho, assinada por um dos comissários da exposição, Tiago Borges Lourenço.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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1 Comentário

  1. Excelente trabalho daqueles que já amam Lisboa, destinado aos que ainda não a conhecem, mas têm curiosidade de saber a história da Olissipo.

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