*Texto atualizado a 24 de setembro com resposta da CML

No Brasil, o mestre Dorival Caymmi cantava que “quem não gosta de samba, bom sujeito não é; ou é ruim da cabeça ou doente do pé”. Para os milhares de brasileiros que vivem em Lisboa, a maior comunidade imigrante no país e também na capital portuguesa, o refrão de Samba da minha terra traduz bem o impasse que se instalou entre os blocos de carnaval brasileiros e a Câmara Municipal de Lisboa.

Com o agravante de o Carnaval brasileiro ir além do samba e abraçar outros tantos ritmos, como o maracatu e o frevo. 

Insatisfeita com a recente mudança de entendimento em relação às atividades dos blocos e carnaval, vistos agora como eventos (o que acarreta taxas) e não manifestação cultural e política, a União de Blocos de Carnaval de Rua de Lisboa convocou um misto de protesto e carnaval fora de época para o próximo dia 24 de setembro, com um imenso cortejo que parte da praça do Martim Moniz até a Praça do Município.

As 15 agremiações carnavalescas brasileiras que desfilam em Lisboa argumentam que a alteração implementada pela PSP, em vigor desde 2020, acarreta cobrança de taxas municipais que podem inviabilizar os desfiles durante o Carnaval de Lisboa, cerceando o direito da maior comunidade estrangeira no município de se expressar política e culturalmente.

Ao mesmo tempo, acusam a CML de não se esforçar para tentar junto à PSP, a quem é imputada esta decisão, a reversão da decisão de 2020.

“Falta sensibilidade e bom senso da PSP e da Câmara para perceber que, para nós brasileiros, o Carnaval não é apenas uma festa, um evento, mas uma forma de manifestação cultural, de ativismo e de representação e de expressão do que é ser brasileiro. E essa imensa população tem o direito de poder se expressar”, explica a presidente do Colombina Clandestina, Andréa Freire.

Os blocos traçam o paralelo com outras manifestações de outras comunidades em Lisboa, como a celebração do fim do ramadão ou Ano Novo Chinês, e até com a Festa dos Santos Populares – esta última que inclusive recebe não só o apoio na estrutura, mas também financeiro.

O fim do Carnaval brasileiro em Lisboa?

Presidente do bloco Colombina Clandestina, fundado em 201, o maior a desfilar no Carnaval de Lisboa, que chegou a reunir mais de 20 mil foliões no último desfile, Andréa Freire conta que por conta do novo entendimento da PSP e da ausência de esforço da CML, a agremiação viu-se obrigado a desembolsar cerca de 10 mil euros para cobrir as taxas como o seguro de responsabilidade civil e as despesas com instalação de banheiros químicos e escoltas da PSP.

“O que não faz nenhum sentido, pois ninguém nos blocos brasileiros em Lisboa vive disto. O Carnaval de rua não é um evento comercial, não cobra bilhetes e não vende patrocínios nem bebidas, é sim uma manifestação pública, gratuita, de expressão cultural. E para nós brasileiros, diante do que acontecia no Brasil até recentemente, era também um ato político”, reforça.

Andréa Freire em ação no último desfile da Colombina no Carnaval de Lisboa: desfile contra uma forma da CML de silenciar a comunidade brasileira. Foto: Raquel Pimentel/Colombina Clandestina.

Andréa explica ainda que as recentes cobranças de taxas obrigaram, no último Carnaval, algumas das agremiações a suspenderem na última hora os seus desfiles ou restringirem-se a lugares fechados, o que altera o ADN de manifestação pública.

Segundo os blocos, se nada for mudado, correr-se-ia o risco de no próximo carnaval os blocos não conseguirem se estruturar para irem à rua.

A União de Blocos de Carnaval de Rua de Lisboa tentou sensibilizar a Câmara, primeiro com argumentos, depois com uma petição pública a favor da “desburocratização do carnaval de Lisboa”, até agora assinada por 1.175 pessoas, mas sem respostas da autarquia.

“Do jeito que atualmente está posto, é uma forma da PSP e da CML de inviabilizar o direito da população brasileira de se manifestar publicamente, de proibir, de censurar e de silenciar”, diz Andréa.

Contra essa tentativa de silenciamento, unem-se à Colombina Clandestina os blocos Baque do Tejo, Baque Mulher Lisboa, Bloco Oxalá, Blocu, Carvalho em Pé, Bué Tolo, Cuiqueiros de Lisboa, Lisbloco, Palinha Maluca, Pandeiro LX, Sardinha Imperial, Sardinha Nomades e Viemos do Egyto. No dia 24 de setembro, a concentração está marcada para às 14 horas, com chegada prevista às 18 horas.

A culpa pode estar num palco?

O vereador responsável pela Cultura na CML, Diogo Moura, garante que a Câmara tem se esforçado em manter os blocos brasileiros na rua. “Da nossa parte, eximimos os blocos de algumas taxas previstas no caso dos eventos, como as de licenciamento de ocupação do espaço público, de ruído e de limpeza”, afirma.

Diogo Moura reforça ainda que não cabe à CML determinar se determinada iniciativa é um evento ou manifestação, mas exclusivamente à PSP. “Pelo que percebi junto da PSP, como há um palco no final do desfile, isso caracteriza um evento e não uma manifestação”, explica.

O vereador também diz que a CML tentou argumentar com a PSP para rever o entendimento ou que reveja os valores das taxas cobradas pela entidade que, na opinião dele, são realmente altas, embora estejam tabeladas, mas em ambos os casos não obteve sucesso.

Diogo Moura disse ainda que já se reuniu com os blocos e voltará fazê-lo para propor um desfile único e num local específico durante o Carnaval. “Vamos negociar com União de Blocos de Carnaval de Rua de Lisboa, que reúne 12 dessas entidades e atualmente desfilam em dias e sítios diferentes, para que se concentrem num mesmo lugar e dia, o que facilita a operação”, explica o vereador, que ressalta não ter nada contra o Carnaval, muito menos, o Carnaval brasileiro.

“Pelo contrário, nas minhas férias em fevereiro, passei o Carnaval no Rio de Janeiro. E não foi para assistir aos desfiles das Escolas de Samba”, afirma.

Os desfiles dos blocos brasileiros em Lisboa vêm cada vez atraindo foliões, não só da comunidade do Brasil, mas os demais lisboetas. Vídeo: Colombina Clandestina.

Enquanto não se chega a um acordo, os blocos procuram reforçar as suas alas. Na última semana, os blocos reuniram-se com a Casa Brasil Lisboa e a Embaixada Brasileira. Ambas instituições comprometeram-se a interceder junto à CML para encontrar uma solução ao impasse criado pela PSP.

Os blocos também contam com o apoio das vereadoras municipais Beatriz Gomes Dias, do Bloco de Esquerda, e Paula Marques, da coligação Mais Lisboa, que se têm manifestado a favor da causa através de votos de manifestações. No último deles, de 5 de setembro, a bloquista insta a CML a dialogar com as entidades. 

Para os blocos, a PSP e a Câmara pecam em não perceber a real e múltipla dimensão do Carnaval no Brasil, muitas vezes, na visão dos estrangeiros, reduzido aos comerciais espetáculos dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro no Sambódromo, e não como um espaço de expressão cultural, aberto a todos e gratuito à população – não só brasileira, mas aos demais lisboetas. 

Os brasileiros teme que medida da CML restrinja a maior forma de manifestação da cultura brasileira. Foto: Raquel Pimentel/Colombina Clandestina.

Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Entre na conversa

6 Comentários

  1. Também há muitos moradores das freguesias da Penha de França e São Vicente que se queixam do ruído e lixo provocado por essas festividades. As ruas mais estreitas dessas freguesias não comportam com segurança esses aglomerados de dezenas de milhares de pessoas.
    Deixo uma sugestão: porque não organizar um Carnaval brasileiro com todos os blocos interessados em desfilar numa Avenida com mais espaço, por exemplo na Avenida Santo Condestável, onde se realiza a Feira do Relógio? Tem espaço, tem bons acessos e vários transportes públicos. Fica a sugestão.

  2. Uma decisão de quem não pensa e é insensível ao contributo de uma das maiores comunidades a viver e trabalhar em Portugal. É perante decisões acéfalas deste tipo que, por vezes tenho vergonha de ser Português.

  3. Todo o sentido faz a manifestaçao dos interesses de qualquer grupo relativos às especificidades da sua etnicidade. A questão trata-se, em Democracia, dos princípios de equidade. A Comunidade chinesa, tem as suas festividades. Outras comunidades, menos numerosas e certamente com menos ligações culturais a Portugal, também terão direito à expressão da sua etnicidade e para tal, reivindicarão – eventualmente – permissões semelhantes.
    – Que critérios usar para ‘autorizar’?
    – Que condições de equidade estabelecer?
    – Que princípios usar?
    – Que ‘fronteiras’ estabelecer quanto à natureza das expressões culturais e de etnicidade de cada Comunidade? “Cultura é música, é dança, é religião, é gastronomia, são atividades de cariz desportivo próprio?
    – Os critérios e as decisões deles decorrentes a tomar pelas autoridades, são do agrado das comunidades originais – entende-se moradores, trabalhadores, comerciantes, etc.?
    O cerne da questão não é esta ou aquela expressão cultural – mas antes como encarar a dicotomia “os que estão” vs. “os que chegam” e esse debate Global, esbate lógicas de Identidade Cultural, História, Património, Povo-Nação e promove a prevalência de Globalização numa lógica possivelmente pérfida, que satisfaz interesses corporativos das grandes indústrias, que atenta à quebra de valores identitários ancestrais (diga-se CULTURAIS) e enfatiza o individualismo, mais facilmente manipulável pelos média tecnologicos.
    Hélder M

  4. Com o atual Presidente da República, o que não falta é Carnaval interno e externo que bem caro sai aos contribuintes.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *