Colombina Clandestina: Lisboa é o único lugar onde se vai celebrar o Carnaval de rua brasileiro
A festiva fantasia de Carnaval esconde uma face mais séria, o lado social e de luta do Colombina Clandestina. Foto: Raquel Pimentel/Colombina Clandestina

O “esquenta” no último domingo, 20, serviu de termómetro para o que vem aí: cerca de 2 mil pessoas coloriram o Largo de São Miguel, em Alfama, e fizeram ecoar pelas vielas e becos vizinhos as batidas e os refrãos do “Grito de Carnaval” do Colombina Clandestina, o mais alfacinha dos blocos brasileiros em Lisboa.

Um “grito” emudecido pela pandemia em 2021, mas que promete compensar o ano em silêncio e arrastar 10 mil foliões para o desfile deste sábado, 26, quando pelas 13 horas a orquestra com 50 integrantes, capitaneada por um abre-alas com dez bailarinas e bailarinos, partir do Panteão Nacional em direção ao Largo da Graça, na apoteose da celebração pela resistência, pela sobrevivência.

Andréa Freire, diretora do Colombina Clandestina: a pretensão de ser mais do que um batuque brasileiro em Lisboa. Foto: Rita Ansone

As restrições no Brasil pela variante ómicron fazem de Lisboa o único sítio onde será possível brincar ao Carnaval brasileiro em pleno… Carnaval.

É a hora cantar a plenos pulmões a vitória do micróbio do samba, do frevo e do maracatu sobre a triste sinfonia da pandemia. Os mais resistentes terão direito a uma “dose de reforço” da folia, no baile que o Colombina promove ainda no sábado, à noite, na Voz do Operário.

O que não deixa de ser uma ironia, pois graças ao descompasso global do contágio pelo vírus, enquanto em Portugal as restrições caem aos poucos, no Brasil a variante ómicron, em plena atividade, suspendeu ou adiou os festejos de Momo para abril ou maio, o que faz de Lisboa o único sítio onde será possível brincar ao Carnaval brasileiro em pleno… Carnaval.

O “Grito de Carnaval” do bloco Colombina no último sábado atraiu cerca de 2 mil pessoas em Lisboa. Imagens: Raquel Pimentel/Colombina Clandestina.

Por baixo da fantasia, uma face social

O que talvez poucos saibam é que a festiva fantasia de Carnaval esconde uma face mais séria, o lado social e de luta do Colombina Clandestina. Mais do que um bloco, um misto de coletivo e startup, empenhado em estabelecer o diálogo com as minorias e dar visibilidade aos rostos invisíveis em Lisboa.

“A escolha por São Vicente e Alfama não foi por acaso. Teríamos muito mais adesão e visibilidade se saíssemos na Baixa ou noutro sítio turístico de Lisboa. Porém, escolhemos esses bairros históricos, que sofreram imenso com a gentrificação e onde a população local acabou esquecida e a única diversão popular era a festa dos Santos Populares”, explica a diretora da agremiação, a catarinense Andréa Freire.

“Quando falávamos da intenção de criar um bloco de carnaval em Lisboa, ouvíamos que em Lisboa não iria funcionar, que o Carnaval em Portugal era em Torres Vedras. Mas a nossa intenção era ocupar esse território e é por isso que todos os anos – salvo o ano do confinamento – estamos sempre aqui”, reforça.

“Quando falávamos da intenção de criar um bloco de Carnaval em Lisboa, ouvíamos que em Lisboa não iria funcionar, que o Carnaval em Portugal era em Torres Vedras.”

Andréa Freire

O “Grito de Carnaval” do último domingo foi um exemplo desta sintonia com a população local. No fim da folia, as vendedoras de ginja de Alfama levaram uma jarra de ponche à mesa onde estavam os organizadores, como forma de agradecimento por terem vendido tudo o que tinham para vender.

Mas a antestreia também arrecadou alimentos, numa ação em conjunto com a Associação do Património e da População de Alfama (APPA).

O desfile de Carnaval do Colombina Clandestina e os rostos que traduzem a multiculturalidade de Lisboa em festa. Foto: Raquel Pimentel/Colombina Clandestina

“Não deixa de ser um reconhecimento ao nosso trabalho que os comerciantes locais nos apoiem e uma organização social de Alfama, berço do fado, tenha escolhido um representante do carnaval brasileiro como parceiro oficial”, diz Andréa. “Isso atesta o nosso respeito pela história, tradição e multiculturalidade de Lisboa.”

Um reconhecimento que se estende com a escolha em 2021 do Colombina Clandestina como um dos dez programas aprovados em Portugal pela Santa Casa de Misericórdia para integrar o projeto de aceleração de startups do hub criativo da instituição, a Casa do Impacto.

O desfile nas ruas de Alfama e São Vicente confunde-se com a do Carnaval em sítios como Salvador, Olinda e Ouro Preto. Foto: Raquel Pimentel/Colombina Clandestina.

Inspiração na commedia dell’arte e no ADN baiano

Especialista em inovação da agência Fullsix Portugal, Andréa foi buscar às raízes baianas do pai a inspiração para usar o Carnaval como catalisador para as questões sociais. Em 2017, na companhia de duas ex-colegas brasileiras da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, organizou o primeiro desfile do Colombina Clandestina, dando o pontapé inicial para o atual coletivo.

“Organizou” o desfile, é modo de dizer.

“O primeiro desfile foi totalmente orgânico e improvisado”, reconhece Andréa. “Abrimos o convite nas redes sociais e quem quis apareceu para tocar, cada um com um instrumento, a maioria deles que nem fazia parte de uma tradicional orquestra de carnaval”, diverte-se, ao lembrar a folia inaugural, em 2017.

Andréa Freire Foto: Rita Ansone

“Não queríamos ser apenas mais uma batucada brasileira em Lisboa, mas dar visibilidade aos rostos invisibilizados.”

Andréa Freire

Da festa à ação cidadã foi só um passo. “Não queríamos ser apenas mais uma batucada brasileira em Lisboa”, resume Andréa. “Sentíamos a necessidade de dar visibilidade aos rostos invisibilizados, o rosto das mulheres, dos imigrantes, das comunidades LGBTQI+, dos excluídos de uma forma geral. Dizer: vocês podem até ignorar cada um de nós, mas não podem ignorar 5, 10 mil de nós.”

Uma atitude que se reflete na escolha do nome do bloco, inspirado na colombina da commedia dell’arte italiana, a personagem que encarna na dramaturgia o papel de uma serva, mas que vence a “invisibilidade” da sua condição social com inteligência, humor e ironia. Já o Clandestina é uma referência ao circuito underground da noite de Alfama e aos bares clandestinos que abrem as portas nas madrugadas.

O “10 mil” estimado por Andréa não é por acaso. A organização acredita que o número de pessoas pode rondar os 10 mil, acompanhando uma certa escalada natural dos participantes nas duas últimas vezes que o bloco foi à rua: 5 mil foliões em 2019 e 7 mil em 2020.

São Vicente de braços abertos

Apesar dos reconhecimentos institucionais conquistados pelo Colombina, o bloco não encontrou a adesão esperada da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, que ignorou os sucessivos pedidos de autorização para a realização do desfile deste ano pelas ruas de Alfama.

Ao contrário de Santa Maria Maior, a vizinha São Vicente praticamente fez do desfile do Colombina Clandestina um evento oficial, o que faz do bloco a única agremiação em Lisboa com autorização para desfilar.

A fotógrafa Raquel Pimentel. Foto: Líbia Florentino/JFSV

A Junta abriu ainda as portas da Galeria Arte Graça à exposição É Carnaval, assinada pela fotógrafa Raquel Pimentel, responsável pelo registo dos diversos desfiles do bloco, aberta ao público até o dia 1 de março.

São Vicente também não fez nenhuma restrição ao trajeto do desfile e isso explica o porquê de pela primeira vez o cortejo não cruzar as duas freguesias – do Panteão ao Largo de São Miguel – e a previsão é encerrar o evento deste sábado com a orquestra a ocupar o coreto de um outro largo, o da Graça.

Será a oportunidade de conhecer ou reencontrar-se com a versão lisboeta da folia brasileira, mas apenas durante o desfile público, pois os bilhetes para o baile na Voz do Operário estão esgotados.

Contudo, se tanto na rua, no baile ou em ambos, sentir a temperatura do corpo subir, calma, não é o vírus: é Carnaval.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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4 Comentários

  1. Foi pena os foliões terem deixado um rasto de garrafas de cerveja e urina nos passeios da rua da Verónica, a organização e a Junta de Freguesia deviam ter acautelado essa situação disponibilizando contentores e wc portáteis no percurso.

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