Cyntia de Paula sabe que tem pouca margem de erro. A presidente da maior associação de luta pelos direitos da maior comunidade de imigrantes em Portugal, a Casa do Brasil de Lisboa, tem a exata dimensão da responsabilidade de gerir os anseios e frustrações dos milhares de brasileiros que cruzam as portas da sede da entidade, no prédio de quatro andares no coração do Bairro Alto.
Mulher, brasileira e psicóloga, o trinómio compõe a equação da mais jovem brasileira a capitanear a associação. Nascida há 36 anos na pequena cidade de Inocência, nos limites do estado do Mato Grosso do Sul com São Paulo, Cyntia vive desde os 23 em Lisboa, onde veio cumprir um mestrado em Psicologia Comunitária, no ISPA, e, assim como grande parte dos brasileiros que conheceu desde então, decidiu não mais voltar.

A psicologia, segundo Cyntia, tem ajudado a compreender as dores da migração, da desterritorialização que não é só física, mas também afetiva. “Migrar, por si só, pode ser um processo de crise que obriga a pessoa a se reiventar”, diz.

Cyntia também acredita que ser mulher é importante na construção de uma reflexão sobre como as opressões de género influenciam o acesso aos direitos. E não só uma mulher, mas uma mulher brasileira, a viver num país que não esqueceu os seus idos coloniais e ainda pensa que “o corpo da brasileira está sempre disponível”.
Essas são as ferramentas que utilizou nos dois mandatos que cumpriu como presidente, função que espera renovar na eleição em junho, para seguir a nortear as ações da instituição que frequenta desde 2010, primeiro “do outro lado balcão”, como um dos brasileiros em busca de ajuda, e depois, a partir de 2012, como voluntária e colaboradora nas diversas atividades desenvolvidas pela instituição.
Este sábado (28 de maio) marca o trigésimo aniversário da Casa do Brasil de Lisboa e as intervenções sociais e o ativismo darão uma pequena pausa para reunir os antigos presidentes em uma tarde de convívio. Mas assim que a festa acabar, a luta está de volta.

Pois Cyntia sabe que os sonhos dos brasileiros não podem esperar e é preciso estar atenta aos abusos de senhorios, patrões e até do atual governo brasileiro, entre muitos outros desafios e também conquistas sobre os quais ela conversou com a Mensagem, na entrevista que pode ser lida a partir de agora:



Fotos: Rita Ansone
Qual é o papel da Casa do Brasil?
A Casa do Brasil é uma associação de imigrantes sem fins lucrativos e tem como missão muito clara o apoio e a garantia de direitos aos imigrantes brasileiros em Portugal. A Casa também é um espaço de diversidade, de acolhimento e das mais diversas lutas. O ativismo tem sido uma característica muito presente nesses 30 anos, no diálogo com os governos local e nacional que se sucederam, na fiscalização das políticas públicas em relação aos imigrantes e na área dos direitos humanos, como nas questões de género e do racismo, e também do emprego e da habitação.
Como a Casa tem se saído?
O impacto social que a Casa do Brasil sempre teve e potencializou nos últimos anos é muito importante, não só para Lisboa, mas para o país. Por ano, nós atendemos mais de duas mil pessoas. E nesses 30 anos houve momentos marcantes, como o chamado Acordo Lula, em 2003, negociado entre os governos do Brasil e de Portugal, com a intermediação da Casa, que à época regularizou mais de 20 mil brasileiros no país.
“A Casa do Brasil é apartidária, mas não é apolítica, e na sua história tem se posicionado contra os governos que não representam a nossa missão.”
Cyntia de Paula
E esse diálogo se mantém com o atual governo brasileiro?
A Casa do Brasil é apartidária, mas não é apolítica, e na sua história tem se posicionado contra os governos que não representam a nossa missão, que não se preocupam com os direitos humanos e com as questões das minorias. E sempre que essas questões surgirem, vamos nos levantar. Mas não temos ligação partidária. Nesses 30 anos, nunca recebemos apoio financeiro do governo brasileiro, independente do partido no poder. Mantivemos, sim, uma proximidade com a Embaixada e o Consulado, ao ponto de a cada troca de embaixador e cônsul, eles virem fazer uma visita de cortesia. Mas esse diálogo piorou muito, antes mesmo desse governo genocida, a partir do Golpe. Para se ter uma ideia, antes, quando precisávamos de uma resposta do Consulado, resolvia-se por e-mail, e agora, é preciso enviar uma carta registada.
E como esse ativismo se traduz especificamente no apoio ao imigrante?
Na nossa intervenção social. Um dos serviços mais preciosos da Casa é o Gabinete de Orientação e Encaminhamento (GOE), onde os imigrantes tiram as dúvidas, desde sobre o que é o NIF a questões de contratos de arrendamento e laborais. É claro que nem sempre conseguimos dar todas as respostas, como no caso do apoio social, pois não temos uma linha de ajuda financeira ou alimentar, por exemplo, mas encaminhamos para esses serviços. Nos últimos anos, expandimos o Gabinete a outras cidades, como Cascais.

Foto: Rita Ansone
Para além de Lisboa, portanto.
Nós estamos em Lisboa, mas não estamos restritos a Lisboa. É claro que o trabalho acaba por se concentrar aqui, mas temos uma atuação alargada, como em Cascais e também em Sintra. Sentimos a necessidade de sair desse nosso quadrado no Bairro Alto para perceber as múltiplas facetas do que é ser um imigrante, não só nas questões territoriais, mas na multiplicidade das discriminações. Afinal, não existe “um” imigrante, mas múltiplos, pois os desafios variam conforme se é homem, mulher, LGBTQIA+ ou negro, e a nossa luta tem que refletir isso. A preocupação em expandir o atendimento também visa alcançar a comunidade brasileira que foi viver cada vez mais longe de Lisboa, pressionada não só pelas rendas altas, mas pelas exigências absurdas que são postas aos imigrantes.
“Os senhorios só faltam exigir um unicórnio para fechar o contrato. Muitos pedem seis rendas adiantadas e a presença de até três fiadores.”
Cyntia de Paula
Que tipo de exigências?
A habitação é um problema generalizado, claro, de todas as pessoas, mas é muito mais dramático com o imigrante, pois os senhorios só faltam exigir um unicórnio para fechar o contrato. Muitos pedem seis rendas adiantadas e a presença de até três fiadores, o que é complicado para quem acabou de chegar.
A habitação é o ponto mais sensível para o imigrante brasileiro?
A habitação e o trabalho. A Casa mantém um gabinete de apoio laboral, com suporte para questões que vão da formatação de um currículo ao reconhecimento de diplomas ou a inserção numa ordem profissional, por exemplo. Nessa questão das ordens, a Casa promove encontros regulares para que os imigrantes percebam os processos, mas também para os bastonários conhecerem os problemas dos profissionais que migram, o que ajuda na desconstrução de alguns mitos.

Que mitos?
Um deles é a desqualificação da formação nos países de língua portuguesa, não só no Brasil, mas nos PALOP, o que rebate na inserção no mercado de engenheiros e jornalistas, por exemplo. A Casa tem se esforçado para desconstruir esses mitos num projeto específico, o Migra Myths, que tenta combater os milhares de mitos, fake news e discursos de ódio sobre os imigrantes, de que estão aqui para roubarem emprego e beneficiar-se da segurança social, quando a verdade é o contrário, que a situação da segurança social seria bem pior sem a contribuição dos imigrantes.
Quais são as queixas mais comuns na área laboral?
De longe, sobre os direitos trabalhistas. Não podemos falar sobre o emprego sem lembrar da precariedade que recai sobre os imigrantes, como contratos que não cumprem a legislação sobre o número de horas de trabalho e até mesmo de empresas que se negam a fazer um contrato com imigrantes. É claro que isso não é uma realidade específica dos brasileiros, nem de Portugal, mas de um sistema económico que explora as populações mais vulneráveis.
“O simbolismo da mulher brasileira está muito presente no imaginário português. Um processo construído há 500 anos, com a invasão do território e do corpo da mulher brasileira.”
Cyntia de Paula
Até onde ser psicóloga ajuda na gestão da Casa?
Nunca pensei em trabalhar com imigração, até me tornar uma imigrante. E a psicologia ajudou-me a perceber o imigrante como um sujeito de direitos. Migrar, por si só, pode ser um processo de crise que obriga a pessoa a se reconstruir, a aprender novos signos e significados. A desterritorialização não é só física, mas afetiva, e gera muita dor. E a psicologia me dá base para desenvolver essa empatia. Também é uma ferramenta nas decisões sobre os caminhos que a Casa deve seguir, do planeamento estratégico, de como a Casa deve pensar o mundo e responder às questões que envolvem esses múltiplos imigrantes.

E ser mulher?
Ser mulher é importante na reflexão sobre como as opressões de género influenciam o acesso aos direitos. E não só ser uma mulher, mas ser uma mulher brasileira, o que ainda carrega um outro peso em Portugal. Eu não sabia o que era ser uma mulher brasileira até chegar em Portugal, andar na rua com a sensação de que o seu corpo pode ser tocado a qualquer momento só porque é brasileira. O simbolismo da mulher brasileira está muito presente no imaginário português. Um processo construído há 500 anos, com a invasão não só do território brasileiro, mas do corpo da mulher brasileira, da mulher indígena, da mulher escravizada, o que deixou a ideia de que o corpo da brasileira está sempre disponível. E não está.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Muito boa entrevista! Precisamos de mais espaços de notícias com esse. Parabéns