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Natália Correia nasce insular, na isolada Fajã de Baixo, ilha de São Miguel, a 13 de setembro de 1923. Quando o pai resolve emigrar sozinho para o Brasil, a mãe – que era feminista mas não o sabia – muda filhas e bagagem para Lisboa. Com apenas 11 anos, Natália cresceu alfacinha, pespineta e bem formosa. Porém, sentir-se-á sempre açoriana de “olhos emigrantes no navio da pálpebra encalhado em renúncia ou cobardia”.
Em Lisboa define-se, a ela própria, múltipla, surrealizando-se “por vezes fêmea, por vezes monja, conforme a noite, conforme o dia.”
Muito jovem enamora-se pela escrita, publicando um romance infantil, “As Grandes Aventuras de um Pequeno Herói” (1945), livro honesto e sem grandes floridos neo-realistas mas revelando já subliminar crítica política.
Enamora-se de seguida pelas suas eternas tágides: a poesia, o teatro e o jornalismo. Seduz e é seduzida (casa-se por 4 vezes). Enquanto ama, mantém uma relação quase incestuosa, conflituosa e permanente com a política, foi militante do MUD durante o Salazarismo, defensora de causas perdidas apoiando Norton de Matos e Humberto Delgado, deputada na Assembleia da República até 1991.
E por falar em Assembleia da República… que voto daria a deputada Natália num protocolo de libertação de um nosso Presidente da República que pede para viajar a um país autocrático do Golfo Pérsico para poder assistir a um jogo de Portugal durante o Mundial de futebol (o masculino), representado-nos a todos e validando descaradamente um regime que, arrogante e orgulhosamente, não respeita os direitos humanos?
Iria a deputada Natália alinhar palavras escolhidas do léxico parlamentar, diminuir no tamanho o “órgão de soberania”, aumentar no grau superlativo sintético palavras como “legitimar” e “validar”, para depois as disparar certeiras e afiadas sobre o hemiciclo?
Podemos imaginar. Mas nunca o saberemos: Natália Correia, a poetisa-deputada que defendia que “a intervenção política é uma obrigação dos poetas”, vai fazer 30 anos que nos morreu. Deixou-nos as palavras, sonoras e vivas. E muito actuais. Já agora, aproveito a deixa, acrescentando que tal obrigação também se estica ao ilustrador.
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O botequim de onde Natália Correia mudou Lisboa e o mundo
Hoje quero aqui ilustrar um episódio antigo e muito cómico. Em 1989, a deputada independente pelo já finado PRD (Partido Renovador Democrático) Natália Correia, apoia a candidatura de Jorge Sampaio à presidência da Câmara Municipal de Lisboa publicando no jornal de campanha O Corvo um grupo de poemas ao estilo cantigas de escárnio e mal-dizer de pontaria apontada ao candidato da direita.
Esse candidato acabava de inaugurar a sua campanha num mergulho nas águas super poluídas do Tejo, entre lodo e condutas de esgotos, oferecendo o espectáculo aos jornalistas e às câmaras de televisão. O candidato saltou de um bote, desapareceu na escuridão aparecendo de seguida, nadou para as margens do Padrão dos Descobrimentos e Natália escreveu um poema. Chamou-lhe Cancioneiro Joco-Marcelino. O alvo, que sairia derrotado nas eleições, era nem mais nem menos que o mesmo senhor do Qatar, o nosso actual Presidente da República. Ao poema, chamou-lhe assim: Marcelo e as Tágides.
Marcelo, em cupidez municipal
de coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se valoroso – ó bacanal! –
ao leito húmido das Tágides daninhas.
Para conquistar as Musas de Camões
lança a este, Marcelo, um desafio:
Jogou-se ao verso o épico? Ilusões!…
Bate-o Marcelo que se joga ao rio.
E em eleitorais estrofes destemidas,
do autárquico sonho, o nadador
diz que curara as ninfas poluídas
com o milagre do seu corpo em flor.
Outros prodígios – dizem – congemina:
ir aos bairros da lata e ali, sem medo,
dormir para os limpar da vil vérmina
e triunfal ficar cheio de pulguedo.
Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão
de asa delta a fazer de passarela,
sobrevoa Lisboa o passarão
e perde a pena que é de galinhola.
Pena, pena, é não termos hoje uma Natália Correia na vida e na Assembleia da República.

Nuno Saraiva
Lisboeta empedernido, colaborou praticamente em toda a imprensa nacional. Cartunista político, o seu traço é o traço de Lisboa, é o autor das imagens das Festas de Lisboa de 2014 a 2017, criador dos troféus das marchas, e há 10 dos seus murais nas paredes da cidade. O seu livro Tudo isto é Fado! ganhou o prémio do Festival internacional de BD Amadora. Dá aulas na Lisbon School of Design e na Ar.Co. São dele todos os desenhos na homepage da Mensagem.