Na edição de 2018/2019 do Orçamento Participativo de Lisboa (OP), o projeto de um parque infantil inclusivo – espaço de brincadeira projetado para acolher todas as crianças, garantindo a inclusão de crianças com limitações físicas ou cognitivas, que Patrícia Pombinho Leal submeteu foi um dos grandes vencedore na freguesia de São Vicente acabava. O orçamento máximo de execução era de 300 mil euros.

De 2019 até hoje, o projeto está ainda por concretizar. Inicialmente projetado para a zona do Baluarte de Santa Apolónia, junto à Avenida Mouzinho de Albuquerque, o seu local de implantação já sofreu mudanças. Este ano, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) propôs a alteração para a Rua Natália Correia, bem no centro da malha urbana da freguesia.

Mas para o mesmo espaço a Junta de Freguesia de São Vicente (JFSV) anunciou ter outro plano – a colocação de uma escultura comemorativa da escritora Natália Correia – cujo centenário se comemora agora.

Uma junta que não sabe de um jardim infantil e uma câmara que não sabe de uma escultura

A alteração do lugar escolhido para o jardim infantil inclusivo foi feita por proposta da CML e com a concordância de Patrícia Pombinho Leal, que reconhece a centralidade da nova localização e destaca a quantidade de crianças residentes na proximidade. Segundo a CML, a escolha do novo local teve “sempre presente a promoção de um diálogo construtivo e cooperante”, tendo a autarquia convocado para a tomada de decisão a autora da proposta vencedora.

Apesar desta decisão ter sido tomada antes do início do verão, a Junta de Freguesia de São Vicente afirma apenas ter tomado “informalmente” conhecimento da decisão da relocalização do jardim infantil no passado dia 6 de setembro.

Passagem de Tuk-tuk em frente à zona de estadia da Rua Natália Correia. Foto: Frederico Raposo

Por isso a junta diz não poder “formalmente confirmar a proposta de nova localização para a construção do parque infantil inclusivo no espaço de estadia da Rua Natália Correia”, mas garante terem já sido iniciados contactos com a CML “para o devido acompanhamento e intervenção neste processo”. E a sua posição relativamente à relocalização do projeto do OP “será favorável”.

Só que esta falha de comunicação fez com que a Junta de Freguesia de São Vicente tenha feito outros planos: a junta planeou colocar uma escultura em homenagem a Natália Correia, da autoria do escultor Ricardo Cristas, integrando-se a iniciativa nas ações do centenário do nascimento da escritora.

A Junta garante que “a instalação neste local era totalmente compatível com a utilização atual do espaço, sem comprometer o usufruto do mesmo por parte da população e, não tendo a JFSV conhecimento de qualquer projeto para o local, apresentou-se como a escolha natural.” Numa nota enviada no dia 1 de setembro aos eleitos à Assembleia de Freguesia, a presidente da junta, Natalina Tavares de Moura, eleita pelo PS, convidava à inauguração da escultura, pelas 17h30 do dia 13.

Convite para a inauguração da escultura, enviado pela Junta de Freguesia de São Vicente no passado dia 1 de setembro.

Foi precisamente no dia 1 deste mês que os eleitos à Assembleia de Freguesia de São Vicente alegam terem tomado conhecimento da intenção da junta de inaugurar naquele espaço uma escultura.

Ao final da tarde desta segunda-feira, era possível constatar a realização de trabalhos preparatórios para a colocação da escultura no local, sendo visível uma intervenção para a base para a colocação da escultura, numa pequena área delimitada por um gradeamento colocado pela Junta.

A junta de freguesia explica tratar-se de “uma peça amovível e sem pedestal, que não altera a estrutura ou condiciona a atual utilização do espaço em causa por parte dos cidadãos”.

Junta assume não ter informado CML da escultura

À semelhança dos vários eleitos da oposição na freguesia de São Vicente, também a Câmara Municipal de Lisboa teve conhecimento da colocação da escultura pela comunicação da junta. Mas, segundo o município, não é este o procedimento habitual.

As juntas de freguesia não têm competência para a instalação de esculturas no espaço público da cidade, nem autonomia na tomada de decisão a esse respeito. A autarquia esclarece que, de acordo com a legislação em vigor, “compete ao município, através da Divisão de Salvaguarda de Património Cultural (DMC/DPC), assegurar as atividades necessárias à colocação, manutenção, conservação e restauro das obras de arte pública da responsabilidade do Município, em articulação com as demais entidades municipais”.

Questionada, a junta de freguesia explica que “a data de celebração do centenário do nascimento condicionou o processo de decisão da instalação” e esclarece que a intenção de colocar a escultura “não foi antecipadamente comunicada à Câmara Municipal de Lisboa”, facto que o município confirma.

“A CML tomou conhecimento da colocação de uma escultura em homenagem à Natália Correia neste espaço pelo anúncio público da mesma pela Junta de Freguesia, pese embora os serviços municipais, designadamente a Direção Municipal da Cultura, não terem sido consultados nem lhes ter sido feito chegar qualquer peça técnica referente à mesma.”

Contrariando o entendimento do município, que considera que a junta de freguesia não tem competência para colocar esculturas no espaço público sem o parecer favorável da autarquia, a junta de freguesia enquadra a sua ação na Lei nº 73/2013

“Pelo carácter, dimensão e natureza artística da peça, não se tratando de um busto ou estátua, a criação foi definida como sendo um novo elemento de promoção cultural e de melhoramento de um espaço de estadia sob a gestão direta da JFSV, em concordância com as alíneas t) e v) do artigo 16º da Lei 73/2013 de 12 de setembro.”

Junta de Freguesia de São Vicente

Até ao momento, e perante a aparente falta de comunicação e coordenação entre município e junta de freguesia, não foi possível apurar se escultura vai, ou não, ser colocada neste local a tempo do centenário do nascimento de Natália Correia.

Em defesa do jardim infantil, oposição da freguesia assina carta conjunta

Perante o anúncio da colocação da escultura evocativa da efeméride no espaço escolhido para a construção do jardim infantil inclusivo, foi esta segunda-feira redigido um texto que contou com a assinatura de toda a oposição, da direita à esquerda. No texto, a oposição começa por apresentar um protesto por “não ter sido ouvida sobre o local de colocação da estátua”, naquela que é considerada como uma violação do “direito de participação”, previsto na legislação para questões de “interesse público relevante”.

Em defesa do futuro jardim infantil inclusivo no espaço de estadia da Rua Natália Correia, os membros da oposição consideram pertinente a localização escolhida pela autarquia com o acordo da proponente por se situar perto de várias escolas e creches.

No segundo ponto do documento, a oposição eleita para a Assembleia de Freguesia denuncia só ter tomado conhecimento da colocação da escultura através do convite endereçado pela junta, considerando que esta “compromete” a execução do projeto vencedor do Orçamento Participativo da cidade há quatro anos. 

Por último, a oposição declara opôr-se à colocação da escultura na Rua Natália Correia e propõe que a mesma seja instalada noutro ponto particular da freguesia – o Largo da Graça, na proximidade do “Botequim”, estabelecimento fundado pela própria escritora em 1968 e palco de tertúlias até ao final dos anos 80. Esta localização, considera a oposição, conferiria “maior dignidade, monumentalidade e visibilidade” à escultura.

Segundo a  junta de freguesia, a possibilidade da colocação da escultura neste local foi equacionada, tendo sido abandonada.

Sobre a escolha do espaço de estadia da Rua Natália Correia para a colocação da escultura, a junta de freguesia explica que “as condicionantes técnicas do espaço público, a utilização e apropriação deste por parte dos cidadãos e a estrutura verde envolvente, levaram à seleção do espaço de estadia, por questão de maior visibilidade e dignidade”.

Uma falha de comunicação com fim à vista

Apesar das aparentes falhas na comunicação entre junta de freguesia e câmara municipal, parece haver a garantia do diálogo entre as duas.

A CML afirma que, “pese embora os serviços municipais, designadamente a Direção Municipal da Cultura, não terem sido consultados nem lhes ter sido feito chegar qualquer peça técnica referente à mesma [escultura]”, o município tomou a iniciativa de entrar em contacto com a junta de freguesia “para avaliar a possibilidade de integração dos dois projetos. O nosso propósito é procurar analisar, em conjunto com a Junta de Freguesia, a possibilidade da sua articulação”.

Relativamente à colocação da escultura no espaço público, o município afirma “desconhecer” o projeto da mesma e remete uma decisão para uma “análise com conhecimento técnico da respetiva intervenção”.

Por seu turno, a Junta de Freguesia de São Vicente afirma que “a colocação da escultura não inviabilizará ou constituirá qualquer entrave ao eventual projeto de construção do parque infantil inclusivo”, acrescentando ainda que “no seguimento dos contactos já iniciados, e logo que esteja na posse de informações concretas, a JFSV irá procurar a solução que melhor servir a população sem condicionar o projeto”, não deixando de lado a possibilidade de vir a ser decidida a relocalização da escultura. Esta decisão, clarifica, deverá ser tomada “em articulação com a CML, proponentes e demais entidades locais”.

O parque inclusivo: um trampolim, uma parede de cheiros e brincadeiras partilhadas

Na proposta que apresentou na edição 2018/2019 do OP, Patrícia Pombinho Leal pretendia ver nascer na freguesia um jardim infantil “para todas as crianças, o que não acontece com muitos parques”. ““Crianças com mobilidade reduzida devem conseguir utilizar o parque, crianças que têm baixa visão [também]”, acrescenta.

“A ideia é que haja brinquedos coletivos, que possa haver brincadeiras coletivas e de pares, que possam ser partilhadas com o outro, com o amigo”.

O jardim infantil atualmente existente na Rua Natália Correia deverá ser integrado no jardim infantil inclusivo. Foto: Frederico Raposo

Considera “muito bom” o projeto que a CML lhe apresentou para a Rua Natália Correia, antes do verão. “Contempla uma parte muito boa de árvores, vai ao encontro daquilo que queríamos – mais sombra”, diz.

Com um trampolim previsto para a zona próxima à escolhida pela junta para a escultura, Patrícia Pombinho Leal, mãe de uma criança com deficiência, questiona a localização escolhida pela junta de freguesia e considera que a obra “merece um lugar mais digno”. “Todos queremos que os [dois] projetos estejam aqui. O que é importante é as pessoas sentarem-se a uma mesa, reunirem-se e tentarem chegar a um consenso, havendo uma colaboração e cooperação para que ambos os projetos avancem”, afirma.

Sobre o futuro jardim infantil, “a ideia é que haja brinquedos coletivos, que possa haver brincadeiras coletivas e de pares, que possam ser partilhadas com o outro, com o amigo”, diz,  salientando o facto de terem sido escolhidos equipamentos inclusivos no projeto que lhe foi apresentado.

Para além do trampolim, o jardim infantil deverá ter ainda uma parede de cheiros, com várias plantas, e um escorrega, entre outros equipamentos. Ao lado do atual zona de estadia, existe já um parque infantil, que deverá ser requalificado com equipamentos adaptados.

Jardim infantil da Rua Natália Correia. Foto: Frederico Raposo

A proponente da proposta vencedora do OP, entretanto eleita como independente pelo Bloco de Esquerda para a assembleia de freguesia, deseja que o jardim infantil inclusivo possa, por fim, materializar-se no local acordado com o município.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

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