Ilustração: criada a partir do Canvas/Catarina Reis

Terminaram o ensino secundário e decidiram que não queriam pousar os livros de vez, parar de estudar. Só não imaginavam que essa escolha dependeria tanto do sacrifício pessoal e monetário como depende da média das notas que arrecadaram na escola. Lara e José tiveram de agarrar nas calculadoras também para fazer contas à mudança que exige serem estudantes deslocados. E foi quando a matemática começou a não bater certo com os sonhos.

É que o caminho até à licenciatura que tanto almejam pode ficar a centenas de quilómetros de distância de casa. E o que antes seria um período da vida a celebrar transforma-se num grande obstáculo: encontrar casa, quarto ou residência a preços acessíveis, com o dinheiro que resta das propinas, dos transportes e da alimentação.

Conheça a história de dois estudantes, Lara e José.

“Acabei por congelar a matrícula”

Lara Coelho tem 19 anos e lembra-se como se fosse hoje daquela primeira viagem a bordo de um alfa pendular que na altura ainda não lhe prometia virar a vida do avesso. Rumava a Lisboa, vinda de Braga, onde nasceu. Era setembro de 2022. Chegava para estudar ciências da comunicação, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), onde tinha sido colocada como uma das mais recentes caloiras.

Sabia como Lisboa era de acesso difícil no que toca a encontrar habitação, mas isso não foi problema para ela durante uns tempos. A serenidade demorou apenas uns dias até ser abalada. “Morava com a minha prima que estava num T2 no Parque das Nações, mas (por razões pessoais) ela ia mudar-se para uma outra casa, mais pequena, logo não era possível eu ficar a morar com ela.”

O calendário deste ano é memória vívida na cabeça da estudante, que de um dia para o outro foi obrigada a correr uma maratona no difícil trilho que pode ser encontrar um teto em Lisboa. Já com o ano letivo em curso, em finais de setembro, Lara foi obrigada a lidar com a tarefa de encontrar lugar cativo durante as mudanças da prima.

Os entrevistados preferiram o anonimato visual

Ilustração: criada a partir do Canvas/Catarina Reis

Tentou primeiro as residências universitárias: “O que me disseram foi que eles acabam por dar prioridade a alunos que já tiveram na residência em anos anteriores ou a alunos de mestrado, o que também não ajudou para que eu conseguisse”, relembra.

Com a chegada do mês de outubro, Lara viu-se dividida entre os livros e os anúncios de quartos que correspondessem às suas preferências: antes de tudo, o preço.

“Estava à procura de algo que rondasse os 400/450 euros, mas a estes preços havia muito pouca oferta. Inicialmente, a minha mãe até estava disposta a dar 600 euros por um quarto, isto se fosse uma situação provisória, mas fui eu quem não achou isso válido. Mesmo que fosse por dois meses, não achei que pagar 600 euros por um quarto fazia sentido. Acho que ia estar a contribuir para o problema”, confessa.

Depois do preço, Lara acordou que seria rigorosa quanto à burocracia. “Houve uma condição que eu e a minha mãe acordámos: que me passassem recibo. E, por incrível que pareça, isso já limitou imenso a minha pesquisa. Eu lembro-me que liguei para imensas pessoas que me diziam: Acha que eu passo recibo?”

Sabia que…?
O ato de não emitir recibo por parte do senhorio ao arrendatário é ilegal – informação desconhecida por muitos jovens que procuram alojamento. O senhorio deve estar abrangido pelas mesmas obrigações legais que teria ao arrendar uma casa inteira, ao fazer um contrato de arrendamento.

As redes sociais acabam quase sempre por também desempenhar um papel relevante na luta contra este problema da procura de habitação. E não foi diferente com Lara. “Lembro-me que andava em imensos grupos de Facebook. Se mandava mensagem a 40 pessoas e 15 me respondessem, já era uma sorte. Fui ver três ou quatro casas e houve uma, inclusivamente, à qual cheguei a mandar mensagem a dizer que ficava com ela, mas nunca mais me responderam. Fiquei com a sensação que não havia tanta oferta quanto eu imaginava”, lamenta.

Já não era só a procura incessante e sem retorno que a preocupava, era como isso a estava a alhear dos estudos. Então, com o mês de outubro a chegar ao fim, na iminência do período de avaliação e ainda sem sítio onde ficar, Lara tomou a difícil decisão de desistir.

“Lembro-me que na altura tínhamos um trabalho para entregar em novembro e o que eu sentia era que eu não estava a conseguir conciliar isso com a minha procura por um quarto. Acabei por congelar a matrícula também um pouco por saturação. Sentia que, em vez de estar na faculdade a estudar, estava em Lisboa a procurar casa e a passar o meu tempo todo no Idealista a fazer scroll”

Hoje, um ano depois, Lara está a voltar ao estudos, desta vez na Universidade Católica de Braga – porque pagar uma instituição privada ainda assim compensou o gasto da mudança para Lisboa.

“Acho que isto vai fazer só com que os estudantes deixem de ir para Lisboa. Pelo menos, o que eu vejo aqui no norte é que já ninguém quer ir nem para o Porto nem para Lisboa”, remata.

Sabia que…?
O Governo dispõe de um apoio extraordinário a estudantes deslocados, desde que cumpram os seguintes requisitos: estejam na condição de estudante deslocado; sejam beneficiários de abono de família, até ao 3.º escalão; e satisfaçam as condições previstas no Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo a Estudantes do Ensino Superior, à exceção das relacionadas com os rendimentos. O pedido deve ser submetido até 31 de março de 2023. Saiba mais aqui.

Cerca de 90 kms e quatro horas todos os dias

José Maria Dias tem 22 anos e é caso raro entre os vários testemunhos de estudantes deslocados: confessa que só agora, no último ano da licenciatura de Direito na Universidade Lusíada, se vê com o problema da habitação em mãos.

“É uma experiência nova para mim. Na casa do meu familiar onde estava antes tinha bastante espaço, ficava situada na zona de Benfica, tinha acesso a transportes basicamente para todo o lado.” Mas, tal como aconteceu com Lara, o apoio de José terminou – o familiar não se mudou, mas teve que aumentar a renda, que seria incomportável para o aluno. O que muda realmente entre a história de Lara e de José, nascido em Santarém, é o final de cada uma.

Ilustração: criada a partir do Canvas/Catarina Reis

É que, no caso de José, a geografia ainda permitiu um último esforço: “Agora pela primeira vez, vou ter de estar em constantes viagens de ida e volta de Santarém até lisboa para conseguir concluir este quarto ano.” São cerca de quatro horas por dia – uma e meia para cá, uma e meia para lá. De um ponto ao outro são perto de 90 quilómetros.

José optou pelo regime de aulas em pós-laboral devido às deslocações, que seriam sempre mais complexas bem cedo. Ainda assim, o estudante prevê que os regressos a casa nunca sejam antes da meia-noite.

“Ir e vir todos os dias acredito que afetará diretamente na disponibilidade para estudar. O facto de eu estar no pós-laboral e sair às dez da noite e chegar a Santarém à meia-noite ou depois será prejudicial para mim a longo prazo, terá um impacto direto na minha produtividade.”

Sabia que…?
No último ano, o preço médio de quartos e apartamentos para estudantes subiu 10,5%. Isto traduz-se num aumento das rendas que atingem em média 450 euros em Lisboa, segundo o último relatório do Observatório do Alojamento Estudantil publicado no início do mês. Além disso, a oferta de quartos disponíveis para arrendar a estudantes reduziu 14%, ao diminuir de 3347 quartos livres para 2892 no país, dos quais 1148 em Lisboa.

José não é otimista nesta cidade que diz ser “de turistas”. E lança o apelo: “Nós jovens que pretendemos entrar no ensino superior precisamos mesmo é de medidas por parte do governo, que cada vez mais agilizem esta situação e que nos ajudem, porque se isto continuar assim vai chegar ao ponto que será impossível estudar em lisboa”, enfatiza.

“Se o estudante se esforçou e estudou durante o secundário e conquistou a média para entrar no curso que pretende, que a distância não seja um obstáculo.”


Sobre os autores:

Tomás Delfim:
A paixão pelo jornalismo aflorou apenas durante a própria licenciatura em jornalismo, mas, como se costuma dizer, mais vale tarde que nunca. Entrou para a Mensagem com a missão de praticar o jornalismo que lhe proporciona uma maior realização pessoal e profissional: contar histórias de pessoas e da sua cidade. Mas, para ele, “o jornalista é apenas o mensageiro das histórias que as pessoas têm a contar.”

Lia Cabral:
Nascida em Lisboa, metade cabo-verdiana e metade angolana, navega por várias áreas destacando-se a comunicação e as artes performativas. É estudante universitária do curso de ciências de comunicação no ISCSP e bailarina profissional. Apesar de jovem, já integrou vários projetos de renome como videoclipe do êxito musical “Maria Joana” de Calema, Mariza e Nuno Ribeiro.

Este texto foi editado por Catarina Reis


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3 Comentários

  1. Comprei há alguns anos um T3 em Lisboa junto a uma estação de Metro. Pago cerca de 900€/mês ao banco, 700€/ano de IMI, 100€mensais de condomínio, mais cerca de 250€ de água, luz, gás, Internet, empregada a dias para limpeza. Quartos mobilados, cozinha equipada, passo recibo, 28% de IRS. Despesas fixas 1310€/mês mais 200€para IRS. Por quanto acham que tenho que arrendar os quartos para não ter prejuízo?

  2. Continuo a pensar que é estranho. Enviei um e-mail para as faculdades e pus um anúncio no Bquarto a dizer que ofereço um quarto. As pessoas só têm de pagar as suas despesas, dar uma ajuda pequena na limpeza da casa e prefiro alguém do sexo feminino.
    Só respondeu um rapaz. Até expliquei o motivo pelo qual tomei está decisão..

  3. Depois de ler a reportagem e os comentários concluo que os donos/arrendatários sao/foram burros em comprar muito caro, que exploram tudo e todos sem sentimento e que merecem um crash e que percam tudo.. mesmo tudo! A sopa serve-se fria e os mercados financeiros indicam estagflação.. vai ser lindo ve-los mal! Aleluia!

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