Os prédios vizinhos ao El Corte Inglés são ao mesmo tempo um ponto de encontro e um objeto de desejo e reflexão. É diante deles que Lia espera, calmamente sentada num dos bancos do Jardim Amália Rodrigues, em Lisboa, para a entrevista. “Gosto de olhar para eles”, revela a jovem, espontaneamente. “Fico a pensar que seria ali que gostaria de morar, quando for rica.”

Lia Cabral tem 18 anos e é estudante de jornalismo e bailarina profissional. Refletir e realizar tem sido um binómio na equação de vida da jovem neta de cabo-verdianos, que desde ainda mais jovem, na infância, viu-se obrigada a refletir sobre a relação da cor da sua pele e o convívio com as outras crianças e adolescentes, na escola e em atividades sociais.

Uma reflexão que precocemente forjou em Lia uma consciência crítica e o desejo de que outras crianças e jovens com a pele e uma realidade semelhantes à dela no bairro do Rego, ali nas Avenidas Novas, onde cresceu, não passassem pela mesmos constrangimentos, e mais, que fossem capaz de, como frisa, “romper essa bolha”.

Assim como ela tem conseguido romper.

Lia, em frente aos prédio que costuma observar como forma de incentivar a si mesma: “É ali que gostaria de morar quando for rica”. Foto: Líbia Florentino.

A “bolha” que Lia se refere é revestida de expectativas limitadas e frustradas. Ser um jovem negro num bairro que apesar da vizinhança nobre ainda carrega um certo estigma de “social”, é conviver com a sensação de que o futuro tem poucas portas a serem abertas, de que a sociedade de alguma forma já sabe como a história daquela pessoa vai terminar.

Um pensamento que, em vez de a desestimular, serviu de motor para que Lia tivesse a força de romper “a bolha” e conseguisse trilhar o caminho que desejava e não o que a sociedade, sem a consultar, havia reservado para ela.

“Convivi sempre com o olhar dos outros a dizer ‘lá está mais uma rapariga negra que não vai evoluir‘, mas tenho conseguido quebrar esse ciclo”, diz.

O caminho tem passado pela carreira de bailarina profissional, constantemente convidada a trabalhar em eventos como o Moda Lisboa e a compor o corpo de bailarinos em clips de cantoras e cantores portugueses, como Lura, Irina Barros e Nuno Ribeiro (no mais recente videoclipe “Maria Joana”). E também pela formação em jornalismo na Universidade de Lisboa, com um objetivo já em mente:

“Se eu quebrei esse ciclo, não vejo outras pessoas da minha idade do bairro a quebrarem. Quando me graduar, penso em construir algum projeto de comunicação que ajude a mudar essa realidade”, planeia. 

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A menina que não recebia “papelinhos” na escola

Duas raparigas caminham pelo jardim e, ao cruzarem com Lia, fotografada diante do prédio onde moraria “quando for rica”, não poupam o elogio: “Estás linda!”. Lia sorri em resposta. Todo elogio é sempre bem-vindo, mas Lia exibe a confiança de quem sabe já não precisar dele para ter as suas certezas.

Nem sempre foi assim.

Lia, a menina que na escola não recebia “os papelinhos” dos meninos hoje é uma bela, inteligente e forte mulher. Foto: Líbia Florentino

“Na escola, quando chegou aquela fase dos meninos enviarem os papelinhos para as meninas, nunca havia um papelinho para mim”, recorda-se a antiga aluna do Rainha Dona Leonor, em Alvalade, hegemonicamente frequentada por adolescentes da classe-média lisboeta e com a cor de pele diferente da dela.

“Percebi logo cedo que era diferente, a minha pele era diferente, o meu cabelo era diferente. No início, achei que, se era diferente, o problema era meu. Só depois de parar, refletir e pensar, vi que não tinha nada de errado comigo, que o problema era do local onde estava, da forma como eles lidavam com a diferença”, conta.

Perceber que “não era o problema” e onde o problema realmente estava foi o primeiro passo para virar a chave na vida da bailarina e futura jornalista. Ajudou Lia a enfrentar a mesma falta de sensibilidade alheia em lidar com a diferença durante o período em que praticou ginástica mista, dos 5 aos 16 anos, no Sporting Clube de Portugal, também em Alvalade.

“Tinha consciência de ser uma boa atleta e notava que não gozava das mesmas oportunidades das outras meninas, com uma vida e uma rotina mais privilegiada do que a minha. A minha família fazia um grande esforço para que pudesse treinar, mas mesmo assim sentia que os treinadores não me incentivavam, não tinham esperança em mim”, recorda-se.

Foto: Líbia Florentino

Sem o devido estímulo, Lia aos poucos foi distanciando-se da ginástica, mas não da atividade física. Atleta praticamente em toda a vida, a adolescente encontrou na dança a oportunidade de seguir ativa e, mais ainda, o suporte motivacional que faltou nos tempos de ginasta. 

A primeira paragem como aspirante a bailarina foi na unidade de Entrecampos do Jazzy Dance Studios, uma escola de dança com boa estrutura e bastante eclética, com cerca de duas dezenas de ritmos de oferta de ensino, como hip hop, kizomba, kuduro, jazz, salsa e o funk carioca, e outros menos conhecidos para os não-iniciados, como o floorwork e o waacking

“Comecei na escola de Entrecampos, pois era mais próximo de onde vivia. Porém, um dos professores de lá disse que levava jeito para a dança e aconselhou-me a praticar no Jazzy de Santos, onde havia a oportunidade de alcançar o nível profissional”, conta. Ao contrário dos treinadores de ginástica artística, havia agora alguém com esperança em Lia.

Educação para desconstruir estereótipos

Esperança que Lia sempre contou por parte da família. A bailarina, que vive hoje na Linha de Sintra, sempre contou com o apoio dos avós, moradores do bairro do Rego, onde ela também foi criada, para ir às aulas e praticar as atividades de rotina.

“A minha mãe morava em Queluz, mas trabalhava no aeroporto. Como tinha os horários irregulares, trabalhava por turnos e muitas vezes à noite, praticamente morava na casa dos meus avós, no bairro do Rego”, explica.

Lia diz que ainda hoje precisa fazer a própria produção, pois os profissionais não sabem lidar com a cor da sua pele e o tipo do seu cabelo. Foto: Líbia Florentino.

O suporte familiar ia além da ajuda mútua. “Na nossa casa, a educação sempre foi e é a prioridade e, apesar das limitações financeiras, nunca faltou apoio para isso”, conta. Uma prova é a mãe, a primeira geração na família a concluir um curso superior, em Turismo. Um percurso académico que Lia orgulha-se e segue como mais uma forma de “quebrar o ciclo”.

“Fora do bairro, a perceção geral é a de que todos nós somos criminosos ou pessoas burras. É preciso apagar esse estereótipo, esse e de que nós não vamos a lugar nenhum. Eu quebrei esse ciclo, mas não estou satisfeita, pois não vejo os jovens do bairro quebrarem. Tenho orgulho dessa minha origem e quero fazer algo para mudar essa realidade”, diz.

A bailarina e futura jornalista, porém, sabe que o caminho ainda é longo. 

Apesar de a cor de pele que enverga ocupar hoje um espaço cada vez maior no mercado profissional, Lia ainda esbarra em alguns “pormenores” eloquentes sobre como esse mesmo mercado precisa ter atenção e respeito aos novos profissionais. 

“Na maioria das vezes, sou eu que tenho que me maquilhar e fazer o meu próprio penteado, pois grande parte dos maquilhadores e cabeleireiros não está acostumada a trabalhar com a cor da minha pele e o tipo do meu cabelo. Até na Moda Lisboa, onde a presença negra na passarela não é uma novidade, tive eu mesma de fazer a minha maquiagem e o meu cabelo”, conta.

No jornalismo, o cenário não é diferente e a presença de jornalistas negros nas redações portuguesas ainda está aquém do devido. O que não abala a confiança de Lia, determinada em seguir na missão de quebrar estereótipos, inspirada no jornalismo da revista norte-americana No Basic Girls Allowed (NBGA) – dedicada às raparigas que, assim como ela, fogem aos padrões considerados básicos pela sociedade. 

“Lá em casa, sempre ouvi que não seria fácil, que para alguém de uma minoria étnica ter a mesma oportunidade dos outros, era preciso muito estudo e esforço. E mantenho esse foco”, ensina a antiga menina que não recebia “papelinhos” na escola e hoje, uma mulher bela, inteligente e confiante, sabe que o problema estava com quem não conseguia enxergar o brilho de uma legítima no basic girl diante dos seus olhos.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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